A dificuldade da geração Z com teclados físicos

Entre vídeos curtos, IA e celulares, nascidos entre 1995 e 201o veem habilidade de digitar e pensar por conta própria se esvair – e isso deixa educadores preocupados

HENRIQUE SAMPAIO | OESP*

Conhecida por ser nativa digital, a geração Z (nascidos entre 1995 e 2010) cresceu deslizando habilmente os dedos em telas. No entanto, digitar com fluidez em um teclado físico, uma habilidade considerada básica, especialmente entre millennials, tem se tornado um desafio inesperado para muitos jovens que ingressam no mercado de trabalho ou na universidade.

O problema, no entanto, não é tão simples quanto parece. A dificuldade de digitar com agilidade e sem olhar para o teclado é apenas o sintoma mais visível de uma mudança mais profunda na relação da juventude com a escrita, a leitura e, em última instância, a própria produção do pensamento.

Organização Não é a técnica de escrever que está em jogo, mas a capacidade de organizar as ideias, diz professor

O computador (notebook ou desktop), considerado o ambiente adequado para trabalho e estudo, vem sendo trocado pelo celular até na entrega de trabalhos escolares. Processadores clássicos de texto como Word e mesmo o Google Docs, vêm sendo trocados pelo Canvas, uma plataforma voltada ao design gráfico e amplamente utilizada por criadores de conteúdo para elaboração de artes em mídias sociais. De acordo com a Instructure, dona da ferramenta, quase 4 em cada 10 trabalhos escolares feitos na plataforma foram submetidos em sua versão para celulares.

“Tem muita gente da geração Z que consegue digitar relativamente bem, mas olha bastante para o teclado”, observa Milie Hajì, gerente de atração de talentos da Cia. de Talentos, empresa de consultoria de educação para carreira.

Embora a digitação em si não tenha sido uma reclamação constante das empresas, de acordo com Milie, outro aspecto relacionado à habilidade tem se tornado preocupante: a escrita. “A habilidade de redação, de ortografia e de gramática tem sido muito requisitada. Hoje em dia vemos, inclusive, pedidos de aplicação com redação, algo que não víamos faz um tempo.” Para ela, os jovens acabam compensando a falta de técnica com outras formas de expressão: emojis, reações e a linguagem visual.

Em meio a vídeos de TikTok de competições de digitação e apreciação por teclados mecânicos, cresce o reconhecimento de que digitar bem ainda importa. A verdadeira preocupação dos educadores e recrutadores não está na digitação em si, mas sim no que a falta dela revela: uma perda gradual de autonomia intelectual, escrita crítica e raciocínio estruturado, num cenário dominado por plataformas digitais, textos instantâneos e inteligências artificiais cada vez mais presentes.

A PERDA DA ESCRITA. Sete em cada dez jovens que estão ou querem estar na faculdade fazem uso frequente de inteligência artificial (IA) generativa na rotina de estudos, como ChatGPT, de acordo com um estudo realizado pela Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes). Para o professor e pesquisador Pablo Vallejos, doutor em Comunicação pela PUC-Rio, há um processo de terceirização da inteligência em curso. “Digitar, desenhar, escrever com letra cursiva são produções de sentido coreografadas entre o cérebro, o corpo e os instrumentos. Se uma inteligência sintética ocupa o teu lugar de protagonismo, você está sendo dominado, está passando por um processo de colonização dessa tecnologia.”

Segundo Vallejos, o problema não é exatamente a IA em si, mas a forma como ela entra em espaços fundamentais de formação do pensamento. “A partir do momento em que você adota instrumentos atribuindo a eles a responsabilidade média ou completa de fabricar discurso, você está atribuindo ao outro – a esse outro sintético, artificial, algorítmico – a responsabilidade do fazer saber.”

Filipe Mantovani Ferreira, professor de língua portuguesa no Instituto Federal de São Paulo (IFSP) e doutor em Letras pela USP, vai na mesma direção. Para ele, a escrita é uma atividade que envolve muito mais do que organizar palavras. “O ato de escrever é um ato complexo. Você mobiliza conhecimentos enciclopédicos, estrutura textual, domínio da norma, adequação ao gênero e ao interlocutor. Escrever nunca é simples. E se não criamos estratégias para garantir que os alunos tenham essa experiência, cometemos um erro.”

