Existem milagres?
Tudo aquilo que se ignora é tomado por magnífico ou mágico, escreveu o romano Tácito
Por Leandro Karnal *, OESP **
Os egípcios viam as margens do Nilo serem fertilizadas pela cheia anual, mesmo sem chuvas. Desconheciam as nascentes do grande rio em áreas mais úmidas da África. Viam apenas o efeito miraculoso e atribuíam-no a alguma intervenção divina. O curso d’água era divinizado como deus Hapi.
Ler a natureza a partir de uma chave mágica é uma tentação constante na história. Caso não se consiga explicar, deve ter origem divina. Tácito escreve: Omne ignotum pro magnificum. Tudo aquilo que se ignora é tomado por magnífico ou mágico. A imaginação, sem dados verificáveis, corre solta para a poesia e a religião.
Ocupar o lugar do desconhecido é um argumento ruim para a fé. Se a crença egípcia no poder do deus Hapi fosse ainda viva, a descoberta das nascentes do Nilo e do regime de chuvas da África Equatorial representaria um golpe poderoso no poder da entidade. Sabemos que os relâmpagos não possuem origem na ira de Zeus. Entendemos, hoje, que as meninas que lidavam com vacas com varíola estavam protegidas da forma mais grave da doença, por um princípio similar às vacinas, mas não por um anjo da guarda mais forte do que o normal. Há muitas coisas que ainda escapam a uma explicação científica; completar essas lacunas com a narrativa do milagre é um risco.
Não acredito em milagres. Já estudei fenômenos ainda inexplicáveis. A falta de dados ou o erro na leitura deles costuma criar o ambiente para a narrativa prodigiosa. O que quer dizer? Não ter explicação racional não implica afirmar que é inexplicável, apenas reforça que ainda não alcançamos um fato pelo método científico. Os cometas já foram eventos metafísicos portadores de mensagens ocultas. Eclipses solares já causaram pavor em muitas culturas. As manchas na Lua já foram identificadas como São Jorge.
A crença no milagre é um horror ao vazio da explicação. Curiosamente, nasce de um desejo racional. A fé em fatos fora do comum que me preservaram em um acidente, por exemplo, é meu narciso atuando. Certas curas excepcionais nascem de diagnósticos ruins. Premonição é chute bem-sucedido. Para cada profecia correta, poderíamos identificar milhares de erradas. Uma pista: anuncie todo dia a data da sua morte. Tenho certeza de que, num dia, você acertará. Você é um profeta?
O milagre é uma tentação racional, curiosamente. Busco algo que o explique. Não encontrando de imediato no mundo visível, vou em busca do invisível. Todas as religiões possuem milagres: isso seria prova de que estariam corretas? No Candomblé e no Budismo, há narrativas de fatos inexplicáveis. Satanistas alegam operar coisas fora da lógica formal. Católicos enchem volumes com prodígios. Curas milagrosas são diárias em cultos neopentecostais. Estariam todos corretos?
Creio que a fé seja uma escolha pessoal. Nasce de um desejo do indivíduo e, se não violar a lei e a ética, é válida. O argumento para pregar sua religião sempre deve ser sua felicidade ao encontrar respostas pessoais dentro de um código teológico, jamais o poder milagroso. O verdadeiro bem-aventurado, segundo o próprio Jesus, não é a testemunha do milagre que crê depois de ter visto. Tomé acreditou porque experienciou. Acreditou nos olhos próprios, mas não na promessa de Jesus. O homem de fé, na frase do Evangelho, é aquele que não viu e, mesmo assim, acreditou (Jo 20,29). Quem precisa de milagres para crer recebe uma certa desconfiança do próprio fundador do Cristianismo.
“Ah, Leandro, mas meu Deus ressuscitou!” Perfeito! Você precisa, então, ser um pouco mais específico, já que – durante mais de três mil anos – os egípcios defenderam a ressurreição de Osíris. “Ah, Leandro, meu Deus nasceu de uma Virgem.” Sem problema, mas você deve ser um seguidor de Mitra. Ele nasceu de uma virgem, no dia 25 de dezembro. Quando Krishna nasceu, sábios e pastores vieram adorá-lo. Isso não é um ataque à sua fé; é apenas trazer um pouco de perspectiva histórica. Você pode, sem problema, dizer: “Eu sei que há semelhança com outras narrativas, entretanto eu tenho Jesus no meu coração e creio Nele!”. Perfeito! Sua fé é seu direito e é uma liberdade fundamental. Ninguém pode atacar crença e, provavelmente, sua vida é melhor diante da sua convicção. Perseguições a religiosos violam a dignidade da pessoa humana e são inadmissíveis.
Eu não acredito em milagres, mas sei de milhares que ocorrem em todas as religiões. São fatos inexplicáveis como saber o que existe depois de um buraco negro. Se você crê que existe um devorador de matéria depois do fenômeno sideral, como os egípcios pensavam na deusa Ammit, você é livre. Religião do outro sempre será mitologia para quem se acredita possuidor de toda a verdade. Alegre-se: entre milhões de deuses, somente o seu é o correto e opera milagres por ser vivo. Reflita sempre, com esperança e tranquilidade, na frase de Montaigne: “O homem está, de certo, totalmente louco; ele não pode fazer um verme, mas faz deuses às dúzias”. Confesso reconhecer certa beleza na nossa capacidade de olharmos para o céu e dizermos: “Faça-se a luz!”.
Nossas crenças podem ser fonte de esperança. Esse é o grande milagre da vida, o único que desafia meu ceticismo.
* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS E AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS
** Estado de São Paulo, https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/existem-milagres/, 07/05/2023