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 Jornal
da Unicamp, Campinas, 09 de junho de 2013 a 15 de junho de 2013 – ANO 2013
– Nº 564

As “riquezas intangíveis” dos Mẽbêngôkre


Livro
traça panorama da cultura e dos hábitos de índios que são afetados pela
construção de Belo Monte



LUIZ SUGIMOTO

Ao mesmo tempo poético e literal, Riquezas
intangíveis de pessoas partíveis é o título escolhido pela professora Vanessa
Rosemary Lea para seu livro contendo uma extensa pesquisa sobre os índios
Mẽbêngôkre (Kayapó) do Brasil central. É a primeira etnografia publicada sobre a
subdivisão Mẽtyktire, abordando a propriedade intangível (e tangível) e os
primórdios da sua transformação diante da disseminação de bens industrializados.
Além disso, a obra lançada pela Editora da USP, com o apoio da Fapesp, traça um
panorama de propriedade entre um povo ameríndio anterior ao envolvimento do
Estado nos processos de patrimonialização de bens culturais indígenas materiais
e imateriais.

“Por causa de uma pintura corporal geométrica e
deslumbrante, os Mẽbêngôkre provavelmente estão entre os povos indígenas mais
fotografados do planeta”, observa Vanessa Lea, docente do Departamento de
Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.
“Mas se encantar com seu belo visual é uma coisa; outra coisa é entender seus
princípios filosóficos, a cosmologia, a mitologia, a terminologia de parentesco
e a língua. No momento em que esse povo é atingido pela construção da
hidrelétrica de Belo Monte, a sociedade deve se conscientizar de que índio não é
apenas alguém com cocar de penas e arco e flecha. Por trás dele existe todo um
pensamento sofisticado.”

Mestre em estudos latino-americanos pela Universidade
de Oxford com uma dissertação bibliográfica sobre os índios Mapuche do Chile,
Vanessa Lea ainda vivia na Inglaterra, em 1971, quando leu sobre a resistência
dos Mẽbêngôkre à construção da BR-080, que amputou a porção setentrional do
Parque Indígena do Xingu, onde moravam. Ela pôde visitar a reserva depois de
conseguir bolsa do governo brasileiro para vir ao país onde acabou fazendo seu
doutorado, no Museu Nacional (UFRJ). “Estava atraída pelas atitudes orgulhosas e
pelas descrições do agito da vida cotidiana em uma aldeia Mẽbêngôkre.”

A autora do livro iniciou a pesquisa de campo em 1978
e, até defender a tese de doutorado em 1986, quando já era professora da
Unicamp, calcula ter convivido por um ano com os Mẽbêngôkre, entre idas e vindas
às aldeias. Ela fez viagens posteriores, sendo que as últimas para este livro
foram em 2005 e 2009 – outra mais recente, em 2011, será tratada em publicações
futuras. “A maior parte do trabalho se deu quando ainda estava na casa dos 20
anos, antes de ter minha filha, que agora está com 24. Somando a estada mais
longa durante o doutorado e as viagens mais curtas, foram dois anos de convívio
com os Mẽbêngôkre, observando a enorme complexidade do seu modo de vida.”

Vanessa
Lea recorre ao termo “riquezas intangíveis” para fazer frente ao senso comum de
que os índios da Amazônia, de uma maneira geral, não possuem riquezas, ao passo
que na África vários povos ostentam seus territórios e rebanhos. “Os Mẽbêngôkre,
de língua Jê, eram vistos como seminômades, que na seca saíam à procura de mel e
produtos da floresta, retornando à aldeia no período de chuva. Na década de
1940, pensou-se que eles tinham sido expulsos da floresta por outros povos
indígenas, mas viu-se depois que se tratava de um movimento planejado, visando
aproveitar tanto os recursos da floresta como do cerrado. Eles transitam entre
esses dois ambientes.”

Segundo
a antropóloga, riquezas intangíveis são as prerrogativas inerentes ao que chama
de “matricasa” ou “Casa” com maiúscula. “As matricasas lembram um pouco os clãs.
Elas são localizadas de acordo com o eixo leste-oeste, seguindo a trajetória do
sol, e transmitidas da mãe para as filhas e destas para as filhas, numa sucessão
que se estica até o tempo mítico. As prerrogativas, como nomes pessoais e
adornos usados em cerimônias, são todas transmitidas de geração para geração, no
interior da matricasa. E são os homens que devem mudar para a casa da esposa e
da sogra, ao contrário do que vemos em outros grupos indígenas.”

As pessoas são “partíveis”, acrescenta a
pesquisadora, porque seus nomes e prerrogativas são transmitidos a seus
descendentes. “Consequentemente, enquanto a carne dos defuntos se desfaz no
túmulo, seus nomes e demais riquezas circulam novamente entre seus herdeiros.
Inexiste um culto dos ancestrais porque todos os seus componentes são
desmanchados para serem reaproveitados. Iniciei a pesquisa fazendo um censo da
aldeia e, como um mẽbêngôkre nunca deve dizer seu próprio nome, é preciso
perguntar como ele se chama a um terceiro. Havia quem tivesse quase trinta nomes
– os bonitos, os comuns e os apelidos. É enormemente complexo, pois todos
possuem significado. É um significado em metamorfose, devido à polissemia.”


