Medicina de qualidade e exame de proficiência
A questão da formação e distribuição de médicos no País é urgente e demanda análise criteriosa, sob pena de repercussões graves no bem-estar dos cidadãos
José Hiran Gallo – PRESIDENTE DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA | OESP*
O Brasil precisa de mais ou de melhores médicos? Esse dilema permeia as políticas públicas nas áreas da saúde e da educação no que se refere à formação e distribuição de profissionais da medicina pelo País.
Trata-se de uma questão urgente, que demanda análise criteriosa sob pena de repercussões graves no bem-estar dos cidadãos, pois, ao avaliar dados sobre o ensino médico nacional, parece-nos que as escolhas feitas nos últimos anos são preocupantes ao priorizar o caminho da quantidade em detrimento da qualidade.
Neste contexto, a aprovação do Projeto de Lei n.º 2.294/24, que institui o Exame Nacional de Proficiência em Medicina, torna-se uma solução confiável. Por isso, essa proposta, que já passou por unanimidade pela Comissão de Educação do Senado – e agora segue para nova votação na Comissão de Assuntos Sociais –, conta com o apoio do Conselho Federal de Medicina (CFM) e de todas as entidades médicas nacionais.
Esse exame permitirá a avaliação rigorosa do egresso quanto ao seu nível de conhecimento, habilidades e atitudes esperadas no exercício da profissão. Além disso, incentivará os cursos de medicina a aperfeiçoarem o processo formador dos futuros médicos, identificando suas fragilidades e corrigindoas em benefício dos alunos e da sociedade.
O principal ganho será para o cidadão, pois o exame contribuirá para a oferta de um melhor atendimento, mais seguro e eficaz. Isso porque o egresso somente poderá atuar se comprovar suas competências profissionais e éticas com base em padrões exigidos para a profissão.
Pela proposta, só poderão se inscrever nos Conselhos Regionais de Medicina os aprovados em Exame Nacional de Proficiência em Medicina, oferecido duas vezes por ano em todo o País, coordenado pelo CFM. Inegavelmente, essa prova – uma etapa obrigatória para os que ingressarem na faculdade, após a entrada em vigor da lei – configuraria um crivo para manter a credibilidade e a confiança na profissão médica, bem como a integridade da vida e da saúde dos pacientes, diante do risco de exposição a profissionais carentes de adequada formação.
O painel Radiografia das Escolas Médicas, organizado pelo CFM, dá a dimensão do problema ao apontar 390 escolas de medicina em funcionamento no País. Nos últimos 14 anos, 210 cursos foram abertos, além de vários incrementos de vagas. Desse total, 70% são privados, concentrados em Estados onde já existia número alto de escolas desse tipo, como São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Em consequência da abertura indiscriminada de escolas médicas, os cenários de prática – parte fundamental para a boa formação dos profissionais – apresentam defasagem. Em 78% dos municípios que abrigam escolas médicas, faltam leitos para que o ensino seja concretizado adequadamente. Em 45%, o número de equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) é insuficiente para acolher os alunos. Em 57%, não existem hospitais de ensino, sem contar com a carência de professores com doutorado aptos à condução do processo de ensino e aprendizagem.
Infelizmente, as perspectivas são de agravamento desse quadro no ensino médico. Estima-se que 294 processos de cursos de medicina estão em tramitação na Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior do Ministério da Educação por ordem administrativa ou por força judicial. No conjunto, eles pleiteiam funcionamento em 182 municípios, dos quais 130 já abrigam, no mínimo, uma escola médica. De forma geral, 73% dessas localidades apresentam déficit em pelo menos um parâmetro essencial ao funcionamento desses estabelecimentos, como números insuficientes de leitos de internação, de equipes de ESF e/ou de hospitais de ensino.
Os problemas decorrentes da falta de infraestrutura nas escolas não tardam a apresentar sua fatura: afetam alunos em sua formação, expõem a diagnósticos e tratamento inadequados e incrementam os custos assistenciais por conta de questões como o aumento no número de pedidos de exames e a baixa resolubilidade dos atendimentos.
Assim, com cerca de 45 mil médicos sendo formados anualmente no Brasil, boa parte em locais que não observam os critérios recomendados para um ensino de qualidade, é mandatório a implementação de um instrumento de controle de qualidade desses profissionais, como o Exame de Proficiência em Medicina.
Precedentes internacionais sugerem que uma avaliação dessa envergadura se mostra eficaz para padronizar e garantir a qualidade dos profissionais da saúde, ao mesmo tempo em que cria um ciclo virtuoso de aperfeiçoamento do sistema formador em medicina. É o que ocorreu em países como Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Alemanha e Austrália.
Em todos esses, os candidatos a exercer a medicina são avaliados em provas teóricas e práticas, sendo a aprovação obrigatória. Quem não passa faz reciclagem para corrigir suas deficiências. Agora, no Brasil, há a oportunidade de seguir essa tendência internacional, que dá à população acesso a médicos preparados para honrar os compromissos éticos expressos no Juramento de Hipócrates. Será que os brasileiros não merecem profissionais altamente qualificados e comprometidos?
*Estado de São Paulo, https://digital.estadao.com.br/o-estado-de-s-paulo, 28/02/2025, pg. A2