Mentiram para você: a IA não vai te dar mais tempo

A mesma promessa já ocorreu em outros momentos de mudanças tecnológicas

Por Felipe Matos* | OESP**
Preciso admitir: eu também caí na promessa. Como muitos, imaginei que a inteligência artificial (IA) seria uma passagem para uma agenda mais leve e fins de semana prolongados. A realidade, no entanto, tem sido outra. A IA está, sim, me tornando mais produtivo. Mas o tempo livre que ela prometeu parece uma miragem, que se afasta à medida que caminho em sua direção. E a história nos mostra que essa não é a primeira vez que nos vendem essa ilusão.

A narrativa de que a tecnologia nos dará mais tempo livre é um mito recorrente e sedutor. A IA, assim como as revoluções tecnológicas que a precederam, aumenta a produtividade, mas as forças de mercado e a natureza humana, com a necessidade de competitividade, garantem que esse ganho seja reinvestido em mais trabalho, não em mais lazer. O jogo é mais complexo e, francamente, mais injusto do que os gurus da tecnologia gostam de admitir.

Para entender o que está acontecendo agora, basta olhar para trás. O otimismo tecnológico de hoje é um eco de promessas passadas que nunca se cumpriram totalmente. A Primeira Revolução Industrial aumentou drasticamente a capacidade produtiva. A lógica diria que, se uma máquina faz o trabalho de dez homens, esses homens poderiam trabalhar menos. Aconteceu o oposto. A eficiência das máquinas a vapor consolidou o sistema fabril, onde jornadas de 14 a 16 horas se tornaram o padrão.

A segunda onda, movida a eletricidade, otimizou a produção com a linha de montagem de Henry Ford. Novamente, a promessa era de eficiência. O resultado? A eficiência não resultou em menos trabalho, mas em mais carros produzidos por hora, estabelecendo um novo e implacável padrão de produtividade para toda a indústria. Aconteceu o mesmo com a planilha eletrônica. Nenhum analista financeiro que adotou o Excel passou a trabalhar menos que seu colega com um livro-caixa. Ele passou a fazer análises infinitamente mais complexas no mesmo tempo.

Mais perto de nós, a chegada dos computadores e da internet prometeu um “escritório sem papel” e mais eficiência. O que ganhamos foi o “paradoxo da produtividade” de Robert Solow — “vemos computadores por toda parte” — e, pior, a cultura do always on. A tecnologia que deveria nos libertar do escritório acabou por colocá-lo em nosso bolso, dissolvendo as fronteiras entre trabalho e vida pessoal e gerando mais carga.
Hoje, a história se repete com uma roupagem moderninha. O padrão é assustadoramente familiar. Não sejamos céticos ao extremo. As ferramentas de IA generativa são impressionantes e entregam, sim, ganhos enormes de eficiência. Estudos do NBERMIT Stanford mostram aumentos de produtividade entre 14% e 34%. Pesquisas da Freshworks estimam uma economia de quase quatro horas por semana. O problema não está na capacidade da ferramenta, mas no que fazemos com o tempo que ela supostamente nos devolve.

O tempo ganho não se converte em folga. Ele é imediatamente reabsorvido pelo próprio sistema de trabalho de três maneiras cruéis. Primeiro, o tempo livre é visto como um vácuo a ser preenchido. Em vez de fechar o notebook mais cedo, usamos essas horas para tarefas mais “estratégicas” ou, na maioria das vezes, simplesmente para mais tarefas. A lista de afazeres não diminui, ela apenas muda de natureza. Segundo, há o imposto invisível do “workslop”, termo cunhado pela Harvard Business Review. Trata-se do lixo de baixa qualidade gerado pela IA, que parece convincente, mas exige um enorme esforço humano para revisar, corrigir e validar.

Uma pesquisa da Fast Company revelou que 39% dos trabalhadores agora gastam mais tempo revisando conteúdo gerado por IA. A ferramenta que deveria economizar tempo cria um novo tipo de trabalho tedioso. E por fim, a inflação da expectativa. Este é o golpe final. Quando a produtividade aumenta para todos, ela deixa de ser uma vantagem e se torna o novo padrão. Um estudo global recente mostrou que 77% dos profissionais sentem que a IA, na verdade, aumentou sua carga de trabalho. E um estudo do NBER, publicado este ano, foi categórico: maior exposição à IA está associada a jornadas de trabalho mais longas e menos tempo de lazer.

Por que isso acontece? A resposta não está na tecnologia, mas no capitalismo. O ganho de produtividade individual é inútil quando todos o obtêm. É uma corrida armamentista. Imagine que você ganha um superpoder que o torna 30% mais rápido. Por um breve momento, você é um herói. Mas quando todos no seu mercado ganham o mesmo superpoder, você não é mais especial. Você apenas precisa correr 30% mais rápido para não ser demitido. A linha de base da competitividade sobe para todos. Os benefícios dessa produtividade são capturados pelas empresas, que os usam para competir de forma mais agressiva, ou são repassados aos consumidores na forma de preços mais baixos. Raramente eles chegam ao trabalhador na forma de tempo. Um estudo do NBER com chatbots na Dinamarca foi brutalmente honesto: apenas 3% a 7% dos ganhos de produtividade foram convertidos em salários maiores. Sobre tempo livre, o impacto foi nulo.

A promessa de mais tempo livre com a IA é uma falácia. Acreditar nela é ingenuidade. A história nos ensinou que a tecnologia não nos dá tempo, ela redefine o que é possível fazer no tempo que temos. A IA não é uma ferramenta de lazer, é uma arma de produtividade em um mercado hipercompetitivo. A verdadeira revolução que ela propõe não é trabalhar menos, mas sim ampliar drasticamente o valor que podemos gerar com o mesmo tempo. A competição do futuro não será por quem tem mais tempo livre, mas por quem usa a IA para criar, inovar e resolver problemas de forma que antes era impossível.

Portanto, a pergunta a ser feita não é “Como a IA pode me dar mais tempo?”, mas sim: “Como posso usar a IA para me tornar tão valioso que meu tempo seja meu para negociar?” No fim, a IA não vai te libertar da roda de hamster. Ela apenas a fará girar mais rápido. A escolha de correr ou de aprender a construir uma roda nova continua sendo sua.

*Opinião por Felipe Matos – Sócio da consultoria 10K Digital, é especialista em IA, tecnologia, negócios e no ecossistema de startups, com mais de 25 anos de experiência. Autor do livro “10 Mil Startups”.

**Estado de São Paulo, https://www.estadao.com.br/link/felipe-matos/mentiram-para-voce-a-ia-nao-vai-te-dar-mais-tempo/?srsltid=AfmBOopGt1izfscO8-SZo1Ce7VNgkG0r4mX3KuTPiSQZ6kAvnljBvFxU, 30/09/2025

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