Donas de casa que lucram: jovens dedicadas ao lar atraem marcas nas redes

Adriana Negreiros, Do UOL*, em São Paulo

Perfis nas redes sociais de jovens mulheres agindo como esposas tradicionais vêm atraindo patrocínio de empresas de alimentação, produtos farmacêuticos e de beleza no Brasil.

São influenciadoras enquadradas no nicho de “casa e decoração” — mercado que movimenta em torno de R$ 4 bilhões por ano no Brasil, segundo levantamento da agência de influência de marketing Influency.me, feito a pedido do UOL.

As marcas investem em jovens que, nas redes, mostram uma rotina de cuidados com o lar, o marido e os filhos, sem defender explicitamente que lugar de mulher é na cozinha.

Com 581 mil seguidores no Instagram, a gaúcha Natália Matias, 31, já fez parcerias com Novalgina, McCain, farmácias Pague Menos, Lojas Americanas e fraldas da Turma da Mônica, dentre outros.

Ao UOL o laboratório Sanofi, que fabrica Novalgina, informou que Natália “mostra em suas redes momentos em que pode ser um verdadeiro sol na vida daqueles ao seu redor”.

Ela é mestre em literatura. Na bio do Instagram, apresenta-se como mãe.

Em um vídeo recente, Natália aparece batendo à mão um bolo para o marido, Pedro Matias. Ela usa avental e um laço de fita no cabelo chanel com franja.

“Seis e meia da tarde e meu marido me disse que tava com vontade de bolo. Meu amor, se tu acha que vou bater quatro ovos, manteiga e leite para fazer um bolo de chocolate a essa hora, tu acertou”, ela diz, no vídeo.

“Cozinhar me cansa. Mas tento ver pelo lado positivo, cozinho feliz para um cara que faria o mesmo por mim. É da mesma forma quando vou esfregar banheiro”, diz ao UOL.

Um dos lados positivos é financeiro. Não são raros os meses em que ela fatura mais do que o marido, professor de literatura.

“Já fechei contratos com marcas pequenas e gigantescas”, afirma.

Segundo a Influency.me, os valores de “publis” (postagens pagas por patrocinadores) no nicho de casa e decoração estão entre os mais baixos do mercado: R$ 30, em média, a cada mil visualizações — em tecnologia são R$ 100.

Com cerca de 500 mil visualizações por vídeo, Natália Matias pode cobrar, de acordo com valores de mercado, até R$ 15 mil por publicidade. Mas cada negociação é individual e depende do investimento das empresas em redes sociais.

Como ser uma boa esposa

Uma hashtag no Instagram e no TikTok — “trad wife”, do inglês traditional wife (esposa tradicional) — começou a viralizar nas redes brasileiras em 7 de abril, conforme levantamento da Influency.me.

Nem todas as donas de perfis que mostram a dedicação das mulheres ao lar usam a hashtag, mas algumas se identificam com ela.

É o caso da capixaba Mallu Campisi, 31. Ela é engenheira civil e prefere se apresentar como dona de casa.

Em abril, um vídeo sobre a rotina de domingo fez o perfil dela saltar de 30 mil para 208 mil seguidores no Instagram em menos de 1 mês. “Percebi como a população carece de bons exemplos”, afirma.

Ela é casada com um empresário (dono de lojas virtuais de pijamas e armas de brinquedo), tem dois filhos (de quatro e dois anos) e está grávida do terceiro. A família vive na Austrália.

Aos domingos, segundo conta no vídeo, ela acorda às 4h20 para sovar a massa do pão para o café da manhã da família.

Quando o marido acorda, duas horas depois — ar sonolento, descalço, trajando camiseta e calção —, Mallu já se penteou, maquiou e, de vestido longo e mocassim, passou aspirador de pó nos tapetes da sala enquanto o pão assava no forno.

No dia 31 de maio o vídeo acumulava 857 mil curtidas, 205 mil compartilhamentos e 22,3 mil comentários — muitos “de ódio”, como ela reconhece, mas também “de amor”.

Agora, afirma, recebe “perguntas diariamente sobre como cuidar melhor da família e ser uma esposa melhor”.

“Quando meu marido chega do trabalho, o jantar está pronto e as crianças já tomaram banho”, conta.

Submissão ao homem

Pesquisa da Influency.me mostrou que o sentimento em relação a posts com a hashtag #tradwife é positivo em 46% dos casos, negativo em 39% e neutro em 14%.

A pesquisa foi feita na segunda semana de maio.

Giulia Azevedo, gerente de marketing da Influency.me, não vê problemas em marcas se associarem a perfis de esposas dedicadas ao lar, desde que as influenciadoras contratadas evitem pregação religiosa e de submissão ao homem.

“Uma mulher que vive em casa consegue divulgar melhor do que ninguém produtos para a limpeza e para a cozinha”, pondera Giulia.

Ela, no entanto, recomenda às empresas que estabeleçam regras de discurso em contrato — a ideia é evitar que a influenciadora “diga coisas absurdas que vão contra o posicionamento da marca”.

Por exemplo: afirmar categoricamente que mulheres não devem trabalhar fora ou estudar.

“Não estamos mais em 1920. Para quem me pergunta, digo que tenho formação superior, e isso foi fundamental para que eu conseguisse estar na internet.” – Natália Matias Influenciadora

Nem à esquerda nem à direita

Para não perder “publis”, influenciadoras não opinam sobre política e tomam cuidado ao mencionar o tema do feminismo.

“Não sei se sou feminista, não entendo disso”, afirma a cearense Isabelle Abreu, 26. Com 3,2 milhões de seguidores no Instagram, ela é agenciada pela Play9, que tem como um dos sócios o influenciador Felipe Neto.

