Estadão. https://publicacoes.estadao.com.br/guia-da-faculdade/noticias/calouros-em-tempos-de-covid-enfrentam-desafios/, 18/10/2021

GERAÇÃO DA PANDEMIA

Calouros em tempos de pandemia enfrentam desafios

De recepção por live a dificuldade de manter o interesse pelo curso, estudantes contam como foi ingressar no ensino superior durante a crise sanitária mundial

Por Giovana Murça

Aprovação no vestibular, comemoração com familiares e amigos, matrícula no curso dos sonhos e uma recepção cheia de calouros e muita festa. Esse seria o roteiro padrão da vida dos ingressantes no ensino superior nos últimos dois anos se não fosse por um contratempo: a pandemia de covid-19. Com a disseminação do vírus, as instituições de ensino tiveram de fechar as portas e se adaptar às pressas à modalidade remota. No dia a dia de professores e alunos, frases como “Estão me ouvindo?”, “Estão vendo minha tela?” e “Minha internet caiu” se tornaram comuns.

A pandemia foi um verdadeiro balde de água fria para os estudantes que sonhavam ingressar na faculdade. Uns não conseguiram concluir o último ano do ensino médio nem prestar o vestibular, outros perderam a renda e tiveram de deixar a educação em segundo plano.

Recepção por lives e mensagens

Os calouros da pandemia conheceram um novo estilo de recepção na faculdade. Para evitar aglomeração, nada de festa, tinta no rosto ou salas lotadas. Eles foram recebidos por transmissões ao vivo – as famosas lives –, videochamadas ou, simplesmente, por mensagens.

O chegar, de fato, à universidade foi abalado pela distância. No caso do estudante Emanuel Cornélio, 19, a frustração de ingressar na universidade dos seus sonhos em meio à pandemia foi reduzida pelo acolhimento virtual organizado pela Unicamp e por seus veteranos do curso de Educação Física. “Logo na primeira semana, eles fizeram oficinas de apoio para os calouros com lives, explicando todas as informações cruciais para esse início de ano letivo. Também houve contato com veteranos pela criação de grupos de mensagens”, conta.

A estudante de Relações Públicas Beatriz Pierotti, 19, ingressou em duas instituições durante a pandemia e passou por experiências de recepção bem distintas. Na primeira instituição, ela foi recepcionada pelo coordenador do curso por meio de uma mensagem e logo entrou no grupo da sala. Meses depois, Beatriz foi aprovada no vestibular da Unesp e mudou de faculdade. Lá, o acolhimento foi diferente. Além da recepção da própria Unesp, com transmissões ao vivo, os veteranos organizaram uma live de recepção dos calouros.

 A adaptação ao ensino remoto

Depois da recepção atípica, os alunos de cursos originalmente presenciais tiveram de enfrentar uma das maiores dificuldades relatadas por aqueles que entraram no ensino superior durante a pandemia: a adaptação ao ensino remoto. Desde problemas técnicos com equipamentos e conexão da internet até dificuldades de se concentrar na frente das telas, é inegável que a distância impactou no ensino e na aprendizagem dos universitários.

O impacto foi maior para os estudantes de baixa renda, que sofrem com a falta de acesso à internet e de equipamentos para estudar. “Infelizmente, o impacto depende muito da estrutura que o aluno tem em casa para acompanhar as aulas e as atividades remotas”, pontua Joaquim José Soares Neto, presidente da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CNE).

Para Vivian Valente, 24, estudante de Jornalismo da ESPM-SP, foi uma grande superação conseguir se adaptar ao ensino remoto e criar uma rotina de estudos em casa. “Estudar em um ambiente 100% remoto não é fácil e, para mim, é bastante monótono e cansativo. Diferente de uma sala de aula, esse ambiente não é realmente preparado para estudar e acaba tendo distrações”, relata.

Apesar dos problemas técnicos já clássicos das aulas online, o universitário Emanuel sentiu que as aulas foram bem produtivas: “Os professores souberam administrar muito bem as aulas e deixaram claro que poderíamos chamá-los por mensagem ou e-mail. Durante as aulas, eles interagiam e deixavam as aulas muito leves. Mesmo cada um da sua casa, eles fizeram esse contato ficar bem próximo”.

Já para Fabíola Vertamatti, 35, a realidade foi outra. Ela entrou no curso de Biomedicina da Universidade Anhembi Morumbi durante a pandemia acreditando que logo a rotina voltaria ao normal, mas, após três meses de ensino remoto, decidiu largar a graduação. “Eu tranquei a faculdade porque vi que não estava prestando atenção, apenas pagando mensalidade e me enganando. Eu realmente preciso da sala de aula e do professor na minha frente. Na tela do computador, eu me disperso muito rápido”, justifica.

Além das dificuldades de aprendizagem, Joana Angélica Guimarães, vice-presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) e reitora da Universidade Federal do Sul da Bahia, aponta outros fatores que levaram à evasão do ensino superior nesse período: “Tem aluno que deixou de se matricular ou trancou por uma questão psicológica, de ansiedade e medo da covid-19. Outros, os estudantes de baixa renda, deixaram de estudar por problemas de baixa conectividade, falta de ambiente de estudo em casa ou ainda porque tiveram que trabalhar para ajudar a família”.

De acordo com o Mapa do Ensino Superior no Brasil 2021, produzido pelo Instituto Semesp, a evasão nas instituições privadas de ensino superior aumentou durante a pandemia. No ensino presencial, o número de estudantes evadidos cresceu de 30% em 2019 para 35,9% em 2020.

