Radio com, http://www.radiocom.org.br/?p=15546, 06/09/2020
O fim do assalariamento?
Marcio Pochmann*
Nas últimas três décadas, o capitalismo brasileiro sofreu transformações significativas que terminaram por alterar a trajetória do mundo do trabalho. Diante da perda de vitalidade econômica, a estagnação na renda per capita decorreu dos processos simultâneos e combinados da desindustrialização com o inchamento do setor de serviços que impactaram decisivamente na classe trabalhadora.
Além disso, ocorreu o próprio avanço continuado da desregulação no marco regulatório do mercado de trabalho, lócus de produção do processo de compra e venda temporária de força de trabalho e da reprodução do emprego assalariado. Com isso, o salariado no Brasil passou ineditamente a decrescer lentamente, passando de próximo de 70% para abaixo de 60% da força de trabalho, tendo em vista a maior presença de ocupações não assalariadas e, mesmo, de assalariamento desprotegido.
Para tanto, houve a desregulação do código do trabalho a partir dos anos de 1990, com a terceirização adotada nas empresas para converter o emprego assalariado interno em externo (autônomo e consultores pejotizados), sobretudo nos níveis hierárquicos superiores. Também as inovações legislativas em termos de cooperativas, MEI (Microempreendedor Empreendedor Individual) e outras, permitiram, mais na base da estrutura do assalariamento, a figura jurídica do empreendedor de si próprio adotado massificamente nos dias de hoje nas empresas de plataforma digital (entregadores), professores na rede privada, academias de ginásticas e tantas outras.
Ao constatar o movimento de inflexão na trajetória do assalariamento, a literatura especializada passou a constituir novos conceitos para procurar interpretar e descrever o fenômeno recente da regressão do emprego formal (pós-assalariamento, servidão moderna, viração, precariado, nova classe média, classe trabalhadora de serviços, entre outros). A partir da segunda metade da década de 2010, os sinais do desassalariamento tornaram-se ainda mais acentuados.
Após cinco anos, a economia brasileira terminou 2019 com o nível de atividade inferior ao alcançado em 2014. Nessa fase em que o desemprego mais que duplicou, o emprego assalariado declinou, muito mais ainda o protegido pela presença tanto da contratação formal como do sindicato e justiça do trabalho.
Ao mesmo tempo em que as medidas legislativas adotadas a partir de 2017 deformaram o sistema corporativo de relações de trabalho (reformas trabalhista e previdenciária), a retomada do assalariamento tornou-se ainda mais distante. Isso tem se comprovado ainda mais fortemente com o agravamento da situação econômica e social do país em função da pandemia da Covid-19 e das medidas governamentais adotadas.
De maneira geral, o governo Bolsonaro, sem projeto de médio e longo prazo para a reorganização e crescimento sustentado da economia brasileira, ampara-se em ações pontuais e provisórias, cuja perspectiva seria a retomada do normal que estava em curso após o golpe de Estado de 2016. Ou seja, o crescimento da economia nacional em torno de 1% ao ano.
Se a economia brasileira decrescer cerca de 7% em 2020, o país entrará no ano de 2021 com o nível de atividade econômica equivalente a menos de 90% do verificado em 2014. Se retomar o ritmo de crescimento econômico estabelecido pelo “normal do pós-golpe de 2016” de 1,1% como média anual, o Brasil somente poderá alcançar o patamar da economia registrada em 2014 no ano de 2030.
Nesse contexto, a perspectiva de evolução do mundo do trabalho tenderá a confirmar mesmo a regressão do emprego salarial, sobretudo, daquele protegido. Assim, o fim do assalariamento se consolida, abandonando a perspectiva de construção da sociedade salarial trazida pelos abolicionistas com o abandono do trabalho forçado viabilizado pela abolição da escravatura, em 1888.
Também representará o maior distanciamento do projeto tenentista iniciado nos anos de 1920 em torno da perspectiva da cidadania regulada. Por conta disso, o sistema corporativo de relações de trabalho (reconhecimento e financiamento do monopólio sindical, direitos sociais e trabalhistas e justiça do trabalho) impulsionado com a Revolução de 1930 perde cada vez mais efetividade, lançando a classe trabalhadora na selvageria dos mercados.
Artigo publicado originalmente no blog Terapia Política (www.terapiapolitica.com.br)
*Marcio Pochmann: Economista, professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais da UNICAMP, ex-presidente do IPEA, autor de vários livros e artigos publicados sobre economia social, trabalho e emprego.