PORVIR – 02/12/2020 – SÃO PAULO, SP
As tendências que influenciam a geração superconectada e o conteúdo infantojuvenil
POR PRISCILA CRISPI, DO COMKIDS
Crianças têm contato com as teles cada vez mais cedo, seja na hora do cuidado, do entretenimento ou de educar. Conheça projetos escolares brasileiros que propõem um uso reflexivo e autoral
Quando lançou seu livro The ABC of XYZ: Understanding the Global Generations, em 2009, o sociólogo australiano Mark McCrindle cunhou o termo “geração alpha” para designar as crianças que iriam nascer nos 15 anos seguintes. A ideia era recomeçar a contagem, dessa vez com o alfabeto grego, para designar, de fato, o começo de algo novo. Um milênio havia chegado ao fim, assim como a era da incorporação do digital na vida dos seres humanos. A partir dali, os bebês nasceriam em um mundo não só com acesso à internet, mas onde pessoas estão conectadas a dispositivos móveis todo o tempo e onde o digital organiza o mercado, as políticas e as relações.
Quando todos os alpha já tiverem nascido, em 2025, eles serão em torno de 2 bilhões – a maior geração na história da humanidade. Segundo McCrindle, eles são a geração mais rica de todos os tempos – ainda que dentro de um contexto de grandes desigualdades sociais, a mais experiente tecnologicamente e irão desfrutar de uma vida útil mais longa do que qualquer geração anterior.
“Essa nova geração faz parte de um experimento global não intencional em que as telas são colocadas na frente deles desde a mais tenra idade, exercendo papéis de cuidado, entretenimento e educação. O encurtamento da capacidade de atenção, a gamificação da educação, a maior alfabetização digital e uma formação social prejudicada são questões que afetam quase todos nós, mas transformam mais fortemente aqueles que vivem seus anos de formação”, explica o estudioso.
Uma pesquisa realizada pelo Departamento de Inteligência em Pesquisa de Mercado do canal Gloob agrupou uma série de influências que fazem a infância de hoje ser tão única – o estudo sugere que o mundo será recriado pelos Alpha e, depois, conquistado pelas gerações posteriores. Confira mais no quadro abaixo:
Mídias e desigualdade
Segundo a pesquisa Papagaio Pipa 2019, realizada pelo instituto de inteligência de mercado brasileiro MultiFocus, os Alphas brasileiros costumam ficar no celular entre duas e três horas por dia e o mesmo tempo é dedicado à TV, o que pode significar até seis horas de telas diárias. Fazendo um recorte socioeconômico, mais de 68% das crianças brasileiras entre quatro e seis anos que são de famílias de baixa renda estão na internet. Na classe C esse percentual sobe para 81% e nas classes A e B é de 90%.
Com o fechamento das escolas em 2020 e a dependência do ensino remoto, ficou evidente de que forma esse acesso ou não-acesso à internet reforça a desigualdade social no Brasil e influencia na garantia de outros direitos de crianças e adolescentes, como a educação. Segundo o Chefe de Educação da UNICEF Brasil, Ítalo Dutra, o total afastamento da cultura digital é problemático porque implica na construção do nosso futuro enquanto sociedade, que não pode mais se dissociar do entendimento e uso das tecnologias. “É absolutamente salutar que as escolas, independente do contexto da pandemia, tragam no seu planejamento a inclusão das diferentes infâncias no mundo midiático e digital, para que elas possam aprender com isso em um ambiente seguro e ter igualdade de oportunidades”, afirma.
Para além da educação formal, que passou a ser online, a abrangência do repertório cultural das crianças brasileiras também varia de acordo com o seu acesso às mídias. “Os aparelhos de televisão, muito antes da internet, estiveram no centro da vida doméstica, como meio de entretenimento e fonte de informação permanente para toda família, atualizando diariamente o mundo conhecido por cada telespectador. Nesse sentido, considero a TV, assim como mais contemporaneamente a internet, um veículo indiscutível de expansão dos espaços de aprendizagem que a sociedade moderna oferece”, defende Zelia Cavalcanti, educadora e consultora pedagógica em produções como o Castelo Rá-Tim-Bum, clássico da TV educativa brasileira.
