Imagens que reinventaram a fotografia

Hans Günter Flieg, morto aos 101 anos, foi precursor de novo estilo

LUIS S. KRAUSZ LUIS S. KRAUSZ É PROFESSOR LIVRE-DOCENTE DE LITERATURA HEBRAICA E JUDAICA NA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO E ESCRITOR | OESP*

Vasto acervo de Flieg pertence hoje ao Instituto Moreira Salles, que fez no ano passado mostra para marcar o seu centenário

Lições do dia a dia Qualidade de suas fotos se deve não às escolas por onde passou, mas à própria vida diária e a uma lucidez incomum

Hans Günter Flieg, um dos pioneiros da fotografia moderna no Brasil, morreu em São Paulo no início de setembro, aos 101 anos de idade. Flieg foi um daqueles refugiados judeus da Alemanha nazista que aportaram no Brasil arrastados pelas contingências políticas e que, juntamente com outros fotógrafos e fotógrafas de mesma origem, como Peter Scheyer, Gertrud Altschul, Hildegard Rosenthal, Alice Brill e Werner Haberkorn, para citar apenas os mais conhecidos, revolucionaram a cultura fotográfica do País, nela introduzindo uma nova estética, influenciada pela Nova Objetividade alemã e pelo estilo da Bauhaus, possibilitada, em boa parte, pela agilidade das então recém-inventadas câmeras de 35 mm.

Flieg chegou ao Brasil aos 16 anos, no final de 1939, quando a 2.ª Guerra Mundial já havia começado. Filho de uma família da burguesia industrial de Chemnitz, descobriu sua vocação fotográfica aos 15, de maneira um tanto inesperada.

Depois da Noite dos Cristais, em novembro de 1938, seus pais – que àquela altura ainda não tinham tomado uma decisão sobre a emigração, apesar do cerco cada vez mais apertado que o governo nazista fechava em torno dos judeus alemães – se deram conta de que não havia mais esperanças de continuar com suas vidas no país onde haviam nascido, e ao qual julgavam pertencer.

De fato, a família de Flieg, como tantas e tantas outras famílias judias alemãs, via no seu pertencimento à cultura germânica um dos fundamentos de sua identidade. Sobre seu avô Hagü, Flieg contou certa vez que, todos os anos, no verão, ele retornava ao balneário de Karlsbad para uma temporada de descanso, e que invariavelmente levava consigo seu exemplar do Fausto, de Goethe, o qual estudava com a mesma minúcia e com o mesmo fervor que os judeus da era anterior à Emancipação judaica dedicavam ao estudo dos textos sagrados do judaísmo.

No centro da cultura familiar de Hagü estava o conceito goethiano de Bildung, uma formação humanística abrangente que, à maneira da Paideia dos antigos gregos, buscava o bom e o belo por meio de valores universais e perenes. Seu pai, Karl, fora, em Chemnitz, um grande amigo das artes e um dos patrocinadores da pinacoteca local. A casa da família, inclusive, foi decorada com afrescos de um dos mais renomados artistas plásticos da cidade à época – de cujo nome já não me lembro. Este mesmo artista, poucos anos depois, não hesitou em virar a cara ao encontrar seus antigos patronos na rua, depois que entraram em vigor as infames leis raciais do nazismo, que obrigavam os judeus a portarem estrelas amarelas costuradas às suas roupas. E sussurrou, entre os dentes: “Os tempos mudaram!”

LUCIDEZ. Se a fotografia de Flieg sempre se destacou por suas qualidades intrínsecas, isto sem dúvida se deve à educação que ele recebeu, não em instituições de ensino superior, às quais não teve acesso por causa das circunstâncias ligadas à emigração, mas em sua casa, por meio de uma inteligência e lucidez incomuns, do cultivo da leitura e do interesse pelas artes visuais. É daí que provém seu apuradíssimo e evidente senso estético.

Quando seus pais se decidiram pela emigração – o que, àquela altura, significava deixar para trás todos os bens e sair da Alemanha com pouco além da roupa do corpo – ficou claro que, no novo país, ele teria que trabalhar e que não poderia se dedicar aos estudos superiores. Era, portanto, preciso encontrar rapidamente uma profissão para o adolescente de 15 anos. A primeira ideia de seus pais foi que ele se formasse como confeiteiro na Alemanha para ter uma profissão no novo país, enquanto a família aguardava a documentação necessária para a viagem – o que, em 1938, quando o mundo fechou suas portas aos emigrantes judeus, não era nada fácil.

