Na Amazônia, projeto busca sinais de ocupação milenar
Projeto une especialistas e povos de comunidades da floresta, como indígenas, quilombolas, beiradeiras e ribeirinhas
GONÇALO JUNIOR | OESP*
Há vestígios da ocupação humana na Amazônia de pelos menos 13 mil anos, muitos escondidos pela vegetação. E a busca por sítios arqueológicos na região une arqueólogos e os povos da floresta – indígenas, quilombolas, beiradeiras e ribeirinhas – em uma iniciativa de R$ 10 milhões.
Pode parecer um paradoxo, mas o trabalho do projeto Amazônia Revelada começa nas alturas. Helicópteros, drones ou aviões sobrevoam a floresta com sensores remotos que usam a tecnologia Lidar (Light Detecion and Ranging; detecção e alcance de luz em português).
Milhares de feixes de lasers penetram nas copas das árvores, como se o aparelho “enxergasse” abaixo da vegetação arbustiva e arbórea. Medindo as distâncias e os diferentes ângulos formados entre a fonte de luz e a superfície, a tecnologia cria imagens tridimensionais.
Os dados são enviados para o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e são convertidos em imagens que podem revelar antigas estradas, valas, aterros, elevações artificiais de terra e moradas indígenas. E os vestígios, que podem ser das últimas décadas ou milenares, são pistas para futuras escavações.
É a mesma tecnologia que permitiu desvendar antigos centros urbanos e pirâmides encobertas pela mata na Amazônia boliviana, em 2022, e mais de 60 mil construções na Guatemala, em 2018.
“A captura das imagens é como uma tomografia. Fazemos o exame inicial e, em seguida, é preciso fazer a biópsia, para buscar mais informações”, compara Eduardo Neves, diretor do Museu de Arqueologia da Universidade de São Paulo (USP) e um dos coordenadores do projeto.
PARCERIA. Entra aí um dos diferenciais da pesquisa: o trabalho colaborativo entre pesquisadores e comunidades tradicionais. Atuante na região amazônica desde 1986, Neves ajudou a articular uma rede de pesquisadores locais que atuam em instituições de ensino e centros de pesquisa. Eles têm relação com as comunidades e os primeiros achados dos sobrevoos são compartilhados com elas.
“Queremos fazer parte do projeto. Temos pontos de terra preta, locais sagrados, com potencial arqueológico. Mas é preciso passar pelo crivo do povo Tenharin. Precisa ser autorizado”, diz Antônio Enésio Tenharin, representante de povos indígenas em Humaitá, no sul do Amazonas.
Em alguns locais, como no Médio Tapajós, no Pará, o conhecimento indígena orienta os cientistas para locais mais significativos. Já os Kuikuro, do Alto Xingu, não autorizaram sobrevoos por entender que seus locais sagrados não devem se tornar públicos. Eles participam com imagens em pontos específicos.
O projeto é financiado pela National Geographic Society, organização global sem fins lucrativos. Já foram investidos R$ 2 milhões para sobrevoar cinco regiões, totalizando 1,6 mil km². Para mapear a Amazônia brasileira toda, seriam necessários R$ 500 milhões, segundo Neves.
PATRIMÔNIO. A Amazônia abrange um arcabouço construído ao longo de milênios pelos povos da floresta. Por isso, a pesquisa pretende resgatar esse patrimônio biocultural, resultado da intervenção humana na natureza. É o resgate de uma história não escrita, mas marcada na terra.
Com base nas evidências arqueológicas, a ideia é proteger e conservar essas áreas, impedindo a degradação e o desmate. A Constituição e a Lei 3.924/1961, conhecida como Lei de Arqueologia, protegem as áreas com sítios arqueológicos e seus entornos enquanto patrimônio cultural. “Queremos registrar os sítios arqueológicos para criar uma camada adicional de proteção a esses territórios”, diz Neves.
Bruna Rocha, professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) e também coordenadora do projeto, usa a expressão “arqueologia política” para descrever a atuação dos cientistas. “A arqueologia pode contribuir com a luta dos povos em áreas ameaçadas pelo desmatamento”, diz ela.
As áreas sobrevoadas estão no Arco do Desmatamento, região onde a floresta corre mais risco de ser transformada em áreas agrícolas e pastagens. Abrange partes dos estados do Pará, Mato Grosso, Rondônia, Acre e Amazonas. A Amazônia perdeu 20% de sua cobertura nos últimos 40 anos, segundo o Mapbiomas.
As áreas mapeadas pela pesquisa se concentram no sul do Amazonas, vale do Rio Guaporé, Médio Rio Tapajós, Terra do Meio (entre os rios Tapajós e Xingu) e a lha do Marajó. O povo Tupari, em Rondônia, luta pelo reconhecimento de uma região conhecida como Palhal, excluída do processo de demarcação da Terra Indígena Rio Branco. “Novas descobertas feitas pelo projeto trazem uma possibilidade maior de demarcar a região como uma nova área indígena. É uma região sagrada onde estão enterrados nossos anciãos”, diz Adilson Tupari.
*Estado de São Paulo, https://digital.estadao.com.br/o-estado-de-s-paulo, 20/01/2025, pg. A20