 Socialização a distância

A distância também dificultou a relação entre calouros e veteranos. Para além dos laços de amizade, os veteranos cumprem o papel de orientar os novatos e ajudá-los no início da vida acadêmica. A estudante Samylla Tays Rocha, 21, define a socialização com os professores e colegas como “tensa”. “Para você se aproximar de alguém através de uma plataforma é muito complicado. Você não sabe o que a pessoa está sentindo. Ela pode modificar a imagem e o áudio. Eu senti muita falta desse contato com as pessoas, de sentar, conversar, abraçar”, lamenta a aluna de Psicologia da Unileão, no Ceará.

Tecnologia que veio para ficar

Mesmo com o retorno presencial, a realidade é que as salas de aula nunca mais serão as mesmas. A tecnologia, que modificou tanto o processo de ensino e aprendizagem e a relação entre alunos e professores, veio para ficar. Durante a pandemia, a presencialidade perdeu força na medida em que simples videochamadas substituíram tranquilamente reuniões que despenderiam muito mais tempo e dinheiro. E, no setor da educação, não poderia ser diferente.

Um levantamento da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) apontou que 55% dos alunos de instituições privadas preferem um retorno híbrido, com aulas presenciais em apenas alguns dias da semana, sobretudo para atividades práticas. “Os cursos 100% presenciais não deveriam existir mais porque algumas disciplinas não necessitam de presencialidade. As aulas de disciplina teóricas podem ser feitas em casa e ter encontros regulares espaçados com o professor para debates e para socialização com os alunos”, enfatiza Elizabeth Guedes, presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup).

Para Joaquim Soares, do CNE, será preciso investimento para melhorar o uso das tecnologias na educação e colocar em prática um ensino híbrido que garanta aos alunos o melhor da tecnologia e o melhor da presencialidade.

MATRÍCULAS EM CURSOS PRESENCIAIS JÁ VINHAM EM QUEDA

Antes da pandemia, o número de universitários em cursos de graduação no País já demonstrava sinais de queda na modalidade presencial. De 2018 para 2019, a quantidade de estudantes matriculados em todas as modalidades de graduação até chegou a crescer 1,8%, segundo a última edição disponível do Censo da Educação Superior. Mas, considerando apenas a modalidade presencial, o número de matriculados já havia caído quase 4% no mesmo período, ou seja, bem antes da pandemia de covid.

Enquanto isso, o Ensino a Distância (EAD) já vinha ganhando espaço. De 2014 para 2019, o número de matriculados em cursos a distância cresceu impressionantes 82,6%. Para Elizabeth Guedes, presidente da Anup, a modalidade EAD vai crescer com força pelas mudanças de comportamento trazidas pela pandemia: “Hoje, eu faço reuniões em vários Estados do País sentada no meu escritório. Com a pandemia, nós entendemos que conseguimos com menos fazer a mesma coisa, e até mais coisas, com menos deslocamento”.

O problema é que nem mesmo a expansão do EAD talvez seja capaz de frear a queda nas matrículas no ensino superior como um todo. Com os impactos econômicos, sociais e educacionais da pandemia, o número de ingressantes nas faculdades tende a ser menor nos próximos anos. A segunda edição da pesquisa Juventude e Pandemia já apontou que 45% dos jovens de 15 a 29 anos desistiram de fazer o Enem em 2021. A baixa adesão ao Enem, que teve o menor número de inscritos desde 2005, deve refletir na menor entrada de estudantes nas universidades. “Os alunos da rede básica privada de ensino vão ocupar as vagas das universidades públicas porque vai ter um número muito reduzido de alunos da rede pública fazendo Enem”, acredita Elizabeth.

Se não conseguirem recursos, financiamento ou bolsas, os caminhos para o ensino superior podem se fechar para milhares de jovens.

 

Evolução no número de matrículas no ensino superior do Brasil – por modalidade

Ano Presencial EAD Total
2014 6.486.171 1.341.842 7.828.013
2015 6.633.545 1.393.752 8.027.297
2016 6.554.283 1.494.418 8.048.701
2017 6.529.681 1.756.982 8.286.663
2018 6.394.244 2.056.511 8.450.755
2019 6.153.560 2.450.264 8.603.824

A economia não ajuda os futuros universitários

Além da pandemia, a situação econômica do Brasil passou a jogar contra o acesso ao ensino superior. Em maio de 2021, a taxa de desemprego no País chegou a 14,6%. Segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são 14,8 milhões de desempregados.

Nesse cenário, a educação superior deixa de ser prioridade para milhares de brasileiros. É o caso da estudante Rayane Gonçalves, 21. Durante a pandemia, a situação financeira da sua família piorou e ela precisou trancar seu curso: “Não cabia no meu bolso pagar por algo presencial e fazer a distância”.

Em paralelo à economia, programas de incentivo ao ingresso no ensino superior privado vêm minguando. De 700 mil contratos, em 2014, o número de financiamentos do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) caiu para 85 mil em 2019. Como reflexo da pandemia, o número de bolsas do Programa Universidade Para Todos (Prouni) diminuiu de 420 mil, em 2020, para 296 mil, neste ano. “O impacto não é grande só para as instituições, mas para o País. Nós vamos perder alguns bilhões no PIB nos próximos anos porque essas pessoas não entraram no mercado de trabalho”, avalia Elizabeth, presidente da Anup.

 

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