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Jornal
da Unicamp,
Campinas, 17 de
novembro de 2014 a 23 de novembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 614

A arte do cinema, quadro a quadro



Dois livros do professor e pesquisador norte-americano David Bordwell, ambos
lançados pela Editora da Unicamp, mostram como se entrelaçam os elementos que
compõem a narrativa fílmica


MARTA AVANCINI
-Especial para o JU


Quando vamos ao cinema, uma das experiências mais comuns é mergulhar na
narrativa que se desenrola na tela grande à nossa frente. Nós nos desligamos do
cotidiano e, durante uma hora e meia, entramos num mundo paralelo, onde
vivenciamos todo tipo de emoção: da raiva contra o vilão à alegria pelo par
romântico que finalmente se encontra. 

No entanto, fazer
aflorar as emoções é apenas uma das experiências que o cinema pode nos
propiciar. Mais do que assistir a um filme e ser afetado pela narrativa, pelos
personagens ou pela cenografia, é possível ir algumas camadas mais fundo,
compreendendo como a obra é construída, de modo a nos causar tantos efeitos.

Olhar o cinema a partir
desta perspectiva é a proposta que percorre dois livros do professor e
pesquisador norte-americano David Bordwell, lançados pela editora da Unicamp:
“Sobre a história do estilo cinematográfico” e “A arte do cinema – Uma
introdução” (coedição Edusp), este escrito com Kristin Thompsom.

Professor de estudos
fílmicos na Universidade de Wisconsin-Madison, Bordwell é considerado um dos
principais teóricos e historiadores do cinema na atualidade. “Dentro dos estudos
de cinema, talvez ele seja a principal figura no campo anglo-saxão”, demarca
Fernão Pessoa Ramos, professor titular do Departamento de Cinema do Instituto de
Artes da Unicamp, que assina as apresentações das duas obras. “Saindo deste
campo, na França há diversos outros estudiosos, mas Bordwell é uma figura de
bastante destaque”.

Embora seja autor de
várias obras-chave para a análise e a compreensão da narrativa fílmica, Bordwell
tinha apenas um livro lançado no Brasil antes dessas duas publicações, “Figuras
traçadas na luz – A encenação no cinema”. “Não tinha mais nada, então realmente
era um buraco”, enfatiza Ramos.



Uma educação do olhar

A singularidade da obra
de Bordwell é, justamente, que ele nos ensina a ver um filme, usando como
matéria-prima a imagem cinematográfica, ou seja, o filme tal como ele é
projetado na tela, a imagem de cena. Difere, então, de boa parte dos autores que
estudam o cinema e utilizam como suporte de suas análises as fotografias de
cena, produzidas nos estúdios durante a filmagem para divulgação e outros fins –
e não os filmes tal como os espectadores o veem. 

Como se baseia em
fotogramas, ao analisar os filmes, Bordwell  nos oferece uma série de
ferramentas para ver  os filmes, apreendendo de que maneira as técnicas e os
elementos característicos do cinema – a fotografia, o enquadramento, a
cenografia, a montagem, o roteiro, a mise-en-scène, o som e a música – se
entrelaçam, dando origem à arte cinematográfica. 

“Isso é importante, pois
sem essas ferramentas, olhamos, mas não vemos. Ficamos na parte mais explícita,
que é a de conteúdo, que é importante, mas não é tudo”, explica Ramos. Ou seja,
as pessoas tendem a opinar e a se posicionar criticamente sobre o filme, o que
não envolve, necessariamente, uma compreensão dos aspectos que o constituem
enquanto arte.  “Por exemplo, muitas vezes, as pessoas dizem que gostam de
determinado filme, porque apresenta uma visão de mundo parecida com a dela, mas
a arte cinematográfica vai além disso”.

Nesse sentido, a obra de
Bordwell  pode ser comparada às de vários estudiosos das artes plásticas que,
 por meio de análises de obras específicas, nos fornecem elementos para
identificar períodos, movimentos ou artistas. “Seu objetivo não é fazer uma
crítica do filme, mas fazer uma análise audiovisual”, aprofunda Ramos.  Assim
como você olha para um quadro e diz “isso é Maneirismo”, “isso é Barroco”, “olha
essa perspectiva do Renascimento”, “essa expressão é Rembrandt”, “isso é
Picasso, é Cubismo”, a obra de Bordwell possui esse mesmo horizonte em relação
ao cinema.



