O Estado de São Paulo, VIDA&,
Sábado, 9 dezembro de 2006

Jornalismo e
valores morais

Paco Sanchez*

Durante minha última estada em
São Paulo para dar aulas no Curso Estado de Jornalismo, fiz uma rápida viagem a
Montevidéu. Entrei no avião resmungando porque me havia esquecido de pedir
lugar no corredor e, pelo cartão de embarque, estava irremediavelmente
destinado a acomodar-me junto a uma janela. Pensava nisto na fila de
passageiros que não andava. Fui ver o que se passava. Um homem loiro de 40 e
muitos anos, óculos de moldura dourada, vasto bigode de barão, olhar azul de
assassino de aluguel, disfarçado com um terno mal cortado, chamava a comissária
com dois dedos da mão estendida, sem se importar com a confusão de todo o
processo de embarque. Parecia muito seguro de si mesmo. Finalmente, a comissária
se aproximou esgueirando-se entre os passageiros e ele lhe disse:

– Explique, por favor, a esta
senhora qual é o seu assento.

A mulher em questão havia-se
acomodado no assento da janela e olhava a comissária com ar ferino e
desafiante. A comissária sentenciou:

– Seu lugar é no corredor,
senhora.

– Pois eu pedi lugar na janela e
não vou trocar.

– Tem de sentar aqui, senhora, a
não ser que alguém queira trocar.

– Eu troco.

Eu disse estas duas palavras com
um tom alto, mas seco, tentando esconder o entusiasmo e a vontade de ser o
primeiro, a vontade de que ninguém se adiantasse ante
tal oportunidade: poderia, enfim, viajar no corredor e esticar as pernas,
também me levantar. Nada me impediria.

 

A comissária parecia feliz por
haver resolvido o problema tão rapidamente. A mulher me disse um “obrigado”
tímido, como se lhe tivesse presenteado com algo muito importante, e sentou-se
na minha janela. Mas eu estava mais curioso pela reação do homem loiro. Ele não
disse nada. Baixou os olhos de repente, como se houvesse perdido, por um
momento, toda a segurança. Mas não hesitou um instante: cedeu a passagem à
mulher, sentou-se em sua janela e ali ficou quieto durante todo o vôo. Me alegrou notar-lhe algo confuso e envergonhado.

Suponho que assim funciona a
economia de mercado: três egoístas satisfeitos e atendidos. Quatro, se
contarmos a comissária consciente de sua autoridade reguladora. Apenas que
sobre meros interesses, sem nada mais, não se constroem comunidades. As
comunidades são construídas sobre valores.

Os sociólogos mais respeitados
estão de acordo em algumas coisas ao analisar nosso tempo: temos evoluído em
eras, e a atual, sob o ponto de vista científico e tecnológico, não tem
parâmetro com nenhuma outra. O salto desde a sociedade industrial para esta
sociedade global é gigantesco. Também estão de acordo em uma série de novos
fenômenos. Em primeiro lugar, a desigualdade: os ricos estão mais ricos que
nunca e os pobres também estão mais pobres, tanto se pensamos em países como em
pessoas (as classes médias tendem a diminuir, inclusive nos países avançados).
Também o surgimento de novas formas de violência, elas igualmente globalizadas:
o terrorismo fundamentalista, as gangues juvenis internacionais, as máfias de
todo tipo e origem, etc. A criminalidade global facilitada pelo mecanismo da
nova economia que multiplica os traficantes: de drogas, de pessoas, de armas,
etc. A quebra da família: se multiplicam aquelas sem
pai – ou mãe – e também o número de pessoas que vivem sós. Muitos concordam com
o diagnóstico: temos mais poder científico, técnico e comercial que nunca, mas
menos valores morais. Alguns atribuem esta hemiplegia à crise que sofreram,
paralelamente à revolução tecnológica, as instituições que habitualmente
provêem os valores: as igrejas, as famílias e as organizações educacionais.

E o jornalismo? Também está em
crise. Em parte, porque as notícias interessam na medida em que afetam os
valores. Mas, se debilitado o sistema reconhecido de valores, se
verdadeiramente comuns são os grandes espaços comerciais que, com idêntica ou
diferente marca, se multiplicam pelo mundo, então o que interessa compartilhar
– ou discutir – são os egoísmos pessoais que se chocam com o meu.

Muitas outras vezes eu disse e
escrevi que comunicar é fazer comunidade: unir, integrar, ajudar que os
diferentes se conheçam e se compreendam. Para isso é imprescindível, entre
muitas outras coisas, o apoio moral dos profissionais do jornalismo.
Especialmente os novos profissionais. Como estes que acabam de concluir o Curso
Estado de Jornalismo, tão queridos, com os quais hoje, orgulhosamente,
compartilho espaço, e dos quais depende a solução das crises.

*Paco Sanchez é diretor do Grupo Voz, de Espanha

Categorias: Jornalismo

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