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O Estado de São Paulo, Domingo, 2 dezembro de 2007


CADERNO 2

 
 



E assim nasceu a mídia no Brasil

Lilia Moritz Schwarcz

Jorge Luis Borges, no
livro Outras Inquisições, descreve uma fantástica enciclopédia chinesa, em que
os animais aparecem assim divididos: pertencentes ao imperador, embalsamados,
treinados, porcos, sereias, fabulosos, incluídos nesta classificação, que tremem
como loucos, inumeráveis, pintados com um fino pincel de camelo, que já
quebraram o vaso, que de longe parecem moscas. Não é o caso de analisar o
estranho conteúdo do verbete; mais interessa sublinhar como ele incomoda ao
apontar os limites do ato de classificar. Não existem homens que não
classifiquem, o mais difícil é entender a lógica que preside tal organização,
muitas vezes presa a contextos e locais em tudo distintos ao nosso. Afinal,
classificar é dar ordem a um mundo, na maior parte das vezes, caótico.

 

Guardadas todas as
diferenças, a enciclopédia de Borges lembra certos anúncios que começaram a
invadir as páginas de jornais como a Gazeta do Rio de Janeiro, a qual, lançada
em 10 de setembro de 1808 na esteira das modificações introduzidas pela vinda de
d. João ao Brasil, pretendia noticiar todas as realizações dessa corte migrada e
estacionada provisoriamente nos trópicos. O jornal saía originalmente uma vez
por semana, sempre aos sábados, mas logo se tornou bissemanal. Como diz seu nome
– gazeta -, o periódico pretendia ser apenas um “papel de notícias que sai
regularmente”, sendo o seu redator um gazeteiro. Já a própria palavra jornal só
surgiria em Portugal em 1813, quando no Dicionário da língua portuguesa se
mencionava o pagamento diário do jornaleiro ou do trabalhador braçal.

 

O fato é que o termo e
a prática das gazetas se imporiam em Lisboa e no Rio de Janeiro de inícios do
19, a despeito do escárnio de alguns viajantes estrangeiros, que julgavam ser
essa uma forma superada de periodismo. É famosa a crítica de Hipólito da Costa –
diretor do jornal Correio Brasiliense, que circulava na mesma época, mas tinha
sede em Londres – acerca da “mísera Gazeta do Rio de Janeiro, em que se gasta
tão boa qualidade de papel para imprimir tão ruim matéria, que melhor se
empregaria se fosse usado para embrulhar manteiga”. E não se pode tirar a razão
de Hipólito, uma vez que a Gazeta era mesmo um noticioso do Estado e a serviço
do Estado. Nela, falava-se da saúde dos príncipes; publicavam-se ofícios,
notícias dos natalícios da realeza, panegíricos; e comentava-se a política na
Europa, sempre com um tom oficial.

 

O periódico cumpria,
porém, com seu objetivo original; não cabia às gazetas interpretar e exibir
conhecimentos. Ao contrário, para redigir um jornal como esse bastava dominar
línguas estrangeiras – uma vez que boa parte das notícias era retirada de
periódicos ingleses ou franceses – e saber descrever os rituais da corte. Por
isso, um gazeteiro era uma espécie de classificador de notícias. O grande
interesse, à época, centrava-se na figura de Napoleão Bonaparte e em suas
investidas militares, sempre devidamente criticadas.

 

É por isso mesmo que,
com o fim da guerra, as notícias vindas do estrangeiro perderam sua curiosidade,
e a tarefa dos gazeteiros tornou-se mais complicada. A partir de então, a Gazeta
voltou-se para sua própria realidade, e, diante desse ambiente um tanto tacanho,
era preciso “criar” notícias para além do calendário da Família Real. É certo
que números especiais celebraram a coroação de d. João VI em 1818, o casamento
de d. Pedro com d. Leopoldina no mesmo ano e até mesmo as exéquias de d. Maria,
em 1816. No entanto, se essas matérias eram tediosas e por demais oficiais,
assim como as principais notícias não passavam de resumos de outras matérias ou
da reprodução de medidas oficiais, detalhes desavisados começaram a aparecer nos
lugares menos nobres do periódico. Nos anúncios, que iam tomando as páginas da
Gazeta, um novo panorama se desenhava, revelando como o jornal era quase um mapa
dessa corte, um espelho que devolvia o processo de dinamização dessa sociedade.