Apesar de 68% das crianças de classe DE terem acesso à internet, “estar na internet” também é relativo para elas. 100% não têm disponível um computador com internet em casa
Mas se o acesso ao aparelho de TV no Brasil é quase universal, isso não significa que a qualidade do conteúdo distribuído é a mesma – canais infantis, por exemplo, estão restritos às TVs por assinatura. E apesar de 68% das crianças de classe DE terem acesso à internet, “estar na internet” também é relativo para elas. 100% não têm disponível um computador com internet em casa; 52% têm acesso a um celular, porém em 35% dos casos ele é de uso compartilhado e 89% desses celulares são pré-pagos, ou seja, o consumo de conteúdos longos ou mais pesados depende muito do acesso a uma boa rede wi-fi.
Nesse cenário, redes como o WhatsApp e o YouTube comandam – 75% das crianças declaram assistir vídeos na plataforma sempre, o que demanda mediação imprescindível dos cuidadores. Considerando todas as classes sociais, 49% das crianças durante sua primeira infância acessam os conteúdos na internet acompanhados dos pais, mas 27% delas navegam normalmente sozinhas. Esse índice sobe para 39% na classe DE, o que significa que essas crianças estão muito mais vulneráveis a conteúdos não apropriados para sua idade.
Boas práticas
A presença massiva das mídias na vida das crianças de hoje e seu papel na superação de desigualdades sociais apontam novamente para a necessidade de se discutir a qualidade dos conteúdos oferecidos. De que forma a mídia feita para crianças pode empoderar seu público, gerar melhorias sociais e atuar em conjunto com a escola na promoção da aprendizagem? O Brasil coleciona algumas boas práticas nesse sentido.
Zelia Cavalcanti conta que, com a produção do Castelo Rá-Tim-Bum, a ideia da TV Cultura era colaborar, como meio de comunicação de massa, para a melhoria das condições de aprendizagem das crianças que, por razões diversas, chegavam ao Ensino Fundamental sem terem frequentado classes de educação infantil. Assim, o programa passou a veicular conteúdos que pudessem diminuir a defasagem de aproveitamento escolar entre crianças de diferentes níveis sociais. “Abria-se um novo espaço educacional no horário da programação infantil, em que crianças podiam se divertir e aprender sobre diversos temas, muitos deles facilmente relacionáveis ao chamado ‘mundo infantil’, outros dos quais frequentemente as crianças pequenas são excluídas, como a arte, a música, a história, as ciências”, explica.
Pioneira no desenvolvimento de conteúdos audiovisuais para suporte à aprendizagem, a Sésamo, organização social sem fins lucrativos americana que produz o tradicional programa de TV Vila Sésamo, atualmente trabalha no Brasil em colaboração com representantes do governo, educadores e organizações da sociedade civil para garantir que o currículo educacional de suas produções esteja alinhado com os objetivos de desenvolvimento e aprendizagem previstos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
“Nosso processo de criação e desenvolvimento de conteúdo está fundamentado na aprendizagem das crianças. A maior parte do nosso conteúdo tem uma intencionalidade educativa muito evidente. Isso não significa que o conteúdo da Sésamo seja didático ou que substitua as experiências de aprendizagem formal, mas sim que estamos somando esforços e sendo coerentes com a jornada pedagógica das crianças brasileiras”, explica Julia Tomchinsky, diretora de educação e impacto social na organização.
A ideia da organização é que, ao assistir a seus conteúdos, a criança possa assumir uma postura ativa que se desdobre em ações práticas além da tela, de forma que as aprendizagens proposta ali sejam transportadas para situações reais vivenciadas pelas crianças e suas famílias. Durante a pandemia do Covid-19, eles realizaram parceria com várias redes públicas de ensino do país para apoiar a aprendizagem remota por meio do uso de seus recursos de aprendizagem. Os materiais, disponibilizados de graça, podem ser acessados por este link.
Independentemente da escola ou não, as crianças têm acesso a conteúdos midiáticos, porque eles fazem parte da vida delas. A questão é o que a escola vai fazer com isso
Mídia e educação
“Independentemente da escola ou não, as crianças têm acesso a conteúdos midiáticos, porque eles fazem parte da vida delas. A questão é o que a escola vai fazer com isso. Eu acho que eles são uma oportunidade – uma excelente oportunidade para iniciar um processo reflexivo”, afirma Valdenise Nogueira, coordenadora pedagógica da Escola Municipal de Educação Infantil e Ensino Fundamental José Albino Pimentel, no interior da Paraíba, que atende principalmente a comunidades quilombolas do Gurupi-Ipiranga.
Antes da pandemia, a escola exibia mensalmente curtas nacionais para as crianças da educação infantil em um cineclube que contava com a curadoria de educadores e dos próprios alunos. Após as sessões, os professores conversavam com as crianças sobre os vídeos exibidos e os conteúdos abordados. “A mídia pode ser um espaço rico para muitas trocas e experiências, para ter acesso a coisas que não conhecemos, para criar vínculos e se aproximar de um outro que até então estava muito distante. Mas esse bom uso depende muito mais do adulto que faz a mediação dos conteúdos do que da criança”, defende Valdenise.
