Por que levar ciência de dados para as escolas? ‘Ainda ensinamos Matemática como há cem anos’

Jo Boaler, professora de Stanford, explica que não existe um cérebro mais propenso para a área e que errar é essencial na aprendizagem

Renata Cafardo | OEST*

A professora da faculdade de Educação da Universidade de Stanford (EUA) Jo Boaler tem chamado a atenção mundialmente ao defender uma Matemática com menos símbolos e mais conectada com a vida real, com menos respostas certas e mais estimativas. E uma das formas de ensinar essa “Matemática criativa e diversa”, afirma, é incluindo a ciência de dados nos currículos e tendo menos álgebra, trigonometria, cálculo. “Continuamos apenas ensinando a mesma Matemática que ensinávamos cem anos atrás”, afirma a pesquisadora.

A educadora, que causou polêmica ao ajudar a reescrever o novo currículo da Califórnia, usa descobertas da neurociência para também derrubar o mito de que existe um cérebro matemático. “Muitos pais e alunos acreditam nisso, então se eles começam a achar algo difícil em uma aula de Matemática, passam a pensar que não têm o cérebro certo e, aí, as coisas pioram.”

Ela explica que todos podem ser bons em Matemática se “exercitarem o cérebro”, mudarem atitudes com relação à disciplina e entenderem a importância do erro e de se deparar com atividades difíceis. “Um dos melhores momentos para o nosso cérebro é quando estamos cometendo erros. Apenas acertar tudo não é exercitar o cérebro. Se as crianças forem levadas a se sentirem mal por causa dos erros, isso realmente vai afastá-las do aprendizado.”

Jo está no Brasil esta semana para palestras em eventos do Instituto Sidarta e da Associação de Jornalistas de Educação (Jeduca), além de lançar seu novo livro, Matematicando. Veja a seguir os principais trechos da entrevista.

Por que você acha que as pessoas acreditam que não são boas em Matemática e que isso nunca mudará?

Por causa de várias coisas, uma delas é o mito generalizado de que existe algo como um cérebro matemático e que apenas algumas pessoas o têm. Muitos pais e alunos acreditam nisso. Se eles começam a achar algo difícil em uma aula de Matemática, pensam que não têm o cérebro certo e, aí, as coisas começam a piorar. Esses mitos combinados com a maneira como a matemática é frequentemente ensinada, com muitos procedimentos para memorizar, mesmo que os alunos sejam bons nisso, é muito pouco inspirador. Eles não têm a oportunidade de usar suas ideias e reflexões, se afastam do assunto. Além disso, temos esses estereótipos sobre quem pode ser bom em matemática e tem muito a ver com ser masculino e ser de certa etnia. Tudo isso se combina neste sistema horrível e muitas pessoas pensam que a Matemática não é para elas.

Mas o que se descobriu nos últimos anos sobre como o cérebro aprende Matemática?

Aprendemos como o cérebro funciona e processa Matemática, mas tudo sempre demora muito para entrar nas escolas. Uma das grandes descobertas importantes da neurociência foi que não existe um cérebro matemático. E que os cérebros de todo mundo estão mudando, construindo e se desenvolvendo o tempo todo. Também descobrimos que há vários caminhos diferentes no cérebro que podemos usar para pensar sobre Matemática, e queremos exercitar todos eles. Já faz muito tempo que apenas pedimos aos alunos para calcular com números, e isso só exercita parte do cérebro. Podemos pedir também que visualizem e desenhem, vejam representações visuais. Isso envolverá os caminhos visuais no cérebro. Assim temos também uma experiência matemática mais multidimensional, construída fisicamente, movendo, desenhando e escrevendo, de várias maneiras diferentes. É importante também que os alunos sejam informados de que seus cérebros estão sempre se adaptando, mudando e crescendo, e que não são fixos. Mas raramente vejo qualquer uma dessas coisas sendo discutidas com os alunos, e acho que os sistemas escolares ainda acreditam na ideia de que apenas alguns podem fazer Matemática. Outra descoberta importante foi que um dos melhores momentos para o nosso cérebro é quando estamos lutando, cometendo erros.

Há um mito generalizado de que existe algo como um cérebro matemático e que apenas algumas pessoas o têm. Muitos pais e alunos acreditam nisso.”  Jo Boaler

Pode explicar melhor por que o erro é tão importante?

É quando o cérebro está fervendo na construção de conexões e criando novos caminhos. Os mapeamentos do cérebro humano durante testes mostraram que quando as pessoas cometiam erros, se elas têm um mindset de crescimento, havia muita conectividade e desenvolvimento. Se elas tinham um mindset fixo, não era tão bom. Quando as pessoas acreditam que cometer erros é bom, e cometem erros, isso resulta em muita atividade cerebral. Quando você está aprendendo, é muito importante encontrar coisas difíceis, errar, corrigir, seguir adiante, cometer mais erros. Apenas acertar tudo não é realmente exercitar o cérebro. Se as crianças forem levadas a se sentirem mal por causa dos erros, isso realmente vai afastá-las do aprendizado no futuro. Eles devem ser incentivados a enfrentar dificuldades e se sentirem bem com isso.

