Portal Portal UOL, https://tab.uol.com.br/edicao/novos-lobistas/, 26/09/2022

Jovens, ativos nas redes sociais e com altos salários, os novos lobistas querem tirar a atividade das sombras

Reportagem Alex Mirkhan Motoryn

“Brasília é um paraíso de lobistas”, disse o presidente Jair Bolsonaro (PL), ao se defender das acusações de corrupção na compra de vacinas contra covid-19 pelo Ministério da Saúde. “Tudo o que é de ruim no Brasil vai para Brasília, fazer lobby e tirar proveito”, reclamou, em julho de 2021, no auge da CPI da Covid. Poucos minutos depois da declaração do chefe do Executivo, mensagens começaram a pipocar nos celulares de Carolina, Eduardo, Kathleen e Anderson.

Na capital federal, os quatro jovens estão na linha de frente contra o que consideram “estigma” do lobby — que, desde 2018, consta no Cadastro Brasileiro de Ocupações do Ministério do Trabalho como “relações institucionais e governamentais”. Nos corredores de Brasília, o termo é conhecido pela sigla RIG ou pela abreviação “relgov”. Aquela tarde de julho não foi a única vez em que ficaram agitadíssimos.

Em março de 2022, com a revelação do gabinete paralelo de religiosos que se instalou no Ministério da Educação, caso que derrubou o então ministro Milton Ribeiro, eles também se indignaram nos grupos de mensagens, desta vez com a imprensa que se referiu ao episódio como escândalo dos “pastores lobistas”.

“Não sei o que os pastores estavam fazendo, não tive acesso aos autos, mas claramente não era lobby”, diz Carolina Venuto, 36, desde 2020 presidente da Abrig (Associação Brasileira de Relações Institucionais Governamentais), maior entidade de profissionais da área no país. “É desinformação definir o lobby como crime e o lobista como criminoso”, acrescenta Eduardo Galvão, 40, que comanda a Pensar RelGov, outra organização que reúne profissionais em Brasília.

Lobistas atuaram nas negociações das vacinas e, diversas vezes, batem nas portas dos ministros. A questão, segundo especialistas, são os “maus lobistas” que descambam para a corrupção pura: um dos pastores investigados, por exemplo, teria cobrado R$ 15 mil e 1kg de ouro para influenciar o Ministério da Educação a liberar recursos para uma prefeitura do Maranhão.

Persiste uma imagem do lobby associada a “maletas de dinheiro”, critica Kathleen Oliveira, 25, do Comitê Jovem RIG, braço da Abrig, que busca aproximar estudantes e a entidade. “Está melhorando, mas ainda estamos nesse processo de desmistificação”, diz Anderson Dias, 27, que também comanda o comitê. Desmistificar, no caso, quer dizer tirar a pecha de corrupto. “Toda profissão tem pessoas ruins.”

Lobby, em inglês, significa antessala. Refere-se, desde o século 19, a pessoas que aguardavam políticos nos salões de prédios públicos para discutir interesses privados. Essencialmente, é assim até hoje, inclusive nas antessalas de Brasília.

Lobby, na política, é a prática de influenciar e pressionar políticos e poderes públicos sob encomenda de um ou mais grupos organizados.

Nos últimos tempos, ganhou força no Brasil o termo “advocacy”, usado por organizações da sociedade civil para caracterizar campanhas de incidência política em temas considerados de interesse público, como direitos humanos. Para a cientista política Andréa Gozetto, no entanto, o senso comum de que o advocacy é um “lobby do bem” é equivocado. “Advocacy é a defesa de interesses em vários níveis, com campanhas de comunicação e sensibilização da sociedade. Pode ou não usar o lobby como uma de suas estratégias”, explica.

O que jovens como Carolina e Eduardo querem mudar é a imagem dos lobistas, muitas vezes associada a figurões sombrios e ardilosos, selando negócios obscuros nos bastidores. Com forte presença nas redes sociais, eles se comportam como influenciadores e tentam articular, às claras, a regulamentação da profissão.

As discussões nos grupos de mensagens voltaram a bombar na noite de 3 de agosto, quando a Câmara dos Deputados aprovou o requerimento de urgência para discutir o projeto de lei do governo federal que regulamenta o lobby. Com isso, o texto já pode ser levado ao plenário sem passar pelas comissões. O assunto não estava na lista de votações do dia e foi incluído como “extrapauta” no fim da sessão, a pedido do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL).

Coincidentemente (ou nem tanto), na primeira semana de agosto a Abrig ocupou o Espaço Mário Covas, um dos corredores mais disputados da Câmara, que liga os gabinetes de deputados às salas das comissões parlamentares, com uma exposição do aniversário de 15 anos da organização. Governistas como Ricardo Barros (PP-PR) e o autor do requerimento de urgência, Lafayette de Andrada (Republicanos-MG), e opositores, como Rodrigo Agostinho (PSB-SP), passaram pelo estande.

