Impactos da inteligência artificial na música
Não se trata de vilanizar a tecnologia, mas de alertar que a produção em massa de canções tecnologicamente recicladas compromete a vitalidade cultural da música
Guilherme de Azevedo Granato e Marcelo de Azevedo Granato SÃO, RESPECTIVAMENTE, MÚSICO E PESQUISADOR, DOUTORANDO EM MUSICOLOGIA NA UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA (FCSH); E DOUTOR EM DIREITO PELA USP E PELA UNIVERSITÀ DEGLI STUDI DI TORINO, INTEGRANTE DO INST |OESP*
Abanda de rock The Velvet Sundown cativou os paulistanos, segundo números do Spotify. Dentre os ouvintes contabilizados pela plataforma de áudio ao redor do mundo, a cidade de São Paulo ocupa o topo do ranking, com mais de 15 mil fãs ( Estadão, 9/7).
Essa seria uma notícia comum, não fosse The Velvet Sundown uma criação da inteligência artificial (IA). Na descrição disponível no Spotify, a banda se apresenta como “um projeto musical sintético, guiado por direção criativa humana e composto, interpretado e visualizado com o apoio da inteligência artificial”. Mais adiante, define-se como “uma provocação artística contínua, concebida para desafiar os limites da autoria, da identidade e do próprio futuro da música na era da IA”.
Há quem veja o Velvet como um experimento da indústria para testar a aceitação de um projeto sem artistas reais (projeto interessante para quem não pretende pagar direitos autorais a músicos de verdade). Seja como for, ao se apresentar como um desafio “aos limites da autoria, da identidade”, a banda virtual evoca uma disposição própria da arte do século 20, quando se multiplicaram obras baseadas no acaso, na apropriação ou até no pastiche: estratégias que buscavam desafiar ideias de originalidade, virtuosismo técnico e os mecanismos tradicionais de consagração artística.
Talvez o exemplo mais emblemático nesse campo seja Fountain (1917), de Marcel Duchamp – um mictório assinado com o pseudônimo “R. Mutt” e submetido a uma exposição como obra de arte. Na música de vanguarda, o equivalente mais direto é John Cage, que colocou em xeque os pressupostos da composição ocidental por meio de uma peça inteiramente silenciosa ( 4’33’’, de 1952) e de composições orientadas pelo acaso, como Music of Changes (1951). Na música popular contemporânea, o sampler, que reutiliza trechos de gravações preexistentes, também pode ser entendido como um recurso que relativiza a noção tradicional de autoria.
Ao se apresentar como um experimento sobre autoria e identidade, The Velvet Sundown simula o gesto disruptivo das vanguardas do século 20. A lógica, porém, se inverte: enquanto estas desafiavam a autoria para expandir a expressão e romper com consensos estéticos, o repertório do Velvet se constrói a partir da decodificação de padrões massivamente repetidos. É este, afinal, o trabalho da IA: capturar e ordenar padrões recorrentes do passado. Assim, ao invés de desafiar o gosto comum, as canções do Velvet reeditam o já consagrado.
É bom lembrar que tensões entre autoria musical, interesse comercial e tecnologia não são novidade na música popular. Há um episódio memorável na música brasileira. Considerado o primeiro samba gravado, Pelo telefone foi registrado por Donga e Mauro de Almeida em 1916. Embora o verso central da canção provavelmente tenha surgido de forma coletiva nas rodas de improviso da casa de Tia Ciata – um dos principais núcleos da cultura negra carioca da época –, Donga assinou a autoria individualmente, tirando a música da esfera do domínio público e inserindo-a na lógica comercial das rádios e das gravadoras. Ao ser questionado sobre essa apropriação, ele teria dito: “Samba é igual a passarinho, é de quem pegar primeiro”.
Esse episódio marca não apenas uma virada simbólica na história do samba, mas também ilustra a conversão da música em objeto comercializável, impulsionada pelo desenvolvimento das tecnologias de difusão e gravação sonora. Em um comentário célebre, Mário de Andrade censurava a degeneração da autêntica música popular diante da lógica comercial simbolizada pelos discos: “Submúsica, carne para alimento de rádios e discos”. Para ele, a mediação tecnológica, ao ser instrumentalizada pela lógica do lucro, representava um potencial perigo para a expressão musical autêntica e espontânea.
A música, de fato, é uma expressão cultural e humana, pois interage com nossa sensibilidade e nossa relação com o mundo. Vale notar, aqui, que a composição musical é um processo de desfecho incerto, que envolve aprendizado, técnica, inspiração, emoção, insistência. Exige do corpo e da mente do compositor. É inventividade banhada em cultura. No repertório do The Velvet Sundown, tudo isso é substituído por prompts e operações lógicas que resgatam e organizam materiais musicais já existentes, minimizando drasticamente a intervenção humana, que poderia dar novos sentidos a esses materiais.
Não se trata de vilanizar a tecnologia, mas de alertar que a produção em massa de canções tecnologicamente recicladas compromete a vitalidade cultural da música, especialmente quando esse processo é comandado por grandes corporações. Basta ouvir as canções do Velvet, ler suas letras, reparar na apresentação visual da banda. Goste-se ou não, fato é que tudo ali é orientado por padrões que visam a garantir reconhecimento imediato, consumo e engajamento. Em vez de renovar o repertório simbólico da criação musical, essa dinâmica tende a reiterar fórmulas consagradas, eliminando o risco e a surpresa que historicamente impulsionaram transformações significativas na arte. O passado devora o futuro.
*Estado de São Paulo, https://www.estadao.com.br/opiniao/espaco-aberto/impactos-da-inteligencia-artificial-na-musica/#:~:text=%C3%89%20inventividade%20banhada%20em%20cultura,novos%20sentidos%20a%20esses%20materiais., 17/10/2025