Flieg, no entanto, àquela altura já era fotógrafo amador e um encontro com Grete Karplus, uma conhecida fotógrafa de Berlim, amiga de Walter Benjamin, fez com que ele decidisse se tornar seu aprendiz em vez de se tornar aprendiz de confeiteiro.

DEPORTAÇÃO. Passado quase um ano de aprendizado, os pais ainda não tinham conseguido obter os documentos necessários à emigração. Foram meses de angústia e ansiedade que culminaram com a deportação do jovem de 16 anos para um campo de trabalhos forçados, onde as autoridades o engajaram nos grupos encarregados da colheita de batatas. Ainda assim, no último instante, por assim dizer, a família conseguiu pôrse a caminho do Brasil e conseguiu, igualmente, a libertação de Flieg, que em 1939 aportou em Santos com os pais e o irmão mais novo, Stefan. A guerra já havia começado e as portas estavam se fechando para eles.

Da bagagem da família fazia parte uma Leica 35mm, com objetivas intercambiáveis, adquirida na Alemanha graças a uma concessão especial das autoridades, que livraram do confisco compulsório esses objetos que se destinavam à sobrevivência dos emigrantes em seu país de destino.

Flieg nunca viu o próprio trabalho como o de um artista e sim com a austeridade que cabe a um profissional competente. Foi como fotógrafo publicitário e de arquitetura que ele descreveu sua brilhante carreira. No entanto, a qualidade intrínseca das imagens que produziu começou a chamar a atenção dos críticos de fotografia e, na década de 1980, ele passou a ser conhecido como “o poeta do concreto e do aço”. Pouco a pouco o mundo descobria, por trás daquelas fotografias supostamente tão objetivas, todo um repertório estético elaboradíssimo, e mesmo a expressão de um refinado olhar filosófico.

Depois de uma exposição no Museu Judaico de Berlim, realizada em 2006, dedicada ao tema da emigração judaica da Alemanha sob o nazismo, seu trabalho passou a chamar a atenção de críticos e curadores alemães. Cinco anos mais tarde, uma grande mostra retrospectiva de sua obra foi organizada no Martin Gropius Bau, um dos mais prestigiados espaços para as artes plásticas de Berlim. De lá, a mostra seguiu para Chemnitz, sua cidade natal.

RETORNO. Flieg, que jamais havia deixado o Brasil desde a sua chegada ao país, em 1939, foi convidado a viajar à Alemanha para inaugurar essa mostra e, depois de muita hesitação, resolveu aceitar o convite. Rever a Alemanha setenta anos depois de tê-la deixado foi, mais do que qualquer coisa, um tremendo choque, para o qual, no entanto, ele havia se preparado ao longo de muito tempo.

Seu acervo de milhares e milhares de negativos hoje pertence ao Instituto Moreira Salles, que no ano passado organizou uma grande exposição em comemoração ao centenário de Flieg. E seu legado artístico, hoje internacionalmente reconhecido, influenciou de maneira decisiva os rumos da arte fotográfica no Brasil.

O falecimento de Flieg, para além de tudo isto, marca também o desaparecimento da geração à qual ele pertenceu, a última cuja formação se deu no contexto de uma curiosa e extraordinariamente fecunda elipse cultural, cujos pontos focais foram, por um lado, o legado de Moisés e, por outro, o da tradição humanista germânica do século 19.

“No centro da cultura familiar de Flieg estava o conceito goethiano de Bildung, uma formação que, à maneira da Paideia dos antigos gregos, buscava o bom e o belo por meio de valores universais e perenes”

“Seu legado artístico influenciou, de modo decisivo, os rumos da arte fotográfica do País”

Austeridade

Ele nunca viu o seu trabalho como o de um artista mas com a austeridade que cabe ao profissional competente

*Estado de São Paulo, https://digital.estadao.com.br/o-estado-de-s-paulo, 13/10/2024, pag. C6, 13/10/2024, pag. C6

Categorias: Fotografia

× clique aqui e fale conosco pelo whatsapp