• Estado de São Paulo, https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,medo-do-virus-trabalho-e-luto-as-faces-da-abstencao-recorde-no-enem,70003588629, 21/01/2020

Medo do vírus, trabalho, falta de aula e luto: as faces da abstenção recorde no Enem

Após pressão pelo adiamento, mais da metade dos candidatos faltaram no primeiro domingo do exame; ministro da Educação celebrou resultado: ‘Foi um sucesso para quem fez’

Ilana Cardial e Júlia Marques, O Estado de S.Paulo

Realizado em meio à segunda onda da covid-19, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) nunca teve tão pouca participação desde que a prova se tornou, em 2009, a principal porta de entrada para o ensino superior. Mais de 2,8 milhões de inscritos deixaram de fazer o exame no último domingo. O número, gigantesco, revela histórias de desalento de Norte a Sul, em um país que tem fracassado na gestão da Saúde e da Educação na pandemia.   

Rostos pretos, brancos, molhados de suor ou de lágrimas são a cara da abstenção do Enem. Os ausentes no exame são jovens como o Ruan, de 22 anos, que trabalhava como motoboy no Rio enquanto outros da mesma idade faziam a prova. Ou têm história parecida com a da Larissa, de Belford Roxo (RJ), que perdeu a paz depois de enterrar a tia, infectada com a covid-19, e agora vê os avós no hospital.

Muitos tiveram medo de se contaminar, caso da Manuela, de Juiz de Fora (MG), ou não puderam ir porque já estavam doentes, como o Danilo, de Parauapebas (PA), a cerca de 530 quilômetros de Belém. E teve até quem tentou fazer a prova, mesmo com medo, percorreu quase duas horas em um ônibus, mas encontrou as salas lotadas e acabou impedido de entrar – história do Tiago, em Curitiba.

A segurança do exame, em meio à pandemia, foi questionada na Justiça, mas o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgão do Ministério da Educação (MEC), conseguiu manter as datas da prova. Após o 1º dia de aplicação, a Defensoria Pública da União (DPU) fez novo pedido para que as provas do próximo domingo sejam adiadas e para que o exame seja reaplicado a todos os ausentes, mas a solicitação foi novamente negada.

No último domingo, 17, o ministro Milton Ribeiro afirmou que o Enem “foi um sucesso”, mesmo com índice de abstenção nunca visto. “Para os alunos que puderam fazer a prova, foi um sucesso”, disse. Já Priscila Cruz, do Todos pela Educação, classifica o último domingo como um fracasso. “O Enem é mais um triste episódio de um Ministério da Educação incompetente, omisso e alheio à realidade da educação, dos estudantes e da pandemia no Brasil.” O Estadão ouviu cinco jovens que deixaram de fazer a prova no último domingo. Veja os relatos a seguir.

 ‘Minha tia morreu de covid-19. Aquilo acabou comigo’, diz jovem que desistiu do Enem

Larissa Paiva, de 19 anos, quer ser advogada, mas o luto suspendeu o sonho da faculdade

Júlia Marques, O Estado de S.Paulo

Quando criança, Larissa Paiva, de 19 anos, viu a mãe quase ser presa em um supermercado depois de ter roubado arroz e feijão para alimentar os filhos. A família não tinha o que comer e, naquele dia, uma advogada que passava pelo estabelecimento intercedeu pela mulher, pagou as compras e um táxi. “Depois disso, pensei: ‘Preciso ser advogada e fazer o que ela fez’. Daí veio o maior desejo da minha vida.”

Larissa começou o ano animada a estudar para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), mas a morte de uma tia para a covid-19, o luto pela perda de amigos e a internação dos avós com a mesma doença a afastaram do caminho. “Não tenho cabeça, meu psicológico está abalado”, diz a jovem de Belford Roxo, na Baixada Fluminense.  Leia a seguir o relato:

Meu maior sonho é entrar em uma faculdade, dedico a maior parte da vida ara isso. No início do ano, estava estudando para o vestibular, muito animada, até que veio a covid-19. Meu salário foi reduzido e tive de parar o pré-vestibular que estava custeando. Em março, minha tia morreu de covid (uma das 28,2 mil vítimas da doença no Estado). Ela tinha 42 anos, deixou filho e marido. Quem teve de dar a notícia e cuidar de tudo fomos eu e minha prima. Foi um baque. Aquilo acabou comigo.

