O Estado de
São Paulo, Domingo, 07 de Fevereiro de
2010 | Versão Impressa
A
escrita como única
razão para viver
Em seu ofício,
Tomás Eloy Martínez, que morreu no dia 31 de
janeiro, aos 75 anos, não fazia
distinção entre ficção e
jornalismo
Eric
Nepomuceno
Na
Argentina, entre 1972 e o golpe militar de 1976, um jornal
brilhou com luz própria e especial. Chamava-se La
Opinión, e era um tabloide
confessadamente inspirado no Le Monde. Não tinha
fotografias, os textos –
primorosos – ocupavam 70% de seu espaço, e as
ilustrações eram desenhos e
charges da mais alta qualidade. Custava mais caro que os outros, vendia
bem
menos. A intenção de seu dono, Jacobo Timerman,
era exatamente esta: fazer um
jornal para um público altamente qualificado, leitura
obrigatória dos mais
politizados em um país politizado. Não queria
competir em vendas, mas em
qualidade e influência. Para isso reuniu o que havia de mais
luminoso no
jornalismo do país. E por isso fez do seu jornal um
ícone mítico da melhor
imprensa argentina.
Eu
sabia da importância do La Opinión quando, na
velocidade dos
meus 24 anos, entrei no número 585 da Reconquista, na tarde
de um dia de abril
de 1973. Fui procurar o diretor do suplemento cultural mais influente
do seu
tempo (que, aliás, tinha sido criado por ele). Um tipo
afável, gentil, chamado
Tomás Eloy Martínez. Um jornalista com uma
trajetória fulgurante, responsável
por trabalhos marcantes, como a longa entrevista feita em 1966 com Juan
Domingo
Perón em seu exílio madrilenho (e que seria a
base do livro O Romance de
Perón), ou a reportagem que revelou um desconhecido chamado
Gabriel García
Márquez, que ia lançar um livro chamado Cem Anos
de Solidão.
Generoso,
Tomás Eloy me encomendou um texto e virei colaborador
permanente do suplemento. Foi um dos responsáveis pela
guinada radical da minha
vida, e é assim que me lembrarei dele para sempre.
Convivemos até 1975, quando,
ameaçado pela Triple A (a nefasta Aliança
Anticomunista Argentina), ele partiu
para o exílio. À distância, nossos
contatos foram rareando. Só tornamos a nos
encontrar em 1995, no México. Embora
continuássemos distantes, ele nos Estados
Unidos, eu no Brasil, retomamos contato. Nos vimos pela
última vez em Buenos
Aires, em 2008, na apresentação de um livro de
nosso amigo em comum, o
nicaraguense Sérgio Ramírez.
O
que mais me marcou em Tomás Eloy – além da
memória de sua
generosidade – foi como, para ele, jornalismo e literatura ocuparam o
mesmo e
único espaço, sem fissuras ou
divisões. Seus dois grandes livros, Santa Evita e
O Romance de Perón, são romances em que o autor
usa todos os procedimentos do
jornalismo. Suas reportagens – e ele foi um repórter
excepcional – foram
construídas com todos os procedimentos da narrativa
literária. As entrevistas
reunidas em Lugar Común la Muerte estão entre o
que de melhor o jornalismo
argentino produziu nos últimos cem anos. Tudo isso como
decorrência de uma
sensibilidade aguçada e da certeza de que literatura e
jornalismo são uma coisa
só, que os mecanismos narrativos da literatura de
ficção fazem da reportagem
uma peça literária. Poucos elevaram, como
Tomás Eloy, o jornalismo a essa
estatura.
Lembro
dele me dizendo, naqueles idos de 1973, que o jornalismo
só se justifica quando é um ato de liberdade.
Demonstrou essa fé em tudo que
escreveu. Anos mais tarde, quando nos reencontramos, ele me disse que
escrever
continuava sendo sua única razão para estar vivo.
Disse que deixava a alma em
cada palavra. E eu acredito que assim fez e assim foi, mesmo quando
discordei
irremediavelmente de seus artigos políticos e da sua
visão do mundo.
Amigos
contam que nos últimos meses, lutando contra um
câncer
feroz que se instalou no que, numa ironia perversa, ele tinha de mais
brilhante
– o cérebro -, Tomás Eloy foi perdendo os
movimentos. Uma paralisia muscular
contínua primeiro congelou um de seus braços,
depois suas pernas. Mal conseguia
usar a mão direita. Ditava seus artigos. Falava com imensa
dificuldade. E nos
últimos meses, já não conseguia
sorrir. Não imagino Tomás Eloy sem sorrir seu
sorriso generoso. E me consola saber que escreveu seus textos, sempre
brilhantes, até os últimos de seus dias. Afinal,
essa era sua única razão de
estar vivo.
Eric
Nepomuceno, escritor e tradutor, é autor, entre outros, de
Antologia Pessoal (Record)
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