 

No entanto, como esses
anúncios costumavam listar “novidades”, guardavam certas semelhanças com o
verbete imaginário da enciclopédia de Borges. Em 1818, um francês que mantinha
dois endereços no Rio de Janeiro – um na rua detrás do Hospício e outro na Rua
do Ouvidor – resolve fazer publicidade em duas páginas da Gazeta, descrevendo
todas as mercadorias que possuía. Nessa longa lista estão incluídos objetos de
decoração, vidros, instrumentos musicais, alimentos e muitos outros itens como:
“Chapéus de palha lisos pelo novo padrão; ditos de palha de Itália super finos;
véus; coletes com espartilhos de aço cobertos de tafetá; vestidos bordados de
flores; camisas muito bem bordadas; pescocinhos para senhoras, bonés, ditos de
palha de arroz, ditos de tecido de algodão que se podem lavar, ditos finos para
homens com espelho dentro; vestidos de renda magníficos, lenços para pescoço de
senhoras, de renda, renda bordada, branca e preta; lenços de batista bordados;
sedas, tafetás, vestidos estampados; seda com ramos muito delicados, estofos
para calções; casacas muito bem feitas; leques riquíssimos; meias de seda;
vestidos bordados; ditos de renda; sapatos de homem e mulheres; sacos de veludo
para senhoras muito bem bordados; mantinhas para senhoras, de garça e seda com
borlas; bolsas para senhoras, de flores e cabelo; plumas para chapéus de
senhoras, brancas e pretas de todo o tamanho; flores sortidas; vestidos
estampados e lenços.” Destituída de uma lógica evidente, a longa relação termina
com a seguinte frase: “Finalmente acha-se em casa do senhor de Amerval um
sortimento de tantos objetos, que seria preciso muito tempo para escrever e o
mesmo senhor tem sumo gosto em os vender por preços modestos.”

 

Esta é uma
classificação para Jorge Luis Borges nenhum botar defeito e revela como a Gazeta
acabava por cumprir outras funções. Se não trazia artigos de opinião ou seções
mais aprofundadas, acabou se revelando como documento precioso para retratar a
vida cotidiana da corte de d. João, que precisava se “civilizar” de maneira
apressada e até destrambelhada. E é em torno desse material, pouco sistemático,
que se debruça Maria Beatriz Nizza da Silva em A Gazeta do Rio de Janeiro,
1808-1822 (Uerj, 288 págs., R$ 30). A historiadora teve e tem um papel
fundamental na consolidação de uma área de pesquisas por muito tempo
desconsiderada, mais conhecida como história da cultura e do cotidiano. Em obras
como Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro: 1808-1821 (1977), Cultura no Brasil
Colônia (1981) e no livro que funciona como uma espécie de paralelo a este, A
Primeira Gazeta da Bahia: Idade d’Ouro do Brasil (1978), Nizza da Silva já
mostrava a potencialidade desse tipo de documentação. Mas a historiadora dá
agora nova forma a esse material, mostrando como, pelas brechas e detalhes menos
esperados, revelava-se toda uma vida do Rio joanino.

 

Através dos anúncios
podemos entender, por exemplo, como morava a elite local. A Praia do Botafogo
era o local predileto da nobreza reinol, tanto por conta dos espaços mais
generosos encontrados na região, como por causa da “boa vizinhança”. Suprir tais
residências era um dos objetivos maiores das novas casas de negócio que vendiam
objetos decorativos, como esteiras – muitas vindas de Moçambique -, mármores
para “ladrilhar as salas”, figuras de alabastro, biombos de charão, espelhos,
quadros, escrivaninhas, relógios de parede ou voltaretes (jogo muito em voga na
época).

 

A culinária parecia
uma porta de entrada privilegiada para entender a invasão dos novos costumes. Os
produtos anunciados eram todos importados, ressaltando-se as bebidas e temperos,
os chás, tâmaras, vinagres, molhos de peixe, mostardas, conservas, azeites e o
chocolate da Espanha. Os gostos estrangeiros aportavam com os imigrantes que
afluíram em massa desde 1808, quando os portos brasileiros foram abertos às
nações amigas. Se primeiro vieram os ingleses, a partir de 1815 chegariam os
franceses, com suas vogas. A Hospedaria do Reino do Brasil – que ficava na Rua
da Alfândega e fora criada em 1816 – mudaria de nome e de preço, e em 1817
passaria a se chamar Hotel Royame du Brésil. Comer fora de casa virava também
uma coqueluche, com os novos restaurantes e confeitarias que vendiam licores,
barrelinhos de doces, frutas secas e doces feitos de caju, pitanga e mangava.
Chegariam da França, ainda, cozinheiros especializados que mudariam paladares e
modos à mesa.

