Arqueólogos descobrem a ‘mais antiga indústria da pedra lascada’ de SP, com 3,8 mil anos, no Morumbi, Zona Sul

Segundo os pesquisadores, sítio lítico [local utilizado pelo ser humano para a fabricação de objetos em pedra] do Morumbi é o mais antigo já encontrado na cidade de São Paulo. Amostras de carvão e solo preservadas permitiram a datação do terreno. Mais de 2 mil exemplares de pedras lascadas foram coletados para novos estudos e registro histórico.

Por Renata Bitar, g1 SP — São Paulo*

Uma “indústria da pedra lascada” foi descoberta em plena região do Morumbi, na Zona Sul de São Paulo. Segundo os pesquisadores, o sítio arqueológico é o mais antigo da capital e tem vestígios de vida humana que datam entre 3.800 e 820 anos.

O terreno no bairro Jardim Panorama foi localizado pela primeira vez em 1964, mas estimar sua idade só se tornou possível recentemente, com amostras de carvão, solo e rochas coletadas em 2022 pela equipe dos arqueólogos Letícia Cristina Corrêa, da Universidade de São Paulo (EACH-USP), e Paulo Eduardo Zanettini, da empresa Zanettini Arqueologia.

A grande maioria das pedras encontradas no local são de silexito, uma rocha composta por grãos muito finos de quartzo que tem boa capacidade de lascamento, podendo ser utilizada na ponta de lanças ou flechas, por exemplo.

“Na bacia sedimentar de São Paulo, aconteceu esse caso raro geológico que é existir na região do Morumbi o afloramento de um tipo de pedra com características adequadas para a produção de ferramentas. Essa rocha existe em profundidades muito grandes e, nesse caso, ela chegava até o solo”, contou Paulo Zanettini.

Há dois anos, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) requisitou novas escavações no sítio, como condição para autorizar a construção de imóveis residenciais no terreno onde ele fica, que é particular.

“A gente tinha que falar para o Iphan qual era o estado do sítio arqueológico e se restava alguma porção preservada dele, onde desse para escavar e tirar alguma informação”, explicou Letícia Corrêa, coordenadora de campo do estudo.

Até então, pesquisas realizadas no local apontavam que o terreno já havia sido muito mexido, perdendo seu contexto arqueológico e tornando inviável a datação do sítio (entenda mais abaixo).

Contudo, o novo estudo descobriu aspectos inéditos do sítio arqueológico que foram documentados em um relatório entregue ao Iphan, ao qual o g1 teve acesso.

Confira a história do Sítio Morumbi, de sua descoberta à datação, nesta linha do tempo:

Déc.1960 – primeiros registros

“O sítio é fruto do que a gente chama de um achado fortuito”, descreveu o arqueólogo Paulo Zanettini.

Os primeiros registros sobre a presença de artefatos arqueológicos no terreno foram realizados pelo engenheiro civil Caspar Hans Luchsinger, na década de 1960. O suíço era um dos responsáveis pelo loteamento da área que veio a se tornar o bairro Jardim Panorama.

Tendo conhecimento prévio sobre arqueologia, Luchsinger decidiu coletar uma amostra de rochas e lascas, que eram abundantes no local, e encaminhá-la para o então Instituto de Pré-História da USP, cujo acervo atualmente compõe o Museu de Arqueologia e Etnologia da universidade.

Junto às pedras, o engenheiro enviou um material descritivo da amostra e um mapa elaborado à mão, que indicava a localização do sítio arqueológico e os pontos onde havia concentração de artefatos. Segundo o documento, a descoberta do “sítio lítico [local utilizado pelo ser humano para a fabricação de objetos em pedra] do Morumbi” ocorreu em maio de 1964. Já o mapa, foi elaborado três anos depois, em outubro de 1967.

Déc.1990 – redescoberta

Segundo Zanettini, por um motivo desconhecido, a pesquisa de Luchsinger não foi levada adiante na época da descoberta. Passados quase 30 anos, os registros do engenheiro foram encontrados por um membro do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH) da Prefeitura de São Paulo.

Por meio deles, Astolfo Araújo conseguiu localizar o sítio e retomar as pesquisas no local. Lá, encontrou matacões – blocos com mais de 25 cm de diâmetro – de silexito.

“Esses matacões na área externa permitem materializar um pouco o que é esse sítio arqueológico, um lugar onde homens, mulheres e crianças trabalharam durante um período muito longo, extraindo e produzindo seus utensílios. Eu precisava afiar minha flecha de madeira, abater animais, cortar madeira, produzir minha canoa, minha flauta de osso… e esse utensílios vão ganhando múltiplas formas para atender às demandas que existiam”, explica Paulo Zanettini.

Anos 2000 – escavações

No início do milênio, o terreno do sítio foi adquirido para a construção de um condomínio de casas. Devido à relevância histórica do local, o comprador precisou contratar uma empresa de arqueologia para fazer escavações e estudar a área, visando obter uma liberação para intervir no solo.