Nas redes — e, segundo afirma, fora delas — Isabelle usa longos vestidos com babados e estampas florais, chapéus e lenços na cabeça. Ela faz posts sobre a vida com o namorado Gabriel Félix, 27, pai de sua filha Amelie, de 6 meses.

Os vídeos de Isabelle têm, em média, 2,5 milhões de visualizações. Pela média do mercado, ela pode cobrar R$ 75 mil por publicidade.

Recentemente, a influenciadora foi convidada pela Netflix para o evento de divulgação no Brasil da terceira temporada da série britânica “Bridgerton”, que se passa no início do século 19.

A estética vintage, diz Isabelle, leva seguidores a pensarem que ela é conservadora.

“Confundem quando veem o meu perfil. Eu agradeço por viver nessa época e gostar da arte do passado”, afirma.

Isabelle já fez parcerias com Natura, fraldas da Turma da Mônica, tintas Suvinil e Forever Liss. Mudou-se de Fortaleza para São Paulo para investir na carreira de influenciadora.

A Natura informou em nota enviada ao UOL que Isabelle “demonstra por meio de seu conteúdo uma realidade compartilhada por muitas mulheres”.

“Nele, a maternidade se mostra como transformadora e liberta de amarras sociais”, disse a empresa, acrescentando que a marca “foca no empoderamento feminino”.

Comida no prato do esposo

A paulista Amanda Kissley, 28, tem 25,3 mil seguidores no Instagram e tenta crescer como influenciadora no ramo.

Ela vive em Santa Bárbara d’Oeste, no interior de São Paulo, ao lado do marido Leon Silva, 31, engenheiro de software.

Amanda é formada em marketing e recursos humanos, mas seu trabalho consiste em cuidar da casa e do esposo. O casal não tem filhos.

Todos os dias, levanta às 7h30 e, após se arrumar — roupa, cabelo e maquiagem —, prepara o café da manhã de Leon.

Coloco a comida no prato dele, porque aprendi assim. Minha mãe fazia isso com o meu pai. – Amanda Kissley – Influenciadora

Enquanto o marido trabalha no escritório da casa, em regime de home office, ela aproveita para “estender uma roupa, regar as plantas, varrer folhas, passar um pano no chão, lavar um banheiro”.

No meio da tarde, interrompe as tarefas para preparar café para o marido.

“Sou uma pessoa tranquila, recatada, acredito que sempre vou me dedicar 100% ao lar”, diz Amanda, que já fechou parceria com uma marca de cosméticos, Glambox, e está “buscando novas publicidades”.

Ela também está “trabalhando” a ideia de ter filhos. Na tentativa de despertar um desejo que nunca teve, acompanha perfis de mães devotadas no Instagram.

Mallu Campisi, a capixaba que viralizou com o vídeo da rotina de domingo, é uma de suas referências.

Zero faturamento

Uma mulher defender a dedicação integral ao lar e, simultaneamente, faturar com as redes sociais pode soar contraditório para muitos.

Mallu Campisi diz que trabalhou por quatro anos dando cursos no Instagram — como receber convidados com requinte, por exemplo —, mas agora rejeita ofertas de publicidade para se dedicar à família.

O comportamento é elogiado por suas seguidoras.

Pela média de visualizações de seus vídeos — 250 mil —, ela poderia cobrar R$ 7.500 por “publi”.

Sem compromisso com marcas, Mallu aparece em vídeos lendo a Bíblia e cantando músicas gospel.

Ela é evangélica e afirma que o post sobre a rotina de domingo foi um “pedido de Deus”.

Estética descolada

Monise Martinez, doutora em estudos feministas pela Universidade de Coimbra (Portugal) com uma tese sobre o antifeminismo na Igreja Universal do Reino de Deus, afirma que há algo em comum nos perfis de mulheres que exaltam os valores do lar —- sejam elas assumidamente religiosas ou não.

“A estética é bastante descolada”, afirma. Os vídeos são tecnicamente competentes, o cenário é caprichado e algumas influenciadoras são tatuadas e usam gírias atuais.

No entanto, mesmo que não haja intenção declarada de defender o aprisionamento das mulheres no lar, Monise diz que esses perfis “têm força para fomentar ideologias conservadoras num momento de ascensão das extremas direitas no mundo”.

Exemplo disso são os comentários feitos por seguidoras a esses perfis — garotas da geração Z que dizem se inspirar neles para constituir família tradicional nos moldes do passado.

Para Ana Paula Passarelli, fundadora da agência de influenciadores Brunch, nenhuma marca deveria se associar a “elementos nostálgicos do movimento conservador”.

“Quando marcas se associam a esses perfis, elas estão dando sinal verde para o conservadorismo.” – Daniela Arrais – sócia da Contente, agência de criação de conteúdo para marcas

Liberdade de escolha

Uma frase repetida por influenciadoras para justificar a escolha pela vida doméstica é “lugar de mulher é onde quiser, como prega o feminismo”.

Para a cientista social e influenciadora Nátaly Neri, essa frase é tirada de contexto. “Escolher voltar ao passado é escolher voltar para uma época em que não havia a possibilidade de escolha”.

“Hoje elas têm a possibilidade, inclusive, de sair das relações”, lembra.

Mas, para os negócios de uma influenciadora “trad wife”, qual o impacto do fim de um casamento e da imagem que o vínculo representa?

“Aí ferrou”, brinca Giulia Azevedo, da Influency.me.

Quando isso acontecer, ela prevê, a hashtag talvez já tenha perdido força. “E ninguém verá o lado negativo da história. Isso a internet não mostra.”

*Portal Uol, https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2024/06/01/jovens-dedicadas-ao-lar-acumulam-seguidoras-nas-redes-e-atraem-marcas.htm, 01/06/2024

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