Revista Veja » Edição 2132 / 30 de setembro de 2009
Antropologia
<b>Cozinho, logo penso</b>:
antropólogo de Harvard que já viveu como um chimpanzé, diz que o homem moderno é
decorrência do uso do fogo no preparo dos alimentos. Isso garantiu os nutrientes
necessários para o crescimento do cérebro (09/09)
Gabriela Carelli
Em
termos biológicos, nossa estirpe não é das mais antigas. Cinco ou 6 milhões de
anos atrás, um ramo da família dos primatas dividiu-se em duas linhas. Uma levou
ao atual chimpanzé. A outra a nós, o
Homo sapiens. Como se explica o fosso
cognitivo existente entre espécies tão próximas? Sabe-se que os genomas são
bastante similares – a divergência ocorre em apenas 0,6% dos genes. Ainda assim,
em vez de ser apenas outro tipo de chimpanzé, o homem é uma espécie diferente de
todas as outras, dotado de um cérebro com capacidade mental única. A questão que
intriga cientistas e filósofos de todos os tempos é: o que, no processo
evolutivo, nos tornou humanos? A resposta definitiva esbarra numa dificuldade
incontornável – o desaparecimento de todas as espécies intermediárias entre o
homem e aquele ancestral que ele teve em comum com o chimpanzé. Ainda assim, o
estudo dos fósseis e outros registros do passado permitiram a elaboração de uma
teoria amplamente aceita entre os estudiosos. Essa hipótese identifica momentos
decisivos na jornada humana e dá uma explicação convincente para o enorme
cérebro do Homo sapiens.
O primeiro grande salto foi o uso
de ferramentas. Em 1996, o antropólogo Tim White, da Universidade da Califórnia
em Berkeley, descobriu na Etiópia fósseis incompletos de um primata, ao qual deu
o nome de Australopithecus garhi, que viveu há 2,5 milhões de anos. Como
no mesmo sítio foram encontradas lâminas de pedra lascada, foi possível estimar
uma data aproximada do início do uso dos instrumentos. Talvez elas ainda não
ajudassem na caça, mas com certeza permitiram cortar e aproveitar melhor a carne
das presas. Foi um enorme salto na jornada humana. O tamanho do cérebro do homem
moderno é uma extravagância. Com 2% do peso total do indivíduo, consome por
volta de 20% de toda a energia disponível. Vista de hoje, a vantagem
evolucionista desse arranjo parece óbvia – mas sempre houve discussão sobre como
a evolução validou uma mutação de manutenção tão cara. A explicação só pode ser
que o homem primitivo descobriu uma fonte farta de nutrientes. Esse alimento foi
a carne, o único capaz de fornecer a proteína necessária para a expansão da
capacidade mental.
Mãos capazes de movimentos
complexos, ferramentas e o consumo de carne foram os elementos básicos. Os
hominídeos vegetarianos foram extintos, enquanto seus primos carnívoros
sobreviveram e deram origem à linhagem evolutiva que produziu o homem moderno.
Mas isso não explica tudo, pois os chimpanzés também usam ferramentas e comem
carne, mas continuam animais. O antropólogo inglês Richard Wrangham, da
Universidade Harvard, justifica a diferença com o acréscimo de outra vantagem
competitiva na equação: a conquista do fogo e seu uso para cozinhar. Isso
permitiu ao homem preservar melhor os alimentos e, principalmente, tornar o
processo digestivo mais eficiente, com o consequente aumento da absorção de
nutrientes pelo organismo. Em seu recém-lançado Catching Fire: How Cooking
Made Us Human (Pegando Fogo: como o Cozimento nos Tornou Humanos, em
tradução literal), Wrang-ham diz que o domínio do fogo coincidiu com o
surgimento do Homo erectus, 1,8 milhão de anos atrás. Anatomicamente, ele
já era bastante moderno. Seu cérebro tinha 900 centímetros cúbicos (o do homem
atual tem
1 400 centímetros cúbicos).
Sabe-se disso porque o cérebro é o único órgão a deixar sua marca no interior da
caixa craniana.
Attila Kisbenedek/AFP
FERRAMENTAS NÃO BASTAM
As pesquisas de Jane Goodall na Tanzânia
comprovaram que os chimpanzés usam ferramentas, mas isso não os torna mais
inteligentes
O Homo erectus foi o
protagonista de uma revolução. Talvez o aumento de seu cérebro possa ter a ver
com a nova forma de vida, baseada na exploração de recursos dispersos das
savanas, bem diferentes das florestas tropicais onde vive até hoje o chimpanzé.