Em função das limitações de acesso à internet pela comunidade, o cineclube teve que ser interrompido com o fechamento da escola, mas a direção diz que a meta para 2021 é tentar disponibilizar os conteúdos online e viabilizar o acesso das famílias para que a atividade aconteça à distância.
O clube faz parte de um projeto mais amplo, desenvolvido pela escola em parceria com a startup social Semente Cinematográfica, que faz uso da tecnologia e da arte no processo de ensino-aprendizagem, desenvolvendo as potencialidades pedagógicas do cinema nas escolas. Além da exibição de vídeos, que visa sensibilizar alunos e professores para a linguagem cinematográfica e ampliar seu repertório, a metodologia envolve também a produção de conteúdos pelas próprias crianças.
“A ideia é introduzir o audiovisual nas práticas educativas como uma espécie de jogo. Esses jogos têm regras e isso faz com que as crianças se engajem em algum tipo de criação ou investigação estética”, explica Felipe Barquete, fundador do Semente Cinematográfica. Os temas, a captação de imagens e outros processos de produção são feitos dentro das oficinas que acontecem em horário escolar. A Escola Experimental de Cinema da José Albino Pimentel resultou em sete filmes e capacitou professores a darem continuidade às atividades de produção audiovisual com os alunos.
“A aprendizagem significativa é o que todo professor busca, um conhecimento que não só contribua para o estudante em seu desenvolvimento individual, mas para a sociedade. Nesse sentido, o audiovisual pode contribuir de várias formas”, defende Felipe. Em sua visão, o cinema e outras mídias permitem o acesso a outras maneiras de ver o mundo, o que contribui diretamente para a construção da cidadania e promoção da diversidade.
Mas, para além da fruição das obras, o cineasta ressalta o poder empoderador das mídias para uma geração que já se entende como produtora de conteúdos e conhecimentos. “Quando a câmera vai para a mão da criança, aí ela se torna uma metodologia ativa. A criança vai buscar no mundo a relação com o conhecimento que ela pode ter adquirido numa aula, no livro didático. Esse movimento de articular o saber da escola com o saber que está no mundo, não só estimula a criatividade, como o protagonismo na aquisição do conhecimento”, explica.
Conteúdo com qualidade
Especialistas concordam que a qualidade do conteúdo e da interação do que se acessa nas telas é tão importante quanto o tempo que se dedica a elas. Segundo o International Central Institute for Youth and Educational Television, organização internacional que estuda a relação da TV com crianças e jovens, um conteúdo de qualidade para crianças na primeira infância deve respeitar as habilidade cognitivas e as preferências dessa faixa etária, o que se expressa na velocidade da narração – que deve ser mais lenta; na estrutura dramatúrgica – que deve ser simples; e nas conexões que faz com as experiências cotidianas – que devem fazer alusão ao mundo conhecido da criança pequena.
Além disso, o conteúdo não pode apresentar tensões que causem danos emocionais ou trazer personagens que têm caráter anti-social ou atitudes destrutivas, antes deve influenciar a construção da identidade das crianças pequenas com o reforço positivo. Por fim, um bom programa, filme ou jogo para a primeira infância inspira a participação, a interação, a atividade motora, a comunicação e a fala.
A pesquisa MídiaQ, criada pela Midiativa – Centro Brasileiro de Mídia para Crianças e Adolescentes, originou uma série de postulados sobre qualidade audiovisual infantil, usados amplamente como parâmetros norteadores para os produtores de conteúdo, mas também como critérios de avaliação para a leitura crítica de qualidade, seja na TV ou na tela do celular e tablet. Conheça os dez princípios da qualidade na programação infantil aqui.
Diante das dificuldades impostas pelo isolamento social e a maior centralidade que as telas assumiram na vida das crianças, saber como selecionar bons conteúdos infantojuvenis se tornou ainda mais essencial para a proteção da infância. O Lunetas, portal de jornalismo sobre as infâncias brasileiras, publicou em agosto deste ano o especial “Infâncias e tecnologias”, que aborda muitas temáticas consonantes às tratadas por essa série de reportagens. Em uma parceria de divulgação, sugerimos a leitura da seguinte matéria, que complementa o recorte trazido por este artigo sobre curadoria de conteúdos: Mediação parental: caminhos para orientar as crianças na internet.