O ESTADO DE S.PAULO – ESTADÃO CONTEÚDO – 08/08/2021 – SÃO PAULO, SP
Desiguais desde bebês
RENATA CAFARDO
Economistas e cientistas já mostraram como é crucial investir em primeira infância
Impossível pensar que só 11% das mães de Roraima com filhos entre 0 e 3 anos queiram deixá-los na creche. Ou que em São Paulo e em Santa Catarina esse índice passe dos 50% só por vontade das famílias. São esses os números de crianças atendidas nesses Estados, que escancaram a desigualdade regional e social na educação da primeira infância brasileira.
A explicação simples é de que há menos creche para quem mais precisa. Além da diferença entre Estados, só 27,8% da população mais pobre do País tem filhos de 0 a 3 anos na educação infantil. Entre os mais ricos, o número sobe para 54,3%.
As desigualdades não param. São mais crianças brancas do que pardas em creches e mais na área urbana do que na rural. Os números, de 2019, são os mais recentes e estão no Anuário da Educação Básica 2021, divulgado na semana passada pelo Todos pela Educação. E não há nenhuma esperança de que durante a pandemia tenha havido investimento maior em creche, a etapa mais cara da educação – porque precisa de mais professores para cada aluno.
Cara, mas essencial. Nunca é demais repetir o que o economista, prêmio Nobel e professor da Universidade de Chicago James Heckman mostrou. Segundo suas pesquisas, as crianças de famílias pobres que frequentaram educação infantil de qualidade recebem salários bem maiores quando adultos se comparadas às que não tiveram. É uma forma de quebrar o ciclo da pobreza. Heckman também provou que investimentos na primeira infância trazem retornos financeiros para a sociedade.
A ciência ainda nos demonstra com muita clareza o processo intenso de desenvolvimento do cérebro de uma criança pequena. É quando as bases para suas capacidades físicas, intelectuais e emocionais são formadas, o que vai influenciar toda sua vida. E como são importantes os estímulos corretos, o afeto e o vínculo para o bebê crescer bem e saudável.
Claro, isso tudo pode ser feito por pais amorosos e bem informados – e que possam ficar com seus filhos, já que a escolaridade obrigatória no País começa aos 4 anos. Mas mães e pais pobres, e não só eles, precisam trabalhar. E quando não há creche os bebês ficam em casas de vizinhos, com irmãos maiores (também crianças), em unidades clandestinas ou vão junto para a rua.
Mesmo assim, muitos prefeitos não investem nas crianças pequenas. Há os que não sabem nem qual é a necessidade real de atendimento na sua cidade. E os que oferecem creches apenas nas regiões mais ricas, centrais, e não na periferia e na zona rural. E ainda se aproveitam do fato de que muitas famílias vulneráveis não procuram atendimento porque não sabem que têm esse direito.
Um estudo da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal estimou a necessidade de creche no Brasil, levando em conta o número de cidadãos que devem ser prioritários: mais pobres, de famílias monoparentais e mães economicamente ativas. No País, o resultado foi que 46% precisam de atendimento para crianças de 0 a 3 anos. Roraima, por exemplo, tem um índice de necessidade de creche de 47,3%; o Mato Grosso, de 30,7%.
O Brasil sofre do problema da fila da creche há anos e ele só tende a aumentar quando a pandemia acabar. Mais gente vai precisar tirar seus bebês de casa para trabalhar ou procurar trabalho. Muitas escolas privadas – que funcionavam como opção – fecharam as portas porque perderam alunos durante a pandemia, o que empurra mais famílias para o serviço público.
Criança pequena não vai para escola “só para brincar”. É uma etapa importantíssima do seu crescimento (com muita brincadeira, sim) e que influencia na nação que queremos ser. Não é possível ver um futuro de desenvolvimento e justiça para um país que olha seus cidadãos, desde bebês, de maneira desigual.