Lógica geral

Como Bordwell argumenta
em “A arte do cinema: uma introdução”, a distinção entre cinema de arte e cinema
de entretenimento não é útil para a compreensão do cinema, pois muitos recursos
artísticos foram descobertos em produções destinadas a divertir o público.
Certos recursos permaneceram ao longo do tempo, outros podem se modificar, sob a
influência da tecnologia, por exemplo.

“O cinema é arte porque
oferece aos cineastas meios para fornecer experiências aos telespectadores, e
essas experiências podem ser valiosas independentemente de seu pedigree”,
defende o norte-americano. “Filmes para plateias grandes ou pequenas pertencem a
essa arte muito abrangente a que chamamos de cinema”.

Desse modo, colocam-se
questões como: Quais são os princípios que compõem um filme? Como as várias
partes se relacionam entre si para criar um todo? Partindo do pressuposto que um
filme não é uma compilação aleatória de elementos, Bordwell defende que há um
padrão, uma lógica geral que controla as relações entre as partes. É esta lógica
geral que ele denomina forma, a chave da experiência fílmica, do vínculo que se
estabelece entre o espectador e o que se desenrola à sua frente.

O conceito de forma não
se restringe ao cinema – pode ser aplicado a outras artes: literatura, música
etc. – e tem importância central no engajamento dos sentidos, do sentimento e da
mente do ser humano num processo. É por meio da forma que um filme captura nossa
imaginação ou que nos envolvemos num romance. Muitas vezes, os elementos que
compõem uma forma se tornam um padrão – de um diretor, de uma escola
cinematográfica ou mesmo em filmes de autores, gêneros e épocas distintas.

“Todos os filmes
emprestam ideias e estratégias narrativas de outros filmes e outras formas de
arte. Muito do que acontece nos filmes é ditado por regras tradicionais,
normalmente chamadas de convenções”, afirma Bordwell. Desse modo, é comum que
padrões que vemos num filme nos remetam a outros.

Na comédia satírica “A
Roda da Fortuna”, dos irmãos Cohen, a perspectiva mostrada em duas cenas se vale
do exagero com a intenção de criar humor: na cena em que o chefe, Headsucker,
paira sobre a rua numa composição íngreme e centrada e em outra cena que mostra
o arranjo impessoal das mesas de trabalho na empresa Headsucker.

Outra linha de análise
de Bordwell é se deter sobre os diversos aspectos que compõem e dão
materialidade a um filme. Por exemplo, quais são os instrumentos usados pelos
diretores para guiar a atenção do espectador?

Uma delas, que
sobreviveu ao tempo e às mudanças que o cinema sofreu ao longo de sua existência
é o contraste.  Na maioria dos filmes em preto e branco, roupas claras ou rostos
bem iluminados se destacam, enquanto áreas mais escuras tendem a ser ofuscadas,
como no filme “A Mãe”, de  V. I. Pudovkin.

O mesmo princípio
funciona para filmes em cor, ao se usar um figurino iluminado mostrado em um
cenário mais apagado.



O estilo cinematográfico

Para Bordwell, a
experiência fílmica, ou seja, a maneira como somos afetados pelo filme depende
do tecido constituído pelas imagens em movimento e pelo som que as acompanha. “O
público consegue acesso à história ou ao tema por meio desse tecido de materiais
sensoriais”, afirma o autor no livro “Sobre a história do estilo
cinematográfico”. 

Nesse sentido, para ele,
estudar cinema é estudar as técnicas e as maneiras como elas interagem, criando
o sistema formal do filme. E, na visão de Bordwell, o sistema formal do filme é
o estilo, o qual pode ser individual ou grupal – ou seja, podemos falar no
estilo de um autor ou de um grupo (Expressionismo Alemão, Nouvelle Vague
francesa, os estúdios de Hollywood, por exemplo) ou de um gênero (musical,
western, dentre outros). 

O estilo pode ser
definido, então, como as escolhas técnicas características e recorrentes em um
corpo de obras. Ou ainda como “o uso sistemático e significativo de técnicas de
mídia em um filme”. Essas técnicas se classificam em domínios amplos:
mise-en-scène (encenação, iluminação, representação e ambientação),
enquadramento, foco, controle de valores cromáticos, além de aspectos
relacionados à edição e ao som.

Assim, quando se fala no
estilo de Hitchcock, este não se limita à maneira como ele trata os diálogos com
suspense, mas diz respeito também à encenação, a qual abrange diversos aspectos
– desde a direção de atores, à iluminação e ao som. Em dois clássicos do
diretor, “Festim Diabólico” e “Janela Indiscreta”, Hitchcock limita as ações a
um espaço específico: um apartamento.