Entre 2001 e 2006, a empresa responsável coletou mais de 200 mil peças identificadas como produtos de lascamento (veja nas imagens abaixo).

Também foram obtidas amostras de carvão e rochas com marcas de queima, materiais que podem ser utilizados para a datação de sítios arqueológicos – nesse caso, para identificar há quanto tempo o local tem registro de presença humana.

Contudo, os pesquisadores da companhia não consideraram os itens como “confiáveis” para essa finalidade. Isso porque, segundo eles, o contexto arqueológico de onde foram coletados não parecia conservado — o solo poderia ter sido revolvido, misturando camadas de terra antigas e recentes, deslocando vestígios existentes de suas posições originais.

Ainda nessa época, em 2004, Astolfo Araújo emitiu um laudo que confirmava que fundações colocadas no local para a construção de casas haviam alterado severamente o cenário do sítio. Com isso, os donos tiveram que assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) para não serem punidos pelo Iphan.

Esse acordo previa medidas compensatórias pelos danos causados, dentre elas a elaboração de um Centro de Referência Arqueológica para registro e divulgação de informações arqueológicas no município de São Paulo. Com o cumprimento do TAC, as obras puderam ser retomadas.

2022 – datação e resultados

Há dois anos, após o auge da pandemia de Covid-19, o dono do terreno optou por mudar o tipo de empreendimento que seria construído no local. Em vez de um condomínio de casas de luxo, seria erguido um prédio de moradias com função social.

Com a mudança, o Iphan determinou uma nova leva de pesquisas para “esgotar” as possibilidades de coleta de informações no sítio arqueológico, antes que ele sofresse ainda mais alterações por maquinários.

Foi nesse contexto que houve a contratação da empresa Zanettini Arqueologia, que, junto a pesquisadores da Universidade de São Paulo, realizou novas escavações no local.

“As nossas pesquisas, desenvolvidas entre eu, o Paulo e o professor Astolfo, tiveram um resultado inédito, que foi mostrar que ainda tinha uma parte preservada do sítio”, afirmou a arqueóloga Letícia Corrêa, que coordenou o trabalho de campo das equipes.

De acordo com a pesquisadora, ao notar a semelhança entre algumas pedras durante as escavações em uma pequena área do terreno, ela conseguiu fazer uma espécie de quebra-cabeça com os materiais. Essas “lascas térmicas” seriam resultado de exposição a altas temperaturas, ou seja, causadas de forma natural, sem interferência humana. Remontá-las foi considerado um indicador de que aquele solo permanecia em sua posição original, tornando possível a datação do sítio.

“A remontagem foi o que deu a certeza pra gente de que os carvões estavam em contexto, o material arqueológico estava em contexto, tudo ali estava preservado”, declarou Corrêa.

A arqueóloga contou ao g1 que foram coletadas nove amostras de carvão (restos de fogueiras, por exemplo) e outras nove de solo. Por meio delas, conseguiram fazer análises e determinar que houve atividade humana no sítio há pelo menos 3800 anos – data que poderia ser ainda mais antiga caso fosse possível estudar as áreas do terreno que já não estão preservadas.

“As amostras de carvão, elas datam precisamente o evento da queima. Então, a gente consegue saber muito preciso quando estava ali. Tendo esse contexto preservado, a gente consegue associar ‘bom, esse carvão tem ferramenta de pedra lascada junto, então ele é seguro para datar'”, explicou.

“O solo é uma outra maneira de se datar o sítio. Se a gente não tivesse o carvão em hipótese alguma, a gente poderia usar o solo. Esse método de datação, ele permite a gente entender quando aquela terra recebeu a luz solar pela última vez. Então, considerando que ela está coberta por sucessivas camadas, a gente faz a coleta sem contaminação da luz solar atual e aí ela também permite datar o sítio arqueológico”.

Ao todo, foram coletadas mais de 2,3 mil peças de matéria-prima nesse último estudo, sendo a maioria delas lascas com menos de 2 centímetros. Também foram armazenados 57 sacos de coleta amostral de solo, material que poderá ser utilizado em futuras pesquisas sobre o sítio.

O arqueólogo Paulo Zanettini, responsável pela parte científica do estudo, elaborou um relatório para o Iphan, no qual apresenta as descobertas recentes, descreve todos os procedimentos efetuados no terreno e conclui que ele já pode ser liberado para a construção de moradias.

Segundo Zanettini, o documento foi entregue em maio de 2023 e após quase um ano, o Iphan liberou em definitivo a construção do conjunto habitacional no terreno, considerando que sua área ainda preservada já foi completamente escavada ao longo das últimas décadas.

*Portal G1, https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2024/04/08/arqueologos-descobrem-a-mais-antiga-industria-da-pedra-lascada-de-sp-com-38-mil-anos-no-morumbi-zona-sul.ghtml, 08/04/2024

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