Como você aconselharia os pais a reagir às notas baixas das crianças na escola?

A mensagem para estudantes que têm notas baixas na escola é que qualquer pessoa pode mudar sua aprendizagem a qualquer momento. Não sentir que isso significa: ‘eu não sou bom em Matemática, já posso desistir’ e, sim, perceber o que é preciso fazer de diferente daqui para frente e encontrar maneiras de ter sucesso. Qualquer um pode realmente mudar sua própria jornada de aprendizagem. Quando se entrevistam alguns dos grandes matemáticos e outras pessoas bem-sucedidas, eles contam que tiraram notas baixas e não se saírem bem em certos momentos de suas vidas. Um dos meus matemáticos favoritos, Steve Strogatz, da Cornell University, conta que quando fez Matemática na universidade, tirava notas mais baixas do que em qualquer outra matéria. Mas ele continuou e não deixou isso desanimá-lo e agora ele é um matemático renomado.

Você também fala muito sobre a importância de trabalhar duro com o cérebro, de treiná-lo. Como você vê a inteligência artificial nesse contexto, com ela fazendo tudo pelos nossos cérebros?

Quando se trata de Matemática, a IA é realmente boa apenas em cálculos, que é uma pequena parte da Matemática, e realmente já temos computadores e celulares para fazer isso há muitos anos. As outras partes importantes, que é pensá-la de forma flexível e criativa sobre diferentes maneiras de trabalhar, compreendendo os cálculos e pensando sobre como eles se aplicam às situações, nada disso pode realmente ser feito com IA. Então, acho que a IA, se for o caso, empurra os alunos para esse trabalho mais importante, que sempre pedimos na educação. Entender os cálculos, falar sobre eles e por que você escolhe um método em detrimento de outro, realmente aprender a ser flexível no uso dos números. Todas essas coisas são ainda mais importantes agora que temos IA para fazer o cálculo.

No seu novo livro você fala também de uma Matemática mais flexível, que considera estimativas e você chama de math-ish, é isso que falta nas escolas?

O meu argumento é que as salas de aula de Matemática são sempre sobre precisão. E isso é o que assusta muitos jovens, eles sempre têm que estar certos e parece ser muito ruim estar errado. Mas, no mundo real, quando usamos Matemática, na maioria das vezes usamos números estimados. Por exemplo, quanto tempo leva para chegar ao aeroporto, quanto de chuva caiu na noite passada, quanta tinta preciso para pintar a parede. Tenho vídeos de professores que ajudam seus alunos a encontrar números estimados nas suas aulas e ficam surpresos sobre como as crianças estão dispostas a compartilhar seus pensamentos. Mesmo os que eram muito quietos, com medo da Matemática, ficam mais dispostos a dar ideias. Isso abre a Matemática para mais crianças. Existe também uma rica história dos números que é tão interessante, eles vêm de várias partes do mundo, incluindo da Amazônia brasileira. Esses diferentes sistemas numéricos são fascinantes e mostram muitas formas visuais do pensamento numérico. Tudo isso ajuda a desenvolver o interesse na Matemática, a ver que não é invenção de homens ocidentais.

As salas de aula de Matemática são sempre sobre precisão. E isso é o que assusta muitos jovens, eles sempre têm que estar certos e parece ser muito ruim estar errado. Mas no mundo real na maioria das vezes usamos números estimados

Jo Boaler

Você acha que aprendemos muitas coisas nas escolas que são inúteis de Matemática?

Sim, acredito que continuamos apenas ensinando a mesma Matemática que ensinávamos cem anos atrás. Os currículos estabelecidos em diferentes países são exatamente os mesmos do passado. Não nos atualizamos e não estamos incorporando Matemática que é usada no mundo agora. Não estamos trazendo a ciência de dados, por exemplo. Definitivamente, acredito que precisamos modernizar a Matemática que é ensinada. E parte do problema que muitos professores enfrentam é que eles sentem que há muita coisa no currículo. É preciso apressar os professores, apressar os alunos, sem aprofundar em nada. Enxugar e retirar conteúdos que não são mais úteis ajudaria muito e permitiria aos professores aprofundar-se nas ideias mais importantes.

Mas é muito difícil mudar currículos, não? Você enfrentou uma verdadeira guerra ao fazer isso na Califórnia.