 

A moda sinalizava
igualmente para mudanças aceleradas. Chapéus de tamanhos elevados, vestidos,
rendas, assessórios de toda sorte faziam a alegria das senhoritas que
circulavam, agora, pelas ruas – e “faziam a corte”. Entrariam no País
cabeleireiros franceses, garantindo, mesmo com o calor dos trópicos, penteados
que chegavam a um metro ou mais. Eram mestres nessa arte – como Richaud e Girard
-, que colocavam as mãos nas reais cabeças e ofereciam serviços variados:
cortavam, tingiam, passavam pó, penteavam e até prometiam (utilizando-se do
poder de águas maravilhosas) o crescimento e aumento dos cabelos. Estrangeiros
também se tornaram tradutores, professores de línguas ou abriram colégios.

 

No Brasil de d. João
faltavam médicos, uma vez que até então a profissão era proibida. Assim, com a
corte entraram os profissionais da área, isso enquanto se aguardava que as
primeiras instituições, fundadas em 1809, gerassem seus formandos. Ao lado dos
“cientistas”, grassaram, porém, curandeiros e indivíduos que, não sendo médicos
ou cirurgiões, divulgavam seus talentos curativos. Prometiam a redenção para
tudo – de hérnias a resfriados, sífilis e esterilidade -, assim como ofereciam
remédios cuja composição se desconhecia, mas que garantiam milagres de toda
ordem. As “pílulas da família”, por exemplo, anunciavam muito e explicavam
pouco, mas pareciam fazer sucesso. Pacientes agradecidos iam às páginas da
Gazeta elogiar os bons tratos e remédios de determinado médico, assim como se
encontravam reações adversas de outros profissionais, que se apresentavam como
os verdadeiros manipuladores dos preparados. Hilário é o episódio que envolve o
cirurgião José de Carvalho, o qual usou as páginas do jornal para chamar para si
o descobrimento de uma bebida que expelia a tênia. Por sinal, se os redatores da
Gazeta evitavam polêmicas, já seus anunciantes pareciam julgar que o periódico
era o lugar correto para o estabelecimento de tertúlias.

 

Enfim, mesmo sem
querer, a Gazeta converteu-se em palco para a demonstração das conseqüências que
a vinda da corte e o alvará de 1º de abril de 1809 – o qual franqueava a
liberdade da indústria – geraram. O comércio se ativou, assim como as práticas
profissionais. Artesãos, negociantes, criados, artistas, músicos, livreiros,
sapateiros, literatos chegavam à capital carioca e faziam uma concorrência,
desleal, com a gente da terra. Não obstante, a imagem geral era a de que a
Ilustração chegava ao País em caixotes ou por meio dos navios que despejavam
imigrantes, produtos, assim como valores, costumes e símbolos.

 

No entanto, a colônia,
feita Reino Unido em 1815, lembrava mais as arquiteturas efêmeras, construídas
por ocasião das grandes festas da corte. Tudo cintilava, mas soava um pouco
apressado, artificial e feito para durar pouco. O grande limite dessa vida
joanina era dado pela escravidão; presença cativa nas ruas do Rio de Janeiro e
nas páginas da Gazeta. Ao lado das demais notícias, que acenavam para o
progresso rápido promovido pelos novos profissionais, surgiam os famosos
anúncios de fuga, venda, aluguel, penhora e seguro de escravos. Escandalosos aos
olhos de hoje, eles eram quase corriqueiros, tal a maneira como tomavam,
cotidianamente, as páginas do jornal. Aí estava exposta a ambivalência desse
processo, que parecia “natural”, mas esbarrava no sistema escravocrata e na
idéia, nada iluminista, da posse de um homem por outro.

 

O livro de Nizza da
Silva é um ótimo farolete para entender a rapidez das mudanças que a vinda da
corte portuguesa, em 1808, gerou. A obra representa, assim, um grande estímulo
para futuras pesquisas que pedem, porém, por novas sistematizações do material.
Além do mais, em tempos de celebração de 200 anos, vale a pena atentar, também,
para o que a entrada da Família Real não alterou. Se era preciso transformar, e
de maneira ligeira, uma pacata cidade perdida no meio da América numa rica
capital do Império português, não se tocaria no elemento que estruturava essa
sociedade: o trabalho escravo. Aí estava um dos limites desse projeto
civilizatório; uma amarra fundamental para entender e desconfiar do brilho fácil
da corte.

 

Lilia Moritz
Schwarcz é professora titular do Departamento de Antropologia e autora, entre
outros, de As Barbas do Imperador e A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis


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