Ele precisou armazenar no interior da cabeça a cartografia de um território
amplo, identificar os urubus que indicavam a localização da carniça, adiantar-se
aos acontecimentos do mundo natural e planejar-se para o futuro. É possível
imaginar que o grupo social, reunido agora em torno do fogo e mais cooperativo
nas caçadas, tenha ajudado a aumentar a complexidade cerebral. Nada disso se
sabe com certeza – mas se pode ser mais assertivo a respeito do efeito da
cozinha. "Sem o cozimento, seríamos parecidos com os outros primatas, que também
usam ferramentas, caçam e comem carne. Passaríamos a maior parte do tempo
mastigando, teríamos braços longos e corpo pequeno", disse Wrang-ham a VEJA. "O
advento da carne foi fundamental, mas o nosso salto evolutivo deve-se ao preparo
dos alimentos ao fogo, que permitiu aos nossos ancestrais absorver o máximo de
nutrientes e calorias."
Richard Wrangham é um ícone da
antropologia moderna. Ele iniciou sua carreira como auxiliar de Jane Goodall, a
primatologista inglesa cuja vida entre os chimpanzés nas florestas da Tanzânia
já virou filme. O próprio Wrangham estuda esses primos do homem há quatro
décadas. Para entendê-los melhor, ele até tentou viver como um deles. Vestiu uma
tanga e entrou no mato numa manhã, disposto a encontrar alimentos na selva, como
fazem os chimpanzés. Na maioria das vezes, tudo o que conseguiu foram frutas
amargas e a carne crua de algum macaco que os chimpanzés tinham matado e deixado
para trás. "Fiquei faminto", admite Wrangham. A experiência o levou a refletir
sobre o papel do fogo na evolução do homem. "Comecei a pensar como os nossos
ancestrais teriam sobrevivido dessa forma, comendo o mesmo que os chimpanzés. E
cheguei à conclusão de que isso não seria possível." Não se conhece nenhum grupo
humano que deixe de cozinhar seus alimentos (os crudistas, os radicais chiques
americanos que só consomem alimentos crus, não valem como exemplo). Na mitologia
de muitos povos, a descoberta do fogo simboliza o início da cultura humana
(veja o quadro abaixo). "Com o fogo, nossos ancestrais mudaram a maneira de
se relacionar. Os indivíduos passaram a gastar um bocado de tempo ao redor do
fogo, juntos", diz Wrangham. "Uma forma de viver bem diferente da dos
chimpanzés, que dormiam em qualquer lugar e estavam sempre dispostos a deixar o
grupo ao primeiro sinal de conflito." No fim das contas, foi a cozinha que deu o
empurrão que faltava para nossa transformação em humanos.
Entre gregos e bororos
O MITO FUNDADOR
da humanidade é o
fogo: pintura do Prometeu Acorrentado da peça de Ésquilo e o francês
Lévi-Strauss na mata tropical brasileira
Fonte de calor e luz, origem da vida, purificador de pecados,
castigo divino… Do zoroastrismo aos ritos indígenas das Américas, da Grécia
clássica ao catolicismo, de uma forma ou de outra, o fogo teve papel central nas
cerimônias, liturgias e mitos de todas as culturas e religiões conhecidas. O
mito do Prometeu Acorrentado, escrito por Ésquilo no século IV a.C., não é o
mais antigo registro da relevância do fogo na vida humana, mas é o que melhor
encarna seus significados essenciais: a transição entre o divino e o terrestre,
a mudança do estado natural para o cultural. Prometeu rouba o fogo então
privativo dos deuses e o entrega aos mortais. Pelo crime, ele não perde a
imortalidade, mas é condenado a viver acorrentado a um penhasco e ter seu fígado
devorado pelos abutres todos os dias. Nas palavras de Ésquilo: "Assim ele
aprenderá o que é atrair sobre si a fúria de Zeus / E vai parar de agir como o
adorador da humanidade".
O etnólogo francês Claude Lévi-Strauss deu ao primeiro volume
de sua obra principal, Mythologiques, um título culinário: O Cru e o
Cozido. O livro trata dos mitos prevalentes entre os índios bororos do
interior do Brasil, em meio aos quais o francês viveu em períodos alternados
entre 1935 e 1939. O mito fundador da raça humana para os bororos era o fogo e
seu significado, muito parecido com o dos gregos da antiguidade clássica. Também
entre os indígenas o fogo tinha origem divina – no Sol. Apropriar-se dele nas
fogueiras da tribo equivalia a libertar-se da tirania das divindades naturais,
mesmo que não totalmente de sua ira, e estabelecer-se como uma cultura
essencialmente humana.
Com reportagem de Nathália Butti
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