Nos EUA, a Matemática é uma matéria fortemente estruturada, em que crianças são colocadas em diferentes tipos de grupos de habilidade desde cedo. Decide-se muito cedo qual caminho o aluno vai trilhar pelas suas notas de Matemática. Participei da equipe que elaborou uma nova estrutura de Matemática para a Califórnia e propusemos não decidir o que os estudantes podem fazer quando têm 7 anos. Vamos dar-lhes mais chances de avançar e mostrar o que podem fazer. Mas esse sistema tem beneficiado os estudantes privilegiados por muito tempo. Eles me escolheram para atacar e, você sabe, alguns grupos quando tentam impedir mudanças, tendem a mirar em uma pessoa, frequentemente um acadêmico. Foi bastante desagradável para mim, tentaram destruir minha reputação. As pessoas têm se oposto a qualquer mudança em Matemática. E, de fato, todos os educadores, toda a comunidade de educação matemática, está de acordo que precisamos dessas mudanças. Mas, de certa forma, vencemos porque a estrutura foi aprovada e essas mudanças estão entrando lentamente nas escolas. Uma das novas coisas que introduzimos no currículo é a ciência de dados.

Qual a importância das crianças aprenderem ciência de dados?

Eu me juntei a um economista famoso, Steven Levitt, que escreveu Freakonomics. Ele me procurou há alguns anos porque, ao olhar a lição de casa de Matemática dos seus filhos, percebeu que ainda estavam fazendo a mesma Matemática. E onde estão os dados? Então nos unimos e começamos a falar sobre a importância disso na educação. Essa literacia de dados só fica mais e mais importante para os jovens e para todas as pessoas. Todo mundo precisa ser capaz de entender o sentido das representações de dados, de separar fato de ficção, há muita desinformação por aí. Precisamos que os estudantes tenham literacia de dados para estar seguros. Esse foi um dos impulsos do novo currículo da Califórnia, de ter um curso de ciência de dados no ensino médio. Mas foi alvo do grupo de tradicionalistas que apenas queriam álgebra, trigonometria e cálculo. Foi muito confuso para as escolas, e enquanto isso, outros Estados dos EUA estão abraçando a ciência de dados.

E como você vê os professores nessa mudança? Eles estão interessados em mudar?

Houve uma grande pesquisa feita nos EUA com professores de Matemática de ensino fundamental e médio, que foram perguntados se deveríamos ter apenas cálculo, apenas ciência de dados ou ter ambos para crianças. E 95% dos professores disseram que deveria haver ciência de dados ou ambos. Só 5% disseram apenas cálculo. Há grande apoio por parte dos professores. Eles veem a natureza antiquada da Matemática que ensinam para os alunos no ensino médio. Uma das recomendações é que todos usem dados, em todas as idades, não se trata só de um curso de ensino médio, mas que todos os professores tragam dados e ensinem com eles. Mas há muitos professores que também têm medo de Matemática. Pedir para ensinarem algo mais é um pouco assustador. Mas o que descobrimos é que, quando os professores tentam uma investigação de dados, veem como os alunos estão engajados.

Que tipo de experiências já existem nesse sentido na educação?

Temos alunos do 2º ano que resolveram fazer um banco de dados da suas próprias tartarugas. Outros, do 4º ano, ajudaram, com pesquisa de dados, a biblioteca da escola a descobrir quais livros os alunos mais gostavam para que pudessem ser comprados; eles apresentaram seus resultados, pensaram em como usar o dinheiro. E esses alunos estavam aprendendo todos esses importantes dados, Matemática, mas combinados a outras coisas, comunicação, por exemplo. A ciência de dados se integra muito bem em todas as diferentes matérias, é importante também para notícias, para saber quão precisa é alguma informação. Uma pesquisa feita pelo Freakonomics perguntou a todos que acessam seu site quais tópicos da Matemática estão usando em suas vidas diárias: álgebra, trigonometria, cálculo, mas também visualizações de dados usando planilhas, leitura de tabelas, gráficos. Todos não achavam que usavam nada da Matemática tradicional e, sim, essas habilidades de dados, que precisam em seus trabalhos. Preparar os alunos para aprender sobre dados os ajudará no futuro, nas suas vidas, em seus empregos, qualquer que seja.

Durante o ensino fundamental e médio, a maioria dos alunos, mesmo aqueles que adoravam Matemática, começam a não gostar mais. Por que isso acontece?
Bem, não sei exatamente como as escolas de fundamental 2 e ensino médio ensinam Matemática no Brasil, mas nos EUA, quando você vai progredindo nas séries, as aulas são cada vez mais apenas sentar e ouvir o professor mostrar métodos. Quando você é um adolescente em desenvolvimento, você quer usar suas próprias ideias, ser ouvido, ser uma pessoa completa. Então, exigir que esses jovens apenas sentem, ouçam, façam o que é mostrado, sem autonomia e pensamento próprio, faz com que muitas vezes eles não queiram continuar com a Matemática.

*Estado de São Paulo, https://www.estadao.com.br/educacao/por-que-levar-ciencia-de-dados-para-as-escolas-ainda-ensinamos-matematica-como-ha-cem-anos/?srsltid=AfmBOoqCvxXb2PEqfBoRU6gpah6TiBC5YaBbk8hG9Ti5_rDayUO_ygJX, 19/08/2025

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