O que está em jogo, portanto, não é apenas a técnica de digitar ou escrever, mas a capacidade de pensar com profundidade, de argumentar e de organizar ideias com começo, meio e fim. Vallejos afirma que, antes mesmo da IA, muitos adolescentes (ou mesmo adultos de outras gerações, como millennials) já vinham desenvolvendo dificuldades em formular perguntas básicas, organizar raciocínios e expressar seus pensamentos. “As interfaces, os emojis, os áudios acelerados, tudo isso encurta a fabricação do sentido. Em vez de discorrer sobre meus medos e ansiedades, eu envio uma figurinha da Gretchen. E essa miniaturização da comunicação atrofia nossa capacidade de argumentação.”

Essa mudança é acompanhada por uma transformação mais ampla na maneira como os conteúdos circulam online. Mantovani observa que, uma década atrás, os textos ainda ocupavam um espaço central nas redes. “A internet era diferente. Você escrevia mais e-mails, os textos circulavam mais no Facebook, os ‘textões’ ainda existiam. Hoje, mesmo os perfis jornalísticos trabalham com textos bem reduzidos.”

O que predomina agora são vídeos curtos e conteúdos multimodais – que misturam estímulo visual, auditivo e escrita mínima. “O vídeo vira uma linguagem privilegiada”, diz Mantovani. “E o texto escrito mesmo parece que perde um pouco o espaço. Ainda existem roteiros por trás desses vídeos, claro, mas a tendência é o estímulo rápido, com conteúdo muitas vezes raso.”

PENSAMENTO CRÍTICO. O impacto dessa lógica se vê em sala de aula. “Às vezes gastamos 30 minutos discutindo um poema. A questão é: quantos alunos conseguem manter a atenção por esse tempo?”, diz Mantovani. “O tédio sempre existiu, mas

“Digitar, desenhar, escrever com letra cursiva são produções de sentido coreografadas entre o cérebro, o corpo e os instrumentos. Se uma inteligência sintética ocupa o teu lugar de protagonismo, você está sendo dominado, está passando por um processo de colonização dessa tecnologia” – Pablo Vallejos – Doutor em Comunicação/PUC

a impressão é que agora está pior.” Mesmo com a aprovação da lei que proíbe o celular nas escolas, em janeiro, muitos alunos não conseguem ficar longe da tela e acessam o celular de forma escondida, conta Mantovani.

Mais do que distração, o que está em risco é a própria formação de um pensamento crítico e autoral. Quando o tempo de atenção se reduz, e a lógica da hiperprodutividade exige atalhos, a tendência é substituir o processo reflexivo por fórmulas prontas. “A IA pode sugerir alternativas, corrigir textos, revisar, mas se o aluno não souber como é um relatório, por exemplo, qualquer coisa serve. E aí o texto nem é lido, vira algo feito por uma IA e resumido por outra IA depois”, alerta Mantovani.

Diante desse cenário, professores e escolas se veem diante de um dilema: adaptar-se às novas linguagens digitais ou resistir a elas em nome da formação crítica e aprofundada? Mantovani acredita que é possível – e necessário – fazer os dois movimentos ao mesmo tempo.

“A educação está sendo pressionada a se adaptar ao aluno. E parte disso é justo. Mas também precisamos resistir à ideia de que todo conteúdo pode virar um vídeo de 20 segundos. Há temas que exigem tempo, paciência e aprofundamento. Se a gente achata tudo, a gente empobrece a educação”, afirma Mantovani.
*Estado de São Paulo, https://www.estadao.com.br/link/cultura-digital/textao-chatgptdificuldade-geracao-z-digitar-crise-escrita-nprei/?srsltid=AfmBOopNav1RYvbdNhvPJOLoQ-W0RyX_Rq3fouyt1miZ7iuLR2FOfr2Khttps://digital.estadao.com.br/o-estado-de-s-paulo, 27/06/2025

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