TRANSMISSÃO MATRILINEAR

Os Mẽbêngôkre também são conhecidos como Kayapó. Na
abertura do livro, Vanessa Lea explica a relação deste povo com outros da mesma
família linguística. “Há quem pense que todos os índios falam a mesma língua, um
grau de ignorância que me choca, visto que existem centenas de línguas
indígenas. Também procuro explicar a noção lévi-straussiana de “sociedade de
casas”, embora Lévi-Strauss tenha pensado este conceito para sociedades
cognáticas, como a nossa, onde a família do pai e a família da mãe têm o mesmo
peso. No caso dos Mẽbêngôkre, tudo é transmitido de forma matrilinear, uterina.”

A docente do IFCH considera a questão de gênero
interessante, devido à visão que temos das mulheres indígenas submissas e
tímidas, que se recusam a conversar com os brancos que vão à aldeia. “Uma coisa
é a divisão sexual do trabalho e outra é a importância simbólica do feminino e
do masculino. Na literatura clássica, as aldeias eram descritas com as mulheres
ocupando a periferia, quando na verdade tudo que acontece no centro da aldeia é
determinada pelas matricasas; eles segmentam a propriedade, como se a aldeia
fosse uma pizza: cada fatia com seu legado de nomes, prerrogativas, adornos e o
direito de criar exclusivamente determinados animais de estimação, que
representam uma espécie de totens vivos.”

Entretanto, observando por fora a aldeia circular, as
casas parecem todas iguais e não se percebe tais nuances, afirma a autora do
livro. “Mas um índio que mora na casa da esposa e que tenha como vizinho um
irmão usando o mesmo cocar, vai dizer que os dois são da mesma matricasa. Daí, a
Casa com maiúscula, já que a noção não é de habitação. Ela envolve uma ou
diversas habitações, que podem ser replicadas em outras aldeias, conforme sua
genealogia. A Casa é a instituição mais importante dessa sociedade, o que mostra
não ser possível equacionar as mulheres com o feminino; é preciso separar os
dois aspectos, como se faz nos estudos de gênero.”


500 PÁGINAS DE MINÚCIAS

Riquezas intangíveis de pessoas partíveis possui
quase 500 páginas, sendo que Vanessa Lea utiliza as 100 primeiras para
justificar a escolha do grupo e contar como foi feita a pesquisa de campo, a
história dos Mẽbêngôkre, sua situação territorial, suas subdivisões e os dados
censitários. A maior parte do livro, entretanto, é dedicada à descrição das
aldeias e da organização social; ao cotidiano envolvendo questões de gênero,
artesanato, pintura corporal, distribuição de alimentos, sexualidade, relações
familiares, mortos e mitos; à terminologia de parentesco e ao uso e transmissão
dos nomes pessoais, com suas implicações sociais; e ao legado material e
imaterial das matricasas, entre tantas outras minúcias.

“É um sistema fascinante, digno de Borges. Existe,
por exemplo, a “dona do ímpar”: se o caçador voltar com três passarinhos, vai
ficar com dois e entregar o terceiro para ela”, diz a autora. “Os animais
classificados como bonitos são aqueles cuja carne pode ser consumida por todos
(homens, mulheres e crianças), como da anta – cada casa é dona de uma porção
dessa carne bonita. Todos os enfeites, como um colar de caramujos, têm pingentes
de algodão de cores diferenciadas, identificando a casa dos donos. As categorias
de parentesco são atribuídas como categorias de sociabilidade. Eu sou “filha” de
Raoni, um líder indígena icônico, conhecido internacionalmente por sua oposição
à hidrelétrica de Belo Monte. O visual de Raoni é exótico, por causa do grande
batoque no lábio inferior, mas para quem se interessa em ver por trás disso, o
livro vai ser interessante.”

Vanessa Lea espera que sua obra contribua para que a
sociedade reconheça a complexidade da sociedade dos índios, desfazendo a ideia
de que eles estão se tornando dependentes dos benefícios do governo, como se
fossem pobres coitados. Quanto ao risco que os bens industrializados trazem para
essa sociedade, a pesquisadora responde de pronto: “Eu não usava computador até
acabar a minha tese, mas continuo a mesma pessoa. Existe esse preconceito de que
índio com calça jeans ou celular não é mais índio. Obviamente que é.
Simplesmente, eles não estão numa redoma, querem compartilhar os benefícios da
nossa sociedade e são fascinados por tecnologia: adoram andar com filmadoras
para registrar as suas cerimônias. Isso não interfere na sua identidade
indígena”.


Título:
 Riquezas
intangíveis de pessoas partíveis


Autora
: Vanessa Rosemary Lea


Editora
: Edusp (apoio Fapesp)


Páginas:
 495


Preço:
 R$
80,00


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