Educa2022, https://www.educa2022.com/post/a-quantidade-%C3%A9-inimiga-da-qualidade-no-ensino-superior, 12/08/2020

Quantidade versus qualidade

A expansão da educação superior ocorrida nos últimos anos tem sido alvo de críticas dos defensores do modelo de universidades pequenas e elitistas. Estas críticas, que se opõem abertamente ao modelo, ainda em construção, de universidades grandes e democráticas, são, em geral, sustentadas por mitos repetidos ad nauseam. E mito é algo, por vezes, difícil de desconstruir, pois, apesar de ser uma mentira, ele sempre parece guardar um fundo de verdade.

Um desses mitos afirma que a expansão da educação superior deve ser contida, porque a quantidade é inimiga da qualidade. Segundo esta lógica, nosso sistema de educação superior é grande demais e, em nome da qualidade, deve ter a sua expansão freada. Nada mais falacioso!

Nosso sistema de educação superior não é grande, como querem fazer parecer os adversários da expansão. Claro que um número como 8,4 milhões de matrículas dá a impressão de que estamos diante de algo gigantesco, pois nossas matrículas são em número bem maior do que a população da Finlândia ou equivalente a quase três vezes a população do Uruguai ou do Qatar. Entretanto, para sabermos se o nosso sistema de educação superior é, de fato, grande ou não, há que se compará-lo não com as populações de outros países, mas com a capacidade dos seus sistemas de atender à população que busca a educação superior. E quando essas comparações são feitas, percebemos que temos uma educação superior, na verdade, pequena e quantitativamente insatisfatória. A taxa de escolarização líquida brasileira hoje, segundo os últimos dados publicados pelo Inep, é de 25,5%, e a bruta, de 37,9%. A título de comparação: os países europeus, a América do Norte e vários países da Ásia já ostentam taxas líquidas de mais 40% há várias décadas. Para registro: a taxa bruta brasileira de hoje é equivalente à taxa norte-americana de 1970.

Observar a taxa de escolarização líquida é importante, porque esses percentuais expressam quantos de cada 100 jovens de 18 a 24 anos vão à educação superior ou, mais amplamente, quantos cérebros, inteligências e energias criativas são potencializados pelo país para que possam melhor contribuir com o desenvolvimento nacional. Se potencializamos somente 25 de cada 100 jovens, significa dizer que a 75 não são dadas as condições ou a motivação suficiente para que possam continuar os seus estudos para além do ensino médio.

Por termos, portanto, um sistema de educação superior proporcionalmente pequeno, é que o Plano Nacional de Educação (PNE), de 2014, estabeleceu como meta para 2024 uma taxa de escolarização líquida modesta de 33%. Passados seis anos do início da execução do plano, continuamos praticamente no mesmo patamar de 2016, ou seja, distantes da modesta meta estabelecida.

A média nacional, no entanto, esconde marcantes desigualdades regionais e estaduais. O Distrito Federal, com 42,2%, e Santa Catarina, com 33,7%, já superaram a meta. Pará, Maranhão, Bahia, Sergipe e Alagoas apresentam os piores desempenhos, com cerca de 16%. É importante lembrar que, mesmo que a meta seja atingida por algum estado ou pelo país como um todo, ainda assim não cabe a eles descanso ou desatenção, pois continuarão muito distantes das taxas exibidas pelos países desenvolvidos.

Dívida

Da mesma forma, não é trivial dar atenção à taxa de escolarização bruta, pois ela nos informa como o país está pagando a sua dívida histórica com todos aqueles que, por uma razão ou outra, perderam a idade correta para acessar a educação superior. Sempre é bom lembrar que até recentemente a educação superior pública e gratuita tinha a metade do tamanho que hoje tem e que, por isso mesmo, era altamente disputada e excludente. Por outro lado, a educação superior privada e paga cobrava mensalidades proibitivas para a maioria dos candidatos, sendo, portanto, igualmente inacessível. Esse quadro começou a mudar com programas como o Prouni, Proies e o Fies-2010, no setor privado, e o Reuni, o Sisu, a criação dos institutos federais e a implementação da Lei das Cotas, no setor público. Foi com o intuito de assegurar o pagamento dessa dívida com gerações de estudantes excluídos da educação superior, por um sistema elitista e excludente, que os formuladores do PNE definiram uma meta também para a taxa de escolarização bruta. A meta prevê uma taxa de 50% até 2024. Como vimos acima, continuamos a 12 pontos percentuais de distância dessa meta, o que indica que ela lamentavelmente não será atingida.

Mesmo assim, a ladainha de que expandir vai piorar a qualidade pode ser ouvida em muitos lugares, dentro e fora do campus. O argumento busca sustentar-se na meia verdade subjacente a este mito, ou seja, a de que modelos pequenos e elitistas, altamente seletivos e excludentes, podem, de fato, em certos cenários, gerar mais qualidade. O problema é que esse pequeno é bom e bonito como o bonsai, ou seja, como uma planta torturada e artificialmente condenada ao nanismo. Tal estratégia torturante aplicada a plantas, se estendida ao sistema educacional, seria responsável por condenar milhões de jovens potencialidades ao nanismo intelectual. Defender sistemas pequenos, elitistas e excludentes, criando nichos de excelência, com qualidade para poucos, equivale a promover oligarquias e a desprezar a liberação das energias criativas da sociedade como um todo. Esse modelo elitista de educação superior evidentemente não é mais defensável, como já bem declarava Martin Trow desde a década de 1960.

Privilégio

O mito de que a quantidade é o grande inimigo da qualidade, no entanto, insiste obstinadamente em manter-se vivo. Fosse isso verdadeiro, a educação superior do Brasil deveria ser um exemplo da mais alta qualidade entre as instituições acadêmicas do planeta, pois, conforme acima demonstrado, tem taxa de escolarização, líquida e bruta, comparativamente muito pequena. O fato é que, proporcionalmente à população, nossa educação superior ainda é um privilégio, e não ousaríamos afirmar que temos melhor qualidade educacional que os países europeus, que os Estados Unidos, que vários países asiáticos ou que alguns vizinhos da América Latina. Trata-se, portanto, de um mito, de uma falsa crença, de uma fantasia que não se sustenta nos dados e nas muitas evidências internacionais. Sustenta-se tão somente no saudosismo dos que continuam a sonhar com os ‘bons’ velhos tempos em que a educação básica era para bem poucos e a educação superior, para quase ninguém. A luta por uma educação superior de qualidade como direito e não como privilégio, para todos e não apenas para alguns, pode ser longa e difícil, mas é a luta que precisa ser feita por todas as nações que se querem soberanas, avançadas e emancipadoras.

Dilvo Ristoff é doutor em literatura pela University of Southern California, nos Estados Unidos. Foi diretor de Estatísticas e Avaliação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), diretor de Educação Básica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e diretor de Políticas e Programas da Secretaria de Educação Superior do Ministério da Educação (SESu/MEC). Foi também reitor da Universidade Federal da Fronteira Sul. É autor e coautor de inúmeros livros, entre eles, Universidade em foco − reflexões sobre a educação superior (Editora Insular, 1999), Neo-realismo e a crise da representação (Insular, 2003) e Construindo outra educação: tendências e desafios da educação superior (Insular, 2011). Atualmente ministra aulas e orienta dissertações no Programa de Mestrado em Métodos e Gestão em Avaliação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

O artigo acima é de responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a visão do Educa 2022.

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