Nos dias 2 e 3, eles também fizeram um evento nos corredores da Câmara, com discursos e coleta de assinaturas para a formação da FPMRIG (Frente Parlamentar Mista pelo Reconhecimento das Relações Institucionais e Governamentais). Em outras palavras, estavam fazendo lobby pelo lobby.

Os novos lobistas querem trazer à luz o quanto a representação de interesses privados na política é desigual: no Brasil, 78,7% dos lobistas atuam a serviço de empresas bilionárias, majoritariamente estrangeiras (52,3%), aponta o Anuário Origem, realizado pela consultoria Consult-Master e outras organizações, entre elas a Abrig. Entretanto, o número de empresas brasileiras apostando no lobby vem subindo: em 2020, elas representavam 34,8% do total; em 2021, passaram a 47,7%.

Quem mais demanda lobistas são a indústria farmacêutica (14,8%), tecnologia da informação (14,1%) e biotecnologia (11,7%), segundo outro levantamento, produzido pela Pensar RelGov. Estima-se que há 96 mil lobistas no país, atualmente concentrados no Distrito Federal, São Paulo e Santa Catarina.

Os estudos indicam que o governo Bolsonaro foi positivo para os lobistas (“picaretas”, na expressão do presidente). Segundo o Anuário Origem, em 2019, 54,6% dos profissionais consideravam o diálogo com o Executivo como principal obstáculo para a profissão. Em 2020, o percentual caiu para 40%. Em 2021, subiu para 45,5%, aumento atribuído à pandemia.

Universidades prestigiadas passaram a oferecer cursos voltados para o lobby, o que fez com que os próprios profissionais assumissem a função “com orgulho”, avalia a cientista política Andréa Gozetto, coordenadora da pós-graduação de Relações Governamentais da FGV (Fundação Getulio Vargas).

“As pessoas foram percebendo: ‘Tem curso no Insper e no Ibmec, então é legal. São duas instituições de renome internacional'”, exemplifica. Para Gozetto, a Lava Jato e a Lei Anticorrupção também impactaram o setor, pois forçaram as empresas a ter normas mais rígidas na relação com os governos.

O Congresso é o habitat de Eduardo Galvão. Foi ali que ele teve a primeira experiência profissional de sua vida, como estagiário do Senado, 20 anos atrás. Hoje, é um dos lobistas mais prestigiados de Brasília, segundo congressistas e colegas de profissão ouvidos pelo TAB.

Eduardo já defendeu bancos, fabricantes de tabaco e mineradoras. “Um valor pessoal que tenho é acreditar na democracia. Não é porque não concordo com você que vou tolher seu direito de falar o que pensa e defender o que acredita. Isso é uma máxima para a gente que trabalha no setor”, acrescenta ele, que atualmente é professor do MBA em Relações Institucionais e Políticas Públicas do Ibmec.

Ele não revela suas estratégias como lobista. No curso, porém, diz ensinar a atividade de RIG numa abordagem “360”: “Você tem que ser um cara meio ‘Bombril’, porque tem que conhecer um bando de lei, entender de comunicação, de risco, de projeto, de análise de dados… Na nossa área a gente está sempre se capacitando”.

No Instagram, Eduardo alterna fotos casuais com encontros com políticos tarimbados, como o ex-presidente Michel Temer (MDB).

Nas redes, Carolina Venuto mescla vídeos de sessões da Câmara dos Deputados, como a que aprovou o regime de urgência para a regulamentação do lobby, com bastidores do Congresso, como um retrato ao lado da cachorra Margaux, a golden retriever da Polícia Legislativa, constantemente assediada nos corredores da Casa. Mas não deixa de registrar cenas mais cotidianas, como uma homenagem à própria manicure.

Antes da Abrig, Carolina trabalhou “do outro lado do balcão”. Por 10 meses foi assessora parlamentar do Ministério da Justiça. Depois foi contratada pelo Itaú, voltou ao governo federal e migrou para uma consultoria de lobby. Até que, em junho de 2018, abriu seu próprio escritório.

Ex-atleta profissional de patinação artística, ela deu preferência a áreas relacionadas a esportes nos primeiros tempos. Hoje diz selecionar sua carteira de clientes, embora assuma que a atividade exija “flexibilidade” para atender demandas que não necessariamente correspondam às suas convicções.

A Azul Linhas Aéreas foi a maior cliente da consultoria de Carolina. O contrato com a empresa previa a representação da companhia aérea em uma série de debates no Congresso — como a aprovação da MP do Voo Simples, que garantiu o interesse de gigantes do setor, como manter a cobrança no despacho das bagagens. “Sou muito competitiva, então, quanto mais difícil, mais complicado, mais eu adoro.”

Andar entre os lobos do Congresso foi até fácil para Anderson Dias, um jovem afável que se diz destacado por sua oratória e “empatia” com políticos.