Tomando este ponto de
partida, Bordwell adota um rumo diferente do de boa parte dos estudos sobre a
história estética do cinema, os quais normalmente a distinguem da história da
tecnologia do cinema, da história da indústria cinematográfica ou mesmo dos
estudos das relações entre o cinema e a sociedade e a cultura. “Não é fácil
delimitar com nitidez esses tipos de história, e qualquer projeto de pesquisa
específico irá misturá-los com frequência”, afirma o autor em “Sobre a história
do estilo cinematográfico”.

Assim, seu enfoque
reside nos padrões de continuidade e nas mudanças estilísticas, buscando
demarcar essas dimensões na historiografia sobre o estilo cinematográfico,
conforme esclarece Fernão Pessoa Ramos: “Este é um livro que tem um recorte de
reflexão. Bordwell faz um panorama das principais obras de referência sobre
história do cinema”. A partir deste panorama, e ele estabelece três períodos – o
período clássico, a ruptura do Andre Bazin e a visão moderna.



Análises privilegiam contexto histórico


As formas e técnicas definem o cinema como arte, na visão de Bordwell, mas as
formas e técnicas do cinema não existem num espaço atemporal. Ou seja, nem todas
as técnicas e possibilidades estão acessíveis a qualquer cineasta – por isso,
Grifith não poderia fazer filmes como Godard, e Godard não poderia fazer filmes
como Grifith. 

A partir deste ponto de
partida, Bordwell dedica um capítulo de “A arte do cinema – Uma introdução” para
mostrar os desenvolvimentos em diferentes contextos históricos. 

Algumas de suas análises
são destacadas a seguir:



O desenvolvimento clássico de Hollywood

D. W. Grifith, que
iniciou sua carreira em 1908, certamente não inventou todos os dispositivos aos
quais é creditado, mas ele de fato deu a muitas técnicas uma forte motivação
narrativa. Por exemplo, poucos cineastas utilizavam resgates simples de último
minuto com montagem alternada entre os salvadores e as vítimas, mas Grifith
desenvolveu e popularizou essa técnica.

Nos anos 1920, o sistema
de continuidade se tornou um estilo padrão que os diretores nos estúdios de
Hollywood utilizavam quase automaticamente para criar relações coerentes de
tempo e espaço nas narrativas. Um raccord de ação poderia proporcionar um corte
para uma visão mais próxima de uma cena, como se vê em “Os três Mosqueteiros”,
de Fred Niblo, de 1921.



Expressionismo alemão

O primeiro filme do
movimento, “O gabinete do Dr. Caligari”, é também um dos exemplos mais típicos.
Um dos designers, Warm, declarou que “a imagem do filme deve se tornar arte
gráfica”. “Dr. Caligari”, com suas estilizações extremas era de fato como uma
pintura ou xilogravura expressionista em movimento. As formas são distorcidas e
exageradas de maneira não realista com finalidades expressivas.



A nouvelle vague

A qualidade mais
revolucionária dos filmes da Nouvelle Vague era sua aparência casual. Os
diretores admiravam os neorrealistas, especialmente Rossellini, e faziam sua mise-en-scène e
locações externas, em e ao redor de Paris. A cinematografia também mudou. A
câmera da Nouvelle Vague se move constantemente, fazendo panorâmicas,
acompanhando os personagens ou traçando relações de lugar. (…) Talvez a
característica mais importante dos filmes da Nouvelle Vague seja o fato de que
eles geralmente terminam de maneira ambígua. Em “Os Incompreendidos”, Antoine
chega ao mar na última cena, mas, à medida que ele avança, Truffaut fecha o zoom
e congela o quadro, terminando o filme com a dúvida sobre o que acontecerá com
Antoine.



Hollywood após a chegada do som

 

Foi “Cidadão Kane” que
em 1941 chamou fortemente a atenção tanto de espectadores quanto de cineastas
para o foco em profundidade. As composições de Orson Welles colocavam as figuras
do espaço frontal da cena bem próximas da câmera e as figuras do espaço traseiro
longe no plano do fundo.



SERVIÇO



Título:
 Sobre
a história do estilo cinematográfico



Autor:
 David
Bordwell



Tradução:
 Luís
Carlos Borges



Editora da Unicamp



Área de interesse:
 Cinema



Preço:
 R$
120,00


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