Custo de vida na Argentina frustra brasileiros
Após medidas do governo Milei, ficou caro morar no país vizinho
LUCIANA TADDEO | OESP*
A estudante de medicina Letícia Pancieri vai mudar para o Paraguai; a médica Isla Montalier precisou voltar aos plantões; e a design de interiores Elisa Moura foi embora da Argentina.
Após três anos morando em Buenos Aires, onde estudava Medicina, a brasileira Letícia Pancieri decidiu ir embora da Argentina e se mudar para o Paraguai por conta da disparada do custo de vida no país no último ano – o primeiro do governo de Javier Milei, no poder desde dezembro de 2023.
Nascida em Vitória, no Espírito Santo, ela conta que o primeiro aviso veio já em janeiro de 2024, quando voltou de um período de férias do Brasil. “Fui tomar um suco que antes custava R$ 8 e paguei R$ 22. Aí acendeu um alerta e vi que as coisas estavam mudando.”
De lá para cá, os preços na Argentina subiram consideravelmente, tornando-se um luxo para muitos brasileiros atraídos pelo baixo custo de vida para quem chegava ao país com moeda estrangeira e comprava uma moeda local desvalorizada. Com o encarecimento dos últimos meses, muitos brasileiros abandonaram – ou estão abandonando – o país.
Assim como Letícia, vários transferiram o curso de Medicina para o Paraguai, país mais em conta financeiramente para seguir com estudos. “Muitas pessoas estão me procurando para pedir orientações para vir estudar aqui, dizendo que está impossível morar na Argentina”, conta ela.
O susto da estudante com o preço do suco ocorreu um mês após a posse de Milei. Logo que chegou ao poder, o economista libertário desvalorizou a cotação oficial do peso, congelada artificialmente, em 50%. Naquele mês, a inflação chegou a 25,5%. Em janeiro, caiu para 20,6% e foi baixando até registrar 2,7% em dezembro.
Mas a redução ocorreu, em grande parte, pela desaceleração da economia, sobre um nível de preços altos e um poder de consumo que não acompanhou o aumento. “Antes, toda semana eu conhecia um restaurante, ia a shows ou ia ver ópera. Nos meus últimos tempos em Buenos Aires, já não conseguia fazer nada disso”, relata.
Além de cortar os gastos de lazer, ela sentiu os reajustes na mensalidade da faculdade. Foi quando decidiu trancar o curso. Para Letícia, a transferência para o Paraguai foi a decisão correta: o aluguel que dividia em Buenos Aires com uma amiga, antes de R$ 2 mil, passou para R$ 5 mil. Já a mensalidade da faculdade pulou de cerca de R$ 800, em novembro de 2023, para R$ 1.500.
AUMENTO GERAL. Mas o preço do curso é somente um dos fatores que afetam os brasileiros. Tudo no país aumentou: aluguel, gastos domésticos, planos de saúde, compras nos supermercados, com uma cotação do peso que se valorizou diante do real nos últimos meses.
Na análise do economista Hernán Letcher, diretor do Centro de Economia Política Argentina, o governo Milei mantém o peso valorizado, com a venda de dólares do Banco Central, porque isso dá aos argentinos a sensação de maior poder aquisitivo, apesar de, na prática, os custos estarem aumentando no país.
“Alguns estão muito contentes por causa disso, porque os demais países ficam baratos para os argentinos, mas em termos de poder de compra, de consumo aqui, os custos estão mais caros”, explica, enfatizando que a queda anual de 11,9% em 2024 em relação ao ano anterior indica que os argentinos também não contam com o mesmo poder aquisitivo.
Mas os brasileiros ainda sentem o peso da inflação em dólares. O governo Milei aplica um sistema de desvalorização controlada da moeda local, denominado crawling peg, um índice mais lento do que a inflação, o que faz com que os produtos fiquem mais caros na moeda americana. “No caso dos brasileiros, isso se agrava devido à desvalorização do real.”
´FIM DO ‘CONTO DE FADAS’. “Todos os custos estavam altíssimos, a gente não saía mais para comer, já não comprava coisa boa”, lembra a design de interiores Elisa Moura sobre a decisão de deixar a Argentina. Ela relata que viveu “um conto de fadas” no país vizinho com preços baixos, alta qualidade de vida e oportunidades, como fazer cursos de restauração arquitetônica e de vitrais.
Mas em janeiro passado, Elisa sentiu que seus gastos “começaram a subir galopantemente”. Em questão de meses, seu custo de vida com a esposa e dois gatos foi de R$ 3 mil para R$ 6,5 mil. Só a conta de luz, que era menos de R$ 100, quintuplicou em agosto de 2024.
