Informalidade atrai brasileiro e agrava falta de mão de obra qualificada
Diferença de renda do trabalho por conta própria em relação ao emprego formal está em queda
MÁRCIA DE CHIARA | OESP*
Visto até pouco tempo atrás apenas como “tábua de salvação” em momentos de crise, o trabalho sem carteira assinada atrai número cada vez maior de brasileiros, mesmo com a economia crescendo e o desemprego baixo, informa Márcia de Chiara. Seduzidos pela maior flexibilidade na jornada e pela redução da diferença de renda entre o emprego formal e as atividades informais, muitos trabalhadores têm preferido atuar por conta própria, em vez de “bater ponto” como assalariado, abrindo mão de direitos trabalhistas e benefícios como plano de saúde oferecido pelo empregador. A mudança ganhou força com o avanço da tecnologia, por meio de aplicativos de transporte e entrega, e agrava a escassez de mão de obra qualificada no mercado formal. Fatia de trabalhadores com maior grau de escolaridade na informalidade cresceu.
Se em épocas de crise e de desemprego elevado o trabalho sem carteira assinada era uma espécie de tábua de salvação para o brasileiro garantir alguma renda no fim do mês, hoje essa lógica mudou. Com o desemprego baixo e a economia crescendo, a informalidade está “roubando” trabalhadores do mercado formal e agravando o quadro de escassez de mão de obra qualificada para ocupar as antes cobiçadas vagas com carteira assinada.
“No passado, a informalidade do trabalho estava associada à necessidade”, afirma Rodolpho Tobler, economista do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV). Atualmente, porém, a informalidade tem se tornado uma escolha do trabalhador. Essa alternativa ganhou força com o avanço da tecnologia, especialmente por meio de aplicativos de transporte de passageiros e entrega de mercadorias.
A maior flexibilidade na jornada e nos horários de trabalho proporcionada pela informalidade, aliada à redução da diferença de renda entre o trabalho sem carteira e a ocupação formal, tem sido decisiva para muitos brasileiros que têm escolhido trabalhar por conta própria.
Taciano Rocha, de 45 anos, é um deles. Formado em Administração de Empresas e cursando atualmente a faculdade de Direito, o ex-propagandista da indústria farmacêutica virou motorista de aplicativo há quatro anos e três meses, depois de trabalhar por 17 anos no setor fabril.
Além da carteira assinada, na indústria ele ainda tinha carro da empresa, celular, plano de saúde, previdência privada e direito à Participação nos Lucros e Resultados (PLR) da companhia.
LIBERDADE E FLEXIBILIDADE. No início deste mês, Rocha conta que recebeu uma oferta para voltar a ter carteira assinada como representante da indústria farmacêutica. A proposta iria lhe propiciar uma renda 15% maior em relação ao que ele tira atualmente como motorista de aplicativo, mas ele decidiu recusar a oferta. “Se aceitasse, iria perder a liberdade e a flexibilidade”, diz ele. Rocha não pretende voltar a ter carteira assinada porque quer ter mais convívio com a família. “Só se me pagassem muito bem, algo em torno de R$ 20 mil a R$ 30 mil: aí eu iria.”
O motorista de aplicativo conta que tem uma estratégia para conseguir uma renda que cubra as suas despesas e ainda permita formar uma poupança: selecionar as corridas e aceitar somente aquelas mais rentáveis.
Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva, confirma que a percepção de Rocha sobre as vantagens do trabalho sem carteira assinada em termos de flexibilidade e liberdade é um ponto comum nos resultados das pesquisas qualitativas que ele tem coordenado sobre o tema.
Um estudo do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV), feito a partir dos microdados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revela que os ganhos de renda dos trabalhadores que estão no mercado de trabalho sem carteira assinada vêm aumentando. Com isso, diminuiu a diferença em relação aos trabalhadores formais.
Em 2015, por exemplo, os empregados com carteira assinada ganhavam, em média, 73% mais do que os sem carteira. No fim do ano passado, essa diferença recuou para menos da metade: 31%. Apesar de a baixa escolaridade ainda predominar entre os trabalhadores sem carteira, esse quadro também vem mudando nos últimos 12 anos, com o avanço do nível de instrução entre os trabalhadores brasileiros, de maneira geral, observa o economista Rodolpho Tobler, autor do estudo do Ibre/FGV.
No entanto, esse avanço da participação de trabalhadores com maior grau de escolaridade tem ocorrido de forma mais acelerada entre os sem carteira assinada. No fim do ano passado, por exemplo, 54% dos trabalhadores sem carteira tinham ensino médio completo e superior, ante 34% em 2012, uma diferença de 20 pontos porcentuais.
Já no mercado formal de trabalho, o avanço da participação dos trabalhadores com ensino médio completo e superior no mesmo período foi de 15 pontos porcentuais: era de 61%, em 2012, e subiu para 76% em 2024.
‘SALÁRIO BOM’. Apesar disso, o economista pondera que, entre os trabalhadores sem carteira, o grupo com maior qualificação ainda é menor comparado ao dos trabalhadores formais. E a vulnerabilidade é maior na informalidade, comparada com o emprego formal, em razão da menor proteção trabalhista e da renda média menor.
Tobler frisa, contudo, que esse grupo mais qualificado tem crescido mais entre os sem carteira. “É um sinal de que esses trabalhadores mais qualificados estão em busca da informalidade e também estão encontrando um salário bom ali.”
“Se aceitasse (a proposta para voltar a trabalhar na indústria farmacêutica) iria perder a liberdade e a flexibilidade. Só (voltaria a trabalhar na indústria) se me pagassem muito bem, algo em torno de R$ 20 mil a R$ 30 mil: aí eu iria” – Taciano Rocha, administrador, que é motorista de aplicativo
A escassez de mão de obra observada em alguns setores da economia, como construção civil e supermercados, por exemplo, decorre também do fato de existir uma massa de brasileiros que têm qualificações genéricas e conseguem migrar de um tipo de ocupação para outro, observa o economista Bruno Imaizumi, consultoria LCA 4intelligence.
“A alta taxa de informalidade da economia brasileira acaba permitindo essa rotatividade, o que leva à escassez de mão de obra em alguns setores”, afirma o economista.
RISCOS. Apesar de o mercado formal de trabalho ter avançado, em dezembro do ano passado 7 das 27 capitais tinham mais de 50% dos ocupados na informalidade. No mesmo período, a informalidade respondeu por 38,6% do pessoal ocupado na média do País, segundo o IBGE.
Imaizumi pondera que a informalidade traz riscos para o trabalhador no longo prazo. Entre eles, aponta a falta de uma aposentadoria, caso o trabalhador não contribua como autônomo ou Microempreendedor Individual (MEI). Além disso, empregos com carteira assinada tendem a ser mais rentáveis e menos voláteis. “Tem esses outros benefícios, essas seguranças que o emprego informal não acaba trazendo.”
Pelos critérios usados pelo IBGE, são considerados informais trabalhadores do setor privado sem carteira assinada, trabalhadores domésticos sem carteira assinada, trabalhadores por conta própria sem Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), empregadores sem CNPJ e trabalhadores auxiliares, que são familiares, que nem têm rendimento.
*Estado de São Paulo, https://digital.estadao.com.br/o-estado-de-s-paulo, 20/04/2025, pg. B1