Folha de São Paulo, SÁBADO, 8 DE DEZEMBRO DE 2012
ANÁLISE
As delicadas relações entre a arquitetura e o poder
SILVANA RUBINOESPECIAL PARA A FOLHA
Quando Lula foi eleito pela primeira vez, um
site de arquitetura publicou um desenho de 1978 de Oscar Niemeyer: a praça dos
Três Poderes em dia de discurso.
No canto direito, acima da assinatura, lê-se:
"Um dia o povo ouvirá o que deseja e os direitos humanos serão conquistas
irreversíveis".
O artigo notava a afinidade entre o desenho e as
imagens da posse, com os espaços de Brasília lotados. Revelava o óbvio: Niemeyer
projetou seus edifícios para uma capital na qual presidentes assumissem em praça
cheia.
Nos anos 1980-90, no apogeu da retórica
pós-moderna e em um país em redemocratização, tornou-se constante a crítica rasa
ao arquiteto. Os argumentos iam da suposta falta de espaço verde à "revelação"
de que ele sempre tivera relações de proximidade com o Estado, inclusive com
governantes duvidosos.
A parceria com a encomenda estatal marcou sua
carreira, que deslanchou a partir de 1936, quando integrou a equipe de Lucio
Costa para o projeto do Ministério da Educação e Saúde Pública.
O processo que legou este edifício é conhecido:
o primeiro colocado no concurso para a sede do novo ministério foi Archimedes
Memória, mas o ministro Gustavo Capanema, em uma intrincada operação que incluiu
o aval de Getulio Vargas e um convite para Le Corbusier, deu a Costa a chance de
fazer o primeiro edifício público moderno em altura que se conhece.
Enquanto a sede do Mesp era construída -foi
inaugurada em 1945-, outro concurso se anunciava, desta feita para o pavilhão
brasileiro da Feira Universal de Nova York.
Coordenado pelo Ministério do Trabalho, que
patrocinou a participação brasileira na mostra, o concurso declarou em 1938 que
o melhor projeto era de Lucio Costa -que, surpreendentemente, abdicou de sua
ideia em favor daquelas de Niemeyer.
Niemeyer ainda não era comunista declarado, e
Capanema nunca o foi, mas seu ministério agregou um grupo de notáveis que marcou
indelevelmente a política cultural brasileira, muitos deles com simpatias
esquerdistas.
Niemeyer, como Portinari, se filiou ao Partido
Comunista em 1945, mesmo ano em que Carlos Drummond de Andrade aceitou o convite
do secretário-geral do partido, Luís Carlos Prestes, para editar o jornal "A
Tribuna".
Isso custou ao arquiteto a negativa do visto
americano, mas não da autorização excepcional para viver em Nova York durante a
construção da sede da ONU, pois ele era parte da equipe internacional que a
projetara.
Pouco antes da filiação de Niemeyer ao PC, o
médico Juscelino Kubitschek de Oliveira foi nomeado prefeito de Belo Horizonte.
Fazedor de obras urbanas, convidou o já consagrado Oscar Niemeyer para projetar
o conjunto da Pampulha.
Eleito governador em 1950, JK levou adiante a
parceria com Niemeyer, que assim fez vários projetos, como um hotel em
Diamantina, cidade natal do governador.
CIDADE CENÁRIO
Daí à parceria consolidada em Brasília foi um
passo. O concurso para a nova capital foi lançado em 1956, e houve quem
sugerisse um convite a Le Corbusier -talvez uma repetição do gesto de Jawaharlal
Nehru, que pedira ao franco-suíço um projeto para a nova capital do Punjab.
Proposta recusada, assim como uma encomenda a
Niemeyer, que não era urbanista. Niemeyer integrou o júri, e o resto é de
domínio público: o último trabalho a ser inscrito foi o vencedor, o singelo
plano de Lucio Costa.
Não faltou quem visse na premiação carta
marcada. Afinal, uma decisão prévia ditava que os edifícios seriam projetados
por Niemeyer.
O arquiteto e historiador italiano Leonardo
Benevolo afirmou ser o projeto de Costa o mais adequado para servir de moldura
aos edifícios de Niemeyer, e mais duras foram as palavras de seu colega e
compatriota Bruno Zevi, que considerou as formas de Niemeyer arbitrárias e
gratuitas, e a cidade algo kafkiana, sem vitalidade.
Em 1964, após se demitir do cargo de professor
da Universidade de Brasília, Niemeyer mudou-se para Paris e, em 1968, passou uma
longa temporada na Argélia. Ser comunista nem sempre mostrou-se um pecado: a
sede do Partido Comunista Francês, projeto de 1965, e a escola de arquitetura de
Argel, de 1968, não me deixam mentir.
De volta, projetou para políticos de estirpe
diversa, como Orestes Quércia e Leonel Brizola. E seguiu comunista. Os que
estranham tal contradição não se dão conta de que "ser comunista" foi se
tornando uma tomada de posição e um atributo identitário, nem sempre
confortável.
Relações entre Estados, democráticos ou não, e
manifestações culturais são sempre delicadas, difíceis de se estabelecer.
Frequentemente, são assinaladas em tom de acusação ou então silenciadas, como
que para proteger os artistas da condição inescapável de estar no mundo.
Com seu currículo de encomendas para
governantes, Niemeyer acabou ganhando a pecha de arquiteto oficial do Brasil, e
sua arquitetura, a de face material do Estado.
Para um arquiteto profícuo e dedicado a grandes
obras, qual seria a opção? Bancos, centro comerciais, clubes e outras
realizações marcadas por outro constrangimento: o mercado, não necessariamente,
para não dizer quase nunca, democrático.
Parte de sua obra foi tombada ou está em
processo de tombamento. A igreja da Pampulha foi tombada em 1947, e o Catetinho,
em 1959. Em 2007, o ministro Gilberto Gil pediu ao arquiteto uma listagem do que
seria mais significativo. Círculo virtuoso e vicioso que se fecha com a promessa
utópica de modernidade ganhando a chancela da tradição.
SILVANA RUBINO,
53, é doutora em ciências sociais e professora do departamento de história da
Unicamp
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