Portal G1, https://g1.globo.com/consciencia-negra/noticia/2020/11/19/nefrologista-carioca-descobre-a-primeira-medica-negra-do-brasil-e-fala-de-representatividade-numero-ainda-e-baixo.ghtml, 19/11/2020
Nefrologista carioca descobre a primeira médica negra do Brasil e fala de representatividade: ‘número ainda é baixo’
Baiana Maria Odília Teixeira foi a primeira mulher negra a se formar em medicina no Brasil, no início do século XX. ‘ O número de médicos negros ainda é baixo’, diz a médica carioca Scyla Maria Reis. Série especial do G1 ‘O que nos une’ marca semana da Consciência Negra.
Por Jorge Soares, Marcos Serra e Túlio Mello, G1 RJ
Mais de 110 anos se passaram desde que o Brasil formou sua primeira médica negra, a Doutora Maria Odília Teixeira. Apesar de muita coisa ter mudado desde então, ainda é difícil encontrar uma pessoa negra com essa profissão.
Em termos de imagem, a nefrologista carioca Scyla Maria Reis diz que ao longo de seus cursos não viu pessoas com traços semelhantes aos seus.
“O número de médicos negros ainda é baixo”, diz a nefrologista carioca Scyla Maria Reis.
Na semana da Consciência Negra, o G1 publica a série especial “O que nos une”. As reportagens lembram personagens negras e negros importantes na história do Brasil, por meio do olhar de pessoas inspiradas por eles ou que têm trajetórias similares.
Duas Marias com histórias semelhantes. Mulheres negras que se graduaram em medicina, profissão que ainda é majoritariamente exercida por pessoas brancas. Esta realidade, no entanto, tem mudado com o passar dos anos.
Dados do IBGE mostram que negros se tornaram a maioria dos estudantes nas universidades públicas em 2019. Na terminologia oficial do instituto, eles são a soma dos estudantes pretos e pardos e representavam 50,3% do total. Nas universidades particulares, a tendência também é de crescimento, mas os alunos negros ainda não ultrapassaram os 50%.
A pesquisa mostra ainda que a população negra representa quase 55% da força de trabalho. Mesmo sendo maioria, os negros enfrentam desigualdade no caminho da base até o topo, tendo que passar por uma janela estreita de oportunidades: só 30% dos cargos de comando no país são ocupados por negros.
“De uma maneira geral, a gente não vê um número enorme ainda, mas acho que essa situação está progredindo em relação a ocupar esses espaços”, afirma. “Como candidatos, jovens em formação, residentes, esse número vem aumentando progressivamente”, comemora a médica.
Maria Odília Teixeira se formou em medicina em 15 de dezembro de 1909, com muito esforço e ajuda de seus familiares. No Brasil, ela foi a primeira mulher negra a se graduar na área e também a primeira professora negra da Faculdade de Medicina da Bahia. O fato de Odília ter seguido a carreira acadêmica é motivo de admiração para Scyla.
“Certamente ela deve ter travado muitas batalhas, porque quando a gente alcança esse momento de professor da universidade, é um momento de muita dureza, de muita disputa”, afirma a médica sobre Maria Odília.
Famílias de médicos
Nascida em São Félix do Paraguaçu, na Bahia, Maria Odília era filha do também médico José Teixeira. É uma realidade que também atravessa a vida de Scyla, que é filha de Syllos de Sant’Anna Reis e neta de Synval de Sant’Anna Reis – médicos negros formados pela então Universidade do Brasil, a atual UFRJ.
“Eu acho que a medicina tem um pouco desse encantamento, esse lugar do filho que segue a carreira do pai. Na medicina isso é muito frequente”, revela a médica.
O fascínio pela medicina ultrapassou gerações na família Teixeira. Além do pai de Maria Odília, um dos filhos dela, dois netos e duas bisnetas da médica optaram por seguir carreira na área.
Ainda que sua profissão oferecesse prestígio, o patriarca da família era de origem pobre, e Maria Odília contou com a ajuda de seu irmão, Tertuliano, para concluir a faculdade. Mesmo sem sair do Brasil, a primeira médica do país falava cinco línguas fluentemente.
Saúde como área de resistência
A médica baiana também é emblemática quando o tema é a luta contra o totalitarismo. Maria Odília encarou os feitos da ditadura do Estado Novo e defendeu sua família, em Ilhéus, em 1937, quando o seu marido, Eusínio Gaston Lavigne, foi destituído do cargo de prefeito da cidade. Quase trinta anos depois, em 1964, sofreu com a prisão de seu companheiro durante a ditadura militar.
Para Scyla Maria, ocupar espaços em hospitais como uma mulher negra também é um ato político. Ela conta que, quando decidiu fazer medicina, ainda havia a ideia de que mulheres não deveriam seguir a profissão. Apesar disso, deixou de lado a hipótese de ser professora da educação infantil para seguir a carreira do pai.
“Era um olhar ao mesmo tempo político, ao mesmo tempo um olhar um pouco feminista. Porque tinha aquela coisa: ‘Medicina não é coisa para mulher’. Eu falei: ‘Desculpa, mas eu sou da época em que eu acho que a mulher faz o que quer’”, confessou a médica.
O terreno que Scyla encontrou ao ingressar na graduação já era diferente daquele encontrado por Maria Odília: em sua turma, cerca de 50% dos graduandos eram mulheres. Ainda assim, elas não eram tão iguais assim.
“Acho que já havia um local de conforto, mas ao mesmo tempo era perceptível que nós, meninas, dávamos um duro maior em relação a um acolhimento e à aposta dos professores”, revela a médica.
Reconhecimento
Ao conhecer a história de Maria Odília Teixeira, Scyla Maria mostrou que o reconhecimento é algo que atravessa gerações de profissionais negros da área. “Eu achei a história da doutora Maria Odília muito bonita”, conta a médica.
Se, por um lado, é inspirada pela baiana, a médica carioca também inspira os profissionais negros que estão ingressando na área. “Lutem por seus sonhos. Ocupem seus lugares”, diz Scyla Maria.
“Sempre tem uma fala: ‘Ah, doutora, quando crescer eu quero ser igual a senhora’, ‘nossa, como a senhora é linda’. Mas obviamente não é pela beleza, não tenho a menor pretensão com isso e nenhuma ilusão. Mas é, na minha tradução, por eu estar em um lugar inspirador. E eu acho que isso não deixa de ser uma ação política, porque, na medida em que você vai conquistando os lugares, você pode se tornar uma inspiração para outras pessoas”, conclui a médica.
Agradecimentos: à Universidade Federal do Rio de Janeiro; ao Instituto de Neurologia Deolindo Couto; a Lucimar Felisberto dos Santos; ao Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia.