Folha
de São Paulo, TERÇA-FEIRA, 18 DE DEZEMBRO DE 2012

Barbie
também constrói

Lançamento que junta a boneca a
blocos para construir inspira debate sobre descompasso entre brinquedos
e
mudanças sociais

DENISE MOTACOLABORAÇÃO
PARA FOLHA

Um brinquedo que chega ao
mercado americano no Natal vem sendo alardeado
como a grande mudança no nicho. Antes, Barbies eram para
meninas e blocos de
construir, para meninos. Mas, pela primeira vez em 50 anos de Barbie, a
Mattel
associou um kit de construção à boneca
mais perua do globo.

É que os pais andam
mais presentes na vida dos filhos e as meninas estão
sendo estimuladas a usarem brinquedos que desenvolvam desde cedo suas
capacidades matemáticas e científicas.

A linha da Barbie que
constrói seria reflexo da mudança no papel
paterno e
de outras revoluções
sócio-econômicas, no discurso da
indústria. “Papais
podem muito bem participar dessa brincadeira; de outra forma, eles se
sentiriam
fora de seu território”, explicou a psicóloga
Maureen O”Brien, que deu
consultoria ao desenvolvimento do produto.

O novo brinquedo se ajusta ao
mais recente Censo feito nos EUA, que mostrou
o aumento no número de homens responsáveis por
cuidar dos filhos enquanto as
mães trabalham fora e no número de pais que
passam mais tempo com os filhos do
que qualquer outro adulto -mãe incluída.

De olho na mudança,
a Mattel, unida à canadense Mega Brands, acaba de
colocar nas prateleiras dos EUA o kit “Barbie Build”n Style”
(construção e estilo), com o objetivo de atrair
pais e filhas.

Sim, a Barbie agora
constrói, mas não que tenha abandonado seu mundo
rosa
para virar engenheira: seus blocos são encontrados nas
“opções” de
sempre: piscina, casa de luxo, loja de roupas…O kit deve chegar ao
Brasil no
segundo semestre de 2013.

Construção
para meninas está em alta. A linha “Friends”, da Lego,
lançada nos EUA em janeiro e voltada às garotas,
nasceu de um pedido direto de
mães e crianças.

O brinquedo, também
tratado como inovador pela mídia e pelo comércio,
foi
desenvolvido em quatro anos, conforme o diretor de
operações da empresa
dinamarquesa no Brasil, Robério Esteves.

“A linha traz meninas urbanas,
com profissões e personalidades
diferentes. O objetivo é mostrar que elas se projetam hoje
em suas mães,
mulheres modernas e ativas profissionalmente”, diz.

Segundo Esteves, a Lego “sempre
insistiu na busca do desenvolvimento do
raciocínio lógico, da
coordenação motora e da criatividade”.

Os blocos da série,
à venda no Brasil, permitem a
construção de salão de
beleza, cafeteria, campo de equitação e
laboratório, entre outros.

“DISCURSO DA CEGONHA”

Enquanto duas gigantes da
indústria sinalizam a tentativa de acompanhar as
recentes transformações vividas por seu
público, alguns pais e especialistas
acham que o conservadorismo nesse mercado segue intocado.

“As
inovações não passam de reflexo da
nossa cultura de excessos. Nunca
houve tanto brinquedo inútil”, opina a designer Anne Rammi,
mãe de dois
meninos.

“A indústria de
brinquedos não está preocupada em oferecer
produtos com
responsabilidade social”, diz Anne, 32. Ela ilustra a visão
de outras mães
de sua geração, ativas na internet, às
vezes com blogs temáticos, que apontam
defasagem entre sua realidade familiar e os brinquedos -sempre
divididos entre
carros e heróis “deles”, bonecas e panelinhas “delas”.

Quem é do ramo
não concorda com essa percepção.
“Não há defasagem entre
a sociedade e a produção, até porque
se eu não me antecipar ao que a criança vai
querer, eu vou perder mercado”, diz Synésio Batista da
Costa, presidente
da Abrinq, que reúne fabricantes brasileiros

“Há 3.000 designers
brasileiros independentes que criam para 523
fábricas -e eles não estão defasados.”

Brinquedos podem ser
conceitualmente interessantes desde que vendam. Costa
dá o exemplo da boneca grávida lançada
no início dos anos 1990, um fracasso.

“Esquecemos de perguntar
à mãe se ela estaria disposta a explicar
à
filha de seis anos como uma mulher fica grávida. No Brasil,
ainda predomina o
discurso da cegonha. A gente não pode ir contra a cultura da
mãe
brasileira.”

Não quer dizer que
não haja inovação. “O
lançamento das bonecas negras
foi um sucesso, hoje estão estabelecidas no mercado, assim
como os brinquedos
para crianças especiais. Lançamos há
pouco bonecas que têm assaduras e podem
ser curadas. Isso mexe na sociedade infantil”, enumera o
empresário.

Uma característica
histórica do setor de brinquedos é a escassez de
opções
“lúdico-educativas”, diz Sandra Mara Corazza, doutora em
educação e
professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e na
universidade
Lumière Lyon 2, na França.

“O mundo dos brinquedos
é atrasado, limitado e simplificador; embora
haja mudanças, ele não acompanha o que vivemos”,
diz Corazza.

Para Lais Fontenelle,
psicóloga do Instituto Alana (dedicado a projetos
sobre o universo infantil), o problema não é a
distância entre o que as
prateleiras oferecem e o que a criança vive. Ela critica o
procedimento da
indústria de tentar prever ou inventar demandas. “Desde
sempre pais
conseguiram brincar com suas filhas sem precisar de blocos de
construção
cor-de-rosa da Barbie”, afirma.

Em meio à
multiplicidade de opiniões e opções -a
estimativa é de que sejam
vendidos 4.500 modelos de brinquedos no país neste ano-, a
questão é saber
quais elementos ajudam a compor o presente ideal.

“As crianças
precisam de pouco para se divertir; o bom brinquedo é o
que não vem tão pronto”, diz Fontenelle.

Anne Rammi, que tem um site
(www.mamatraca.com.br) sobre maternidade, pensa da
mesma forma: “Brinquedos simples e duráveis são
capazes de suprir as
necessidades de entretenimento e desenvolvimento de
cognição. As coisas que
eram criativas e interessantes há 50 anos continuam as
mesmas. O resto é
invenção para fazer a gente gastar”.

O presidente da Abrinq
contesta: “Criança não gosta de coisa velha;
quem gosta de coisa velha é acadêmico e
psicólogo. Criança, não.”

Já a educadora
Corazza considera que o grau de antiguidade, o material e as
visões de mundo associadas a um brinquedo não
falam mais alto do que a atitude
dos pais. “O adulto deve assumir a responsabilidade ética de
tornar o
brinquedo mais criador. Implica estabelecer entre adultos,
crianças e
brinquedos uma relação que vá
além dos limites de cada um.”

“Cada sociedade tem o brinquedo
que merece”, afirma a educadora.
“Para fugir dos brinquedos bobos, temos de deixar de tratar a
infância de
maneira boba, parar de adultizar a infância, enquanto o mundo
adulto é
infantilizado eternamente.”



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