A gota d’água para decidir ir embora do país foi saber que o valor do aluguel iria dobrar. “A gente percebeu que tinha passado do nosso limite, que o custo de vida estava mais caro do que no Brasil, e que já não poderíamos morar lá”, diz. Segundo ela, no entanto, foi “um prazer” voltar a São Paulo e encontrar preços mais baixos.
A experiência é compartilhada por diversos brasileiros que deixaram a Argentina. A carioca Gabriela Costa, que trancou o curso de Direito que fazia na Grande Buenos Aires e vol
tou para o Rio em julho, conta que se impressionou com a diferença dos preços: no Brasil, conseguia meio quilo de peito de frango por um terço dos R$ 30 que pagava em Buenos Aires. E os R$ 5 que gastava em uma cabeça de alho na Argentina compravam três no Brasil.
Até em Portugal os custos estão mais baixos do que a Argentina, diz à reportagem um tradutor de Florianópolis, que pediu para não ter o nome revelado porque está tentando conseguir visto no país. Segundo ele, na cidade do Porto, sair para comer um hambúrguer ronda em torno de ¤ 6 (R$ 37), quando na Argentina estava, até dezembro passado, quando morava no país, em torno de 16 mil pesos (R$ 82). “Decidi ir embora porque sentia que não tinha poder de compra, que cada vez trabalhava mais e ganhava menos. Não conseguia economizar, gastava meu dinheiro em coisas básicas.”
Já a nômade digital Camila Moreira Lucinda conta que sua decisão, em outubro, de voltar a ter o Brasil como base do trabalho remoto para uma multinacional dos Estados Unidos, ocorreu por sentir que seu custo de vida na Argentina aumentou inclusive em dólares. Segundo ela, contas básicas mais do que triplicaram, algumas subitamente, como a de luz, que foi de 15 mil pesos (cerca de R$ 77) para 75 mil pesos (R$ 384), em abril, sem que houvesse aumento do consumo que justificasse a alta. Já seu condomínio passou de 20 mil pesos (R$ 102) para 70 mil (R$ 359). Para completar, seu aluguel passaria a ser reajustado trimestralmente de acordo com a inflação. “Senti que a situação ia piorar e, se for para ficar trabalhando para sobreviver, para poder ter o básico, sem poder fazer nada, preferia voltar. Então nem pensei duas vezes”, explica.
OS QUE FICARAM. Quem ficou teve de reformular o modo de vida. Teve quem reduziu o consumo de carne: hoje o quilo de peito de frango na Argentina custa cerca de R$ 50, e o da vermelha varia de R$ 40 a R$ 130, de acordo com o corte.
Também teve quem abdicou dos planos de saúde. Uma das maiores prestadoras da Argentina mandou avisos de aumentos a seus clientes todos os meses desde que Milei decretou o fim da regulação de preços, em dezembro. O governo chegou a entrar na Justiça contra empresas do setor, alegando cartelização, e conseguiu uma ordem judicial para a devolução de parte do valor cobrado dos clientes, mas a alta das mensalidades em relação a dezembro de 2024 já supera 220%.
Para se adaptar ao novo custo de vida no país, a médica sergipana Isla Montalier Queiroz voltou a fazer plantões hospitalares, aumentou a quantidade de consultas particulares que oferece diariamente e sairá, antes do que tinha planejado, do apartamento que aluga no bairro de Villa Crespo, para ir morar com o namorado em Quilmes, na Grande Buenos Aires. “Aos poucos, comecei a mudar meu estilo de vida, comendo menos fora. Meu dinheiro estava indo só para pagar contas”, relata a brasileira de Aracaju, cujos gastos somente com o apartamento e contas domésticas foram de US$ 300 (R$ 1,7 mil), em março, para US$ 1,2 mil (R$ 7,09 mil). Ela diz, porém, que, apesar do momento difícil, não voltaria ao Brasil. “Minha ideia é me reorganizar financeiramente de acordo com como a banda está tocando aqui na Argentina agora.”
“Fui tomar um suco que antes custava R$ 8 e paguei R$ 22. Aí acendeu um alerta e vi que as coisas estavam mudando” – Letícia Pancieri -Aluna de Medicina que trocou a Argentina pelo Paraguai
*Estado de São Paulo, https://digital.estadao.com.br/o-estado-de-s-paulo, 26/01/2025, pg.A16