Médicos na Argentina têm salário abaixo da linha da pobreza

Amanda Cotrim, Colunista do UOL, em Buenos Aires*

Se existe algo de que os argentinos são orgulhosos, além do vinho, da carne e do futebol, é a educação pública. Mas, nos últimos meses, o hospital-escola da UBA (Universidade de Buenos Aires), a maior universidade da Argentina, vem enfrentando desafios denominados pelo diretor do hospital como “a maior crise dos últimos anos”.

“Nunca vivemos uma situação como esta. Os outros anos foram difíceis, mas este ano está pior”, disse o diretor do Hospital de Clínicas da UBA, Marcelo Melo, em entrevista ao UOL.

Atualmente, 10% do orçamento do hospital está destinado para o seu funcionamento, como a compra de insumos e medicamentos, e 90% é usado para o pagamento de salários. Essa conta, no entanto, não está fechando, diante da inflação de mais de mil por cento de remédios e a inflação interanual de mais de 260%.

Diante de um orçamento apertado, 80% dos funcionários do hospital da UBA (cerca de 3.000 profissionais) estão com os salários abaixo de 900 mil pesos (R$ 4.000, aproximadamente). De acordo com o Instituto Nacional de Estatísticas e Censo da Argentina, uma família precisa de 900 mil pesos para não ser considerada pobre e de 405 mil pesos (R$ 1.800) para não ser considerada indigente.

“Nossos médicos e enfermeiros estão abaixo da linha da pobreza”, disse Melo sobre o salário dos profissionais que têm uma jornada diária de 7 horas. “Sem contar os médicos com contratos de emergência que estão recebendo 300 mil pesos (R$ 1.300) por mês”, contou. “São profissionais com título, que estudaram, que cuidam da saúde da população; não podem receber salários abaixo da linha da pobreza”, diz o diretor do HC.

Na semana passada, cerca de 5.000 pessoas se manifestaram com um abraço solidário no prédio do Hospital de Clínicas da UBA para sensibilizar o governo Milei sobre a situação crítica que vive a instituição. Foi o segundo segundo abraço simbólico no hospital, como forma de protesto, em cinco meses. Além disso, o hospital paralisou por 24 horas no dia 26 de setembro e os funcionários prometeram participar de um grande ato pela educação pública – o segundo em 2024 – organizado por movimentos de estudantes e professores para esta quarta-feira (2).

O Hospital de Clínicas pertence à maior universidade da Argentina, que, no primeiro semestre, precisou fazer corte de luz e ter aulas na rua para economizar diante da crise econômica.

O protesto convocado para o dia 2 de outubro é uma tentativa de impedir o provável veto do presidente Javier Milei à lei de orçamento universitário, aprovada no Senado. A manifestação também quer sensibilizar a população diante da situação econômica que vive o sistema de educação e pesquisa científica no país. No início de setembro, o veto de Milei à lei para aumentar a aposentadoria provocou protestos violentos em Buenos Aires.

O porta-voz da Casa Rosada, Manuel Adorni, disse em coletiva de imprensa na sexta-feira (27) que, até o fim do mandato, o governo não pretende parar com a política de ajuste fiscal e que nos próximos anos serão cortados ainda mais gastos, indicando que, ao invés de aumentar orçamentos, o governo pretende reduzi-los.

“O salário do médico é uma ofensa”

Entre um atendimento e outro, o residente de traumatologia e ortopedia do Hospital de Clínicas da Universidade de Buenos Aires, Facundo Viola, contou à reportagem que os salários dos residentes estão defasados, “ainda mais morando na capital, Buenos Aires”. Segundo ele, o aluguel de um studio ou de um quarto e sala está ao redor de 600 mil pesos (R$ 2.600), além dos demais gastos para viver, que ultrapassam um milhão de pesos (R$ 4.500), mais do que um médico recebe no HC.

“É um período complicado para ser médico [na Argentina]. Um residente tem dedicação exclusiva e não pode trabalhar em outros hospitais para complementar a renda. Com esse não é possível viver com o básico, em uma carreira que é longa e leva anos de estudos. É uma loucura e me dá muita raiva e frustração essa situação”, desabafou.

Viola também acredita que a falta de um salário compatível com a função pode ser explicada por um mito de que os médicos trabalham apenas por vocação. “Amamos a medicina, mas precisamos viver. Essa situação dos baixos salários impacta também nosso emocional. Nosso trabalho exige responsabilidade. Ganhar 900 mil pesos é uma ofensa”, relatou Viola. “Não consigo vislumbrar um bom futuro para uma sociedade que não valoriza os seus profissionais de saúde, seja o médico ou qualquer outro da área”, afirmou.

Hospital reduz atendimento para não fechar

Segundo Melo, a situação do hospital-escola é tão crítica que, das 20 salas de cirurgia que deveriam funcionar, apenas 5 estão sendo usadas. O critério adotado tem sido manter as cirurgias mais importantes, nas áreas de traumatologia e oncologia. O hospital também tem contraído dívidas para poder manter seu funcionamento básico, revelou o diretor do HC ao PORTAL UOL,.

Um exemplo são os recursos para realização de exames que envolvem contraste e exames cardíacos. O custo era de 1 milhão de pesos (cerca de R$ 4.500) mensais em 2023 e passou a 13 milhões de pesos (R$ 57 mil) por mês este ano. “É difícil pagar esses gastos sem aumento de orçamento”, disse Melo, mostrando preocupação com os fornecedores que, por não receberem do hospital, podem se recusar a participar de licitações futuras.

O diretor do HC também contou que a pesquisa, um “braço” importante do hospital, está estagnada devido à falta de investimentos. Melo disse que, se a situação não melhorar, o hospital irá diminuir ainda mais as cirurgias e os atendimentos para que a unidade não precise fechar as portas. “Vamos cada vez precisar reduzir mais a atenção para continuar funcionando”.

A categoria de profissionais de saúde do HC está pedindo que os salários tenham aumento de pelo menos 50%, já que a inflação acumulada em 2024 é de 87%, além do aumento de orçamento para a compra de insumos e remédios, cuja inflação passa de 1.000%. Os salários já haviam recebido um ajuste em 2024, mas, com a inflação acumulada de quase 90%, os valores ficaram defasados.

Atualmente, o valor pago pelo HC a um médico em um plantão é um terço do que paga um hospital particular, o que gera evasão de profissionais e colapso no atendimento à população, constata Melo.

“Não é sobre governos, são prioridades. O hospital reclama há anos. Os números não mentem. Antes, mesmo com a situação econômica delicada, havia um ajuste de salários compatível com a inflação. No ano passado, a UBA figurou rankings internacionais entre as melhores universidades do mundo e esse mérito está em risco”, afirma o diretor.

Atualmente, o Hospital de Clinicas atende cerca de 500 mil pessoas por ano e conta com 39 residências, ou seja, especialidades médicas, além de 15 mil cirurgias anuais, atendendo a população de Buenos Aires mas também de outras partes da Argentina, sendo considerado hospital de referência.

Melo afirma que o hospital-escola desenvolve assistência social, ensino e pesquisa, formando um triângulo que se retroalimenta, ou seja, “sem pesquisa, não há ensino, sem ensino não há assistência”. “O que nos espera se não investirmos? São os médicos de agora que vão atender nossos filhos no futuro”, questiona Melo.

*Portal UOL, https://noticias.uol.com.br/colunas/amanda-cotrim/2024/10/01/medicos-na-argentina-estao-abaixo-da-linha-da-pobreza.htm, 01/10/2024

Categorias: Medicina

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