Portal Uol, https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/causadores-melissa-couto/#cover, acessado em 20/07/2021
UMA REDE DE AMPARO
Melissa Couto descobriu no conforto a famílias de vítimas de tragédias sua vocação para ajudar o próximo
SIBELE OLIVEIRA- COLABORAÇÃO PARA ECOA, DE SÃO PAULO
Se pudesse voltar no tempo, Melissa Haigert Couto, 42, faria tudo igual. Mesmo que precisasse reviver situações difíceis, como o acidente de carro que quase a matou dois meses antes de se formar psicóloga. Ou chegar ao velório dos adolescentes e jovens que morreram no incêndio da boate Kiss, em janeiro de 2013, e encontrar a maneira certa de amparar tantos pais desesperados. Foram experiências como essas que fizeram dela uma mulher forte e objetiva, de jeito doce e emotivo, que se dedica a cuidar de quem está passando por uma dor avassaladora.
Melissa parece incansável. Quando não está em campo, é encontrada em universidades e órgãos públicos falando sobre a importância do apoio psicossocial em emergências e desastres. Ou capacitando psicólogos de todos os cantos do país para fazer esse trabalho.
A vocação para cuidar de pessoas surgiu na infância. O emprego do pai de Melissa exigia que, de tempos em tempos, a família se mudasse de cidade. Sempre que chegava a um endereço novo, a gaúcha procurava um trabalho voluntário para fazer, geralmente em grupos de igreja ou ONGs que atendiam crianças em situação de vulnerabilidade social.
Viveu essa rotina até sofrer o acidente, aos 23 anos. Depois de 11 dias em coma, Melissa acordou com a certeza de que tinha sobrevivido para fazer algo importante no mundo. Ali, decidiu transformar sua vocação em missão de vida.
O que estamos vivendo agora está sendo muito difícil. Cada atendimento é único, cada dor é a mais difícil
Melissa Couto, psicóloga
Chamada para a boate Kiss e Chape
A clareza de qual seria esse caminho veio em janeiro de 2013, quando a psicóloga estava acompanhada da família, voltando de férias. Na estrada que a levaria de Balneário Camboriú para Santa Maria, sua terra natal, recebeu uma ligação do presidente da Cruz Vermelha da cidade, avisando do incêndio da boate Kiss. Voluntária da instituição, foi convocada para ir até lá.
“Foram as minhas pessoas, da minha cidade. Estava na minha casa, então pude dar mais amparo para as famílias e para a comunidade como um todo”, conta. Embora tenha sido sua experiência mais difícil, ali ela se encontrou de maneira definitiva. “Foi um divisor de águas na minha vida e na minha carreira. Porque foi a primeira vez que a gente teve no Brasil uma resposta satisfatória dentro de todos os protocolos de comando internacional”, afirma ela, que criou, na Cruz Vermelha, o primeiro curso brasileiro de apoio psicossocial em emergências e desastres.
Com o tempo, sua bagagem de experiências em campo foi ficando mais volumosa. Três anos depois da tragédia de Santa Maria, a psicóloga foi chamada para Chapecó, após a queda do avião com o time de futebol e a delegação da Chapecoense em 2016. Antes de embarcar, pensou que estava preparada para o que iria encontrar. “Lá não tinha só pais enterrando os filhos, mas também filhos enterrando os pais”, lembra.
Melissa precisou reunir forças para criar uma estratégia para que os psicólogos locais pudessem oferecer àquelas pessoas o cuidado necessário ao momento. A sensação de que esse tipo de trabalho nunca é fácil voltou quando se deslocou para Brumadinho, no início de 2019, para oferecer afeto e um ombro no qual as pessoas poderiam se apoiar após a tragédia provocada pelo rompimento das barragens.
Acolhimento na pandemia
Foi em Brumadinho que Melissa e outros dois psicólogos, Marly Perrelli e Marcelo Perpétuo, decidiram fundar a Rede de Apoio Psicossocial, para vencer a burocracia excessiva e ter condições de oferecer uma resposta rápida, adequada e ética em situações de calamidade como aquela, sem atravessamentos políticos e econômicos.
Com mais autonomia, o trio ofereceu, dentro de igrejas locais, um treinamento baseado em publicações científicas, compaixão, cuidado e afeto, para profissionais da cidade que estavam socorrendo as vítimas. Também capacitaram psicólogos da PUC-Minas (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais).
Melissa passou o ano de 2019 percorrendo o Brasil presencial ou virtualmente com cursos e palestras sobre como acolher e apoiar pessoas que sofrem grandes perdas, para que elas ativem a capacidade de resiliência e sigam em frente.
Com o agravamento da pandemia, a psicóloga foi procurada pelo comitê de crise de Lageado, primeira cidade gaúcha sob bandeira vermelha por causa das UTIs superlotadas. Eles precisavam que uma estratégia fosse criada para ajudar a preservar a saúde mental no município e que garantisse a segurança no atendimento para profissionais da saúde e pacientes.
Assim que o Conselho Federal de Psicologia autorizou o atendimento remoto para situações de emergência, Melissa e os outros psicólogos da RAP criaram protocolos de primeiros socorros psicológicos para atendimentos à distância em parceria com a Univates (Universidade do Vale do Taquari). O próximo passo foi reunir psicólogos voluntários para acolher profissionais da linha de frente via call center.
A Rede de Apoio Psicossocial já capacitou cerca de 4.000 psicólogos brasileiros nestes protocolos, além de 350 argentinos. Além disso, Melissa atua em cursos para bombeiros civis, socorristas, brigadistas de incêndio, entre outros.