Tentei estudar por conta própria em casa, ver vídeos, mas sozinha é muito difícil. As coisas estavam ficando cada vez mais complicadas, tinha ainda o medo, porque minha mãe trabalha fora. E o luto. Perdemos amigos, conhecidos, vizinhos. Tivemos de montar uma estratégia para cuidar do meu primo, agir na esperteza e com rapidez. A gente chorava, secava e falava: ‘Vamos agir’.

Eu ainda queria fazer a prova, até que, em janeiro, minha avó e meu avô foram para o hospital com a covid. Eles estão internados e sem previsão de alta. Não temos contato. Ali percebi que eu não tinha mais estrutura para fazer o Enem com as minhas perdas. Não tenho cabeça, meu psicológico está abalado e são muitas informações.

Me sinto frustrada, inútil, quero tentar, mas não consigo, parece até que não tenho força de vontade. Meu sonho é estudar Direito porque, quando eu era pequena, não tínhamos nada em casa para comer e minha mãe foi a um supermercado para pegar comida – não roubou nada de bom, só arroz e feijão. Um segurança arrastou minha mãe para um galpão e arrasou com ela, levaram para o meio do mercado e falaram que chamariam a polícia.

Eu era muito pequena e comecei a chorar até que veio uma moça que falou que era advogada e defendeu minha mãe, pagou as compras e um táxi para voltarmos para casa. Depois disso, pensei: preciso ser advogada e fazer o que ela fez. Daí veio o maior desejo da minha vida. Vou ficar pior quando a nota de todo mundo que fez o Enem sair, eu vir as pessoas entrando em uma universidade e cair a ficha de que não vou conseguir esse ano.  

Abri mão do Enem, eu tinha de trabalhar’, diz motoboy no Rio

Enquanto a prova era aplicada no domingo, Ruan Felipe Costa Machado, de 22 anos, fazia entregas

Ilana Cardial, O Estado de S.Paulo

Ruan Felipe Costa Machado, de 22 anos, começou 2020 decidido a retomar os estudos. Inscreveu-se no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) pela primeira vez e frequentou as aulas de um cursinho popular até quando pôde. Com a pandemia, porém, o morador do Complexo da Maré, na zona norte do Rio, teve de deixar o plano de lado mais uma vez.

Não foi possível encaixar as aulas online com o emprego de motoboy, que garante a renda para manter a casa onde vive com a mãe e a pensão das duas filhas, prestes a fazer três anos. No domingo, 17, enquanto a prova acontecia, Ruan percorria as ruas do Rio para fazer entregas. Leia a seguir o relato:

No começo de 2020, resolvi que voltaria a estudar. Lembrei do cursinho popular do CEASM, o Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré (pré-vestibular comunitário em que Marielle estudou), e fui. O pessoal me ajudou bastante. O que eles fazem ali é surreal, com muito amor e carinho. Infelizmente a pandemia me quebrou. Estudei até março, mas, quando as aulas online começaram, nunca batiam com meu horário livre.

Pego serviço das 12 horas às 23 horas. E não ia parar de trabalhar para assistir às aulas online, porque, infelizmente, se eu não trabalhasse, iam faltar coisas em casa. E nunca que vou deixar isso acontecer.

A minha mãe é diarista, fez uma cirurgia e estava ‘encostada’. A gente foi se mantendo com o que tinha. Ano passado, trabalhei em restaurante e como entregador iFood de bike até conseguir meu emprego de motoboy. Eu pagava aluguel de R$ 600 em uma moto e pago a pensão das minhas filhas. Com a pandemia, a creche fechou, e eu e a mãe delas tivemos de pagar também alguém para cuidar das meninas enquanto a gente trabalha.

Eu tenho de trabalhar para poder viver um pouco melhor e dar um pouco do melhor para as minhas filhas (elas têm 3 anos). E quanto mais tu ‘trabalha’, mais tu ‘recebe’. Pelo menos esse ano, abdiquei de estudar e abri mão do Enem. Não tive como estudar. Eu tinha de trabalhar.

Terminei o ensino médio em 2018, quando nasceram as gêmeas. Em 2020, consegui isenção no Enem e seria a primeira vez que eu ia tentar fazer a prova. Na época da inscrição, queria cursar Educação Física. Hoje em dia, quero algo voltado para Artes. Eu tenho o sonho de ser rapper, de viver da arte e da música.  

Categorias: ENEM / SISU

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