Quando a busca por uma vida melhor em outro país vira um pesadelo
Rodrigo CasarinColunista de Splash, UOL
“Cinzas na Boca” é daqueles livros que crescem em nosso imaginário após a leitura, conforme pensamos a respeito dele e constatamos como a autora construiu um romance de aparência simples, mas repleto de nuances, cheio de nós e contradições.
Com tradução de Julia Dantas, esse é o segundo livro da mexicana Brenda Navarro que a Dublinense publica por aqui. O primeiro, o bom “Casas Vazias” (tradução de Livia Deorsola), conquistou muitos leitores ao tratar de sumiços e maternidades arruinadas.
Não há mistério. Logo nas primeiras páginas de “Cinzas na Boca” o leitor se depara com o suicídio de Diego, adolescente que costumava buscar refúgio na arte, nas músicas de Vampire Weekend, sua banda favorita. Diego cresceu aos cuidados de sua irmã um pouco mais velha, a narradora da história. Ao encontro da mãe relapsa e na busca por uma vida melhor que ambos deixam o México e partem para a Espanha.
Se a morte de Diego está dada, os motivos que levaram o jovem a tirar a própria vida são misteriosos. Num texto dividido em quatro partes com saltos temporais não lineares e que preserva marcas do espanhol mexicano, aos poucos Brenda nos apresenta um caleidoscópio de violências que ocorrem dos dois lados do Atlântico.
Compreendemos as enrascadas de Diego de soslaio, por meio das histórias descobertas e vivenciadas pela sua irmã, que nos lembra a G. H. de Clarice Lispector no estranho contato com algo que parece existencial.
É primeiro em Madri e depois em Barcelona, longe do irmão que permanece na capital espanhola, que a irmã nunca nomeada arruma trabalhos como empregada doméstica. Deixou o México pensando em ascender, mas o que encontra é um sistema de violências que se instaura em diferentes escalas. Tem que “calar a boca e servir” enquanto atende idosas cujas famílias parecem depender há séculos de alguma forma de exploração.
Fosse apenas isso, estaríamos diante de uma crítica banal aos choques coloniais que apenas mudam de forma com o passar dos séculos. Mas Brenda não cai em armadilhas maniqueístas. Ao mesmo tempo em que há apoio, também há sacanagens entre os latinos em situação semelhante à irmã de Diego. É simbólico um momento em que se trava uma discussão para ver quem leva a vida mais difícil por ali, como se o perrengue fosse motivo de orgulho num país onde não são apenas pobres, mas párias.
Há outros tipos no emaranhado de contradições construído por Brenda. Homossexuais que destratam outras minorias políticas. Certa elite universitária que parece mais preocupada com a própria imagem do que com as causas que supostamente defendem. O mala virtuoso que tenta mudar o mundo via WhatsApp enquanto despreza e humilha uma pessoa vista como, digamos, cidadã de segunda classe, para lembrar do romance da nigeriana Buchi Emecheta, outro a abordar as dificuldades da imigração para a Europa.
Enquanto isso, Diego buscava tocar a sua vida em Madri. Mostrava-se sensível a certas injustiças. Na escola, sofria na mão dos colegas, mas não deixava barato. Batia e apanhava. Era vítima de bullyng, mas não baixava a cabeça. É uma interação juvenil que também reproduz a dinâmica de gente que sofre com o racismo, discriminação e xenofobia procurando por alguém para subjugar, atormentar, humilhar.
A busca por uma vida melhor em outro país se torna um pesadelo na literatura de Brenda Navarro. Mas não que permanecer no lugar de origem fosse mais animador. Em “Cinzas na Boca” encontramos o México violento de Fernanda Melchor e Cristina Rivera Garza. Lugar onde um pai entrega a filha para ser abusada sob o argumento de que é melhor ser estuprada pelos vizinhos do que por desconhecidos.
Um país onde a vida pode valer pouco, e a de mulheres ainda menos. Uma nação onde corpos aparecem pendurados em passarelas e pessoas simplesmente somem. Um fragmento de “Casas Vazias”, o outro romance de Brenda, ecoa na cabeça durante a leitura de “Cinzas na Boca”: “Não importa o que digam: morto é melhor que desaparecido”. Pelo menos há alguma certeza sobre Diego.
Albert Camus abre “O Mito de Sísifo” com uma frase que ficou famosa, pescada aqui em tradução de Ari Roitman e Paulina Watch (Record): “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio”. A continuação não costuma ser muito lembrada: “Julgar se a vida vale ou não vale a pena é responder à pergunta fundamental da filosofia”.
Diego parece ter encontrado a resposta para si. Pelo mundo que Brenda nos apresenta, a dúvida não é porque o jovem tiraria a própria vida, mas o que lhe faria insistir num mundo em que parece fadado a ser massacrado.
*Portal Uol, https://www.uol.com.br/splash/colunas/pagina-cinco/2023/12/06/cinzas-na-boca-brenda-navarro-imigracao-suicidio-literatura-mexicana.htm, 06/12/2023