Portal Portal UOL, https://noticias.uol.com.br/colunas/presenca-historica/2022/08/31/como-as-cotas-subvertem-a-educacao-excludentes-que-impera-desde-o-seculo-19.htm, 31/08/2022

Como as cotas subvertem a educação excludente que impera desde o século 19

Patricia Alves Melo Colunista do UOL

Dois meninos na Manaus do século 19 estavam sob os cuidados do Juízo dos Órfãos após a extinção da escola onde estudavam. O estabelecimento dos “Educandos Artífices” era uma instituição criada na província do Amazonas em 1857 para colocar em prática projetos de educação profissional das crianças “pobres e desvalidas”. Flausino Carvalho tinha 10 anos e Raimundo Araújo, 12. A tal escola foi extinta em 1877 e todas as crianças que ali estudavam ficaram ao encargo do Juízo dos Órfãos por conta de sua condição particular.

Nesse mesmo ano, como muitas outras pessoas o fizeram, Pedro Sympson, autor da “Gramática da Língua Brasileira” e político local, requereu a tutela dos dois garotos com a promessa de lhes ensinar um ofício e pagar uma pequena remuneração chamada de “soldada”. Calisto Silva, outro “órfão desvalido” e ex-aluno dos “Educandos” também teve sua tutela requerida sob a condição de trabalhar em troca de uma certa educação. Era coisa bem comum naqueles tempos.

Uma história com muitas camadas é o que temos aqui. O acesso à educação formal no Brasil do século 19 era bastante complexo e trazia as marcas características das hierarquias sociais. A escola era para poucos. Dados do Recenseamento de 1872 relativos a “pessoas livres”, condição jurídica dos meninos, apontam que 23% dos homens sabia ler (contra 13% das mulheres na mesma condição) e que só 17% dos homens livres de 6 a 15 anos frequentavam a escola. (Link 1)

Esses números nos dão a dimensão do quanto o acesso à educação era restrito, mas eles não revelam, de imediato, o fato de que nem todo tipo de ensino estava ao alcance de todo mundo. É essencial falar sobre esse tema na semana em que chegamos aos 10 anos de implementação da Lei de Cotas no Brasil. E é importante dizer que as crianças “pobres e desvalidas” tinham cor: eram, majoritariamente, negras e indígenas, como já notava o viajante alemão Robert Avé-Lallemant em 1859: “meninos, quase todos índios, perambulando sem nenhuma vigilância, são recolhidos a esse instituto e transformados em trabalhadores úteis”.

O que eram os “Educandos Artífices”?

Existiram escolas do mesmo modelo dos “Educandos” em várias províncias do Império, além do Amazonas. Foram fundadas no Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte, Alagoas, Sergipe e São Paulo.

Implementadas a partir de 1840, a primeira delas foi a do Pará e havia intensa troca de informações entre elas, como revelou o estudo de César Augusto Castro. A do Pará serviu de modelo para a do Maranhão que, por sua vez, ajudou a implementar a experiência no Ceará e ainda recebeu do Amazonas demandas que incluíam o envio de mestres para o novo estabelecimento na província.

Eram instituições dedicadas a preparar trabalhadores especializados e evitar que os “desvalidos” se tornassem futuros vadios. Atendiam a “mocidade” a partir dos 7 anos, sendo que a maior parte delas era de tipo asilar, ou seja, lugares onde o contato dos alunos com a família era restrito e controlado.

O tempo de existência de tais escolas foi muito variado e a do Amazonas parece ter sido uma das mais longevas. Algumas delas foram extintas e, depois, reestabelecidas com outras denominações, sem que se alterassem seus objetivos de formação profissional mecânica da infância pobre. Um exemplo é o caso do Pará, extinta em 1852 e recriada em 1874.

Especialistas consideram que as instituições de ensino profissionalizante do período republicano, ainda que pudessem funcionar nos mesmos espaços das oitocentistas, faziam parte de um novo cenário da formação profissional. Contudo, mais que contar sobre a vida dessas instituições, interessa chamar atenção para o que faziam, para quem e como faziam. Ou seja, quem eram essas crianças e que tipo de ensino recebiam.

Educar para (determinado tipo de) trabalho

A preocupação de ensinar ofícios a “órfãos e desvalidos” é antiga e estava prevista nas Ordenações Filipinas, compilação de leis portuguesas do século 16 que também vigorou no Brasil imperial. Nesse sentido, registra-se a atuação de instituições religiosas, mas de alcance limitado. Foi no século 19 que o tema do ensino de ofícios ganhou mais espaço nos debates relacionados à educação, momento em que ocorreu uma expansão das iniciativas que articulavam educação e trabalho para alcançar crianças “pobres e desvalidas”.

Esse novo processo de formação de trabalhadores toma corpo na incorporação forçada de crianças e adolescentes às oficinas dos arsenais militares (Guerra e Marinha), às Companhias de Aprendizes Artífices e de Aprendizes Marinheiros que surgiram no Brasil na primeira metade do século 19, ao lado de outras instituições similares como demonstram os estudos de Irma Rizzini e Jorge Prata Sousa.

Tais escolas militares foram uma referência essencial para a implementação de uma educação destinada para essa população específica. Estudos registram que foi da escola de Aprendizes Menores do Arsenal de Guerra, datada de 1838, de onde saíram os modelos pedagógicos e organizacionais dos “Educandos Artífices.

Os “Educandos” tornaram-se instituições marcadas pela disciplina rígida, com uso de castigos físicos, inclusive com existência de prisões em suas dependências, onde crianças e adolescentes experimentavam uma vida dura com alimentação deficitária, doenças e toda sorte de abusos.

O currículo trazia ensino de primeiras letras e álgebra, mas se concentrava nos ofícios mecânicos: alfaiate, carpinteiro, marceneiro, sapateiro e ferreiro. Havia ainda o ensino da música que merece registro especial porque as bandas dos “educandos” não só recebiam elogios entusiasmados dos viajantes, mas também eram fontes de renda para a manutenção institucional em função de suas apresentações remuneradas como nos casos do Maranhão, Piauí e Amazonas, só para dar alguns exemplos.

Alguns alunos dos “Educandos” não eram, exatamente, “órfãos”. Foi no Amazonas que a viajante e naturalista estadunidense Elizabeth Agassiz, notou tal peculiaridade em 1865 e foi informada que muitos deles haviam sido retirados à força de suas famílias. A esse respeito, comentou ela em seu diário: “A civilização, mesmo que imposta à força, é preferível à barbárie”. O atendimento da infância desvalida era o mote discursivo e justificador da existência de tais escolas, acentuando-se seu caráter filantrópico porque ali se ofereciam os meios para que eles não sucumbissem à miséria e, tampouco, à vadiagem. A obediência, o respeito à hierarquia e a construção da civilidade dos costumes eram objetivos importantes dos internatos para desvalidos.

No caso das crianças indígenas, há que se considerar que a ideia de transformar nativos “errantes” em “braços úteis” aparece, de modo recorrente, na documentação. O aprendizado de um ofício era caminho incontornável para alcançar a civilidade necessária de um cidadão do Império. Não importava que fossem meros “cidadãos de arco e flecha” como, jocosamente, o senador Martinho Silva Campos qualificou os alunos do Pará.

Tutela legal, trabalho informal

O fim dessas casas representou uma novidade cruel para as crianças como vimos com Flausino, Raimundo e Calisto. Sem a escola, passaram a ser entregues a particulares para prestar serviços em casas e oficinas sob soldada. Os dados indicam um crescimento dos pedidos de tutela a partir do fechamento dos Educandos em Manaus.

Essa tutela legal assegurou o acesso a um grupo de trabalhadores muito especial: as crianças e adolescentes passavam a aprendizes e tutorados, mas, na verdade, eram incorporados ao mundo do trabalho de modo subordinado. Esse novo cenário não é mais o da escola, mas sim o da casa, da oficina, da loja de secos e molhados. É o domínio do privado onde as leis, eventualmente, não alcançam. Uma realidade dura de existência subordinada que, nem de longe, correspondia à vida de crianças que estavam fora do alcance da categoria “pobres e desvalidas”.

Para além desse mundo legal, havia muito mais. No século 19, o naturalista inglês Henry Bates, no Amazonas, registrou a facilidade com que se podia adquirir crianças indígenas para uso no trabalho doméstico ou como aprendizes. Foi assim com Sebastião, 12 anos, “comprado”, por um seu ajudante que o transformou em aprendiz de ourives.

Silêncios forçados e injustiças nunca superadas como a dor de Maria Domingas, a índia que perdeu sua menina Alexandrina, assassinada a pancadas por sua tutora e patroa Isabel de Mattos, na casa de quem prestava serviços. Educar por meio do trabalho era um discurso que escondia um universo cruel, doloroso e excludente, que era parte inseparável da vida real da maioria das crianças brasileiras. Diante dessas – e de tantas outras histórias – precisamos reforçar a ideia de que a proposta das cotas e de outras políticas de ação afirmativa no Brasil têm sido baseadas na ideia da necessidade de uma reparação histórica quanto às consequências desse modo de pensar a educação no país.

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