“Às vezes, você está falando com um relator ultradireitista e, no outro dia, precisa falar com um ultraesquerdista. Se tiver uma posição política clara, vai queimar uma ponte e não podemos nos dar esse luxo”, diz.

Graças à sua desenvoltura com os códigos “não oficiais” de conduta no Congresso, Anderson ascendeu rapidamente na Prospectiva, consultoria onde, em menos de três anos, alcançou o cargo de gerente. “Não temos que ser amigos [dos interlocutores], mas se conseguir ser amigo, melhor”, conta ele, que costuma confraternizar com políticos em reuniões dentro e fora do Congresso.

No Comitê Jovem RIG, ele costuma tirar dúvidas e explicar artimanhas necessárias para o relacionamento com os tomadores de decisão, principalmente congressistas. A principal delas é o que chama de “soft skills”, que pressupõe uma abordagem mais empática, inclusive assumindo as próprias limitações diante do interlocutor. “No fim, é a autoridade eleita quem decide.”

Num Congresso composto majoritariamente por homens heterossexuais e brancos, populações negras e indígenas tendem a ficar à margem dos interesses representados por lobistas. Ainda assim, Anderson defende que as “paixões políticas” estejam sempre apartadas dos discursos.

Kathleen Oliveira concorda: se for pautada para defender interesses dos quais diverge, vai ter de “separar o profissional do pessoal”. Recém-egressa da faculdade de Relações Internacionais do Centro Universitário de Brasília, ela é analista júnior da Brasscom (Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais).

Entre outras missões, ela atua para desonerar a folha de pagamento de empresas, para, segundo suas palavras, “que esse montante possa ser investido em outras áreas”. Desonerar a folha de pagamento significa livrar empresas de pagarem despesas ou tributos, integral ou parcialmente. “Tenho orgulho de atuar também em prol da inclusão digital, para gerar mais empregos e formar mais profissionais especializados e para desenvolver um Brasil mais conectado.”

Kathleen, considerada “um foguete” por Carolina, diz que ainda não enfrentou um dilema moral na sua trajetória como lobista. De centro, a linha vermelha, para ela, é a indústria do tabaco. “Vai contra meus princípios”, justifica.

Jovens lobistas contam que priorizam encontros pessoais com assessores, entre cafés e jantares, num bate-papo informal que “começa com o jogo do Flamengo e termina com uma emenda parlamentar”. A estratégia mais comum é promover eventos setoriais e convidar parlamentares que já apoiam determinada iniciativa, para criar um clima favorável à conversão dos indecisos.

Há outras estratégias mais diretas de convencimento, em que tudo é pensado: eles analisam alianças políticas e os relacionamentos dos parlamentares com seus pares para tentar convencê-los de embarcar em uma pauta.

Em 2016, por exemplo, Dias precisava angariar apoio para a aprovação da portaria nº 120 do Ministério de Minas e Energia — a missão era garantir o pagamento de indenizações às transmissoras de energia elétrica, entre elas seu cliente. O lobista então mapeou “quem é amigo de quem, quem tem interesse com quem” e abordou, um a um: “O deputado xis, que é seu amigo, nos apoia. Você quer apoiar também?”. Dessa vez, deu certo.

O desfecho não foi tão positivo para Dias na tramitação da Lei 14.300, sancionada em janeiro pelo presidente, que instituiu o marco legal para micro e minigeradores de energia (algo que seu cliente não queria). O calcanhar de Aquiles teria sido a aliança entre um senador, que se dizia favorável ao projeto, mas que fazia parte da coligação do autor do projeto — o deputado federal Silas Câmara (Republicanos-AM) — para a candidatura ao governo do estado.

“Vocês podem me convencer o quanto quiserem, mas não vou mudar minha posição”, teria dito.

Um dos principais estudiosos do lobby no Brasil, o cientista político Manoel Santos, professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), considera que o lobby empresarial contribui para a “desigualdade política” e que é preciso dar transparência às relações entre políticos e lobistas.

“O dinheiro faz diferença”, diz. Grupos econômicos mais poderosos têm recursos que outros grupos não têm, destaca Santos, “por isso não é incomum encontrar grupos mais influentes que outros”. Para quem tem menos recursos e menos influência, acrescenta, “é natural a interpretação de que isso é uma interferência indevida do poder econômico no sistema democrático”.

“A corrupção precisa ser combatida. Uma regulamentação daria transparência à atividade. Deveríamos apostar em criar condições para que o acesso que os grupos mais organizados e com mais recursos têm também seja possível aos que não os têm.”

Em tramitação no Congresso desde 1989, quando o então deputado do PFL (atual União Brasil) Marco Maciel apresentou o primeiro projeto de lei sobre a regulação do lobby, o assunto voltou à baila: a adesão do Brasil entrar na OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) depende de uma série de adequações legislativas, e uma delas é a implementação de regras para a atividade.

O Executivo encaminhou um novo texto para o Congresso no fim de 2021. A proposta atual faz parte de um esforço iniciado em 2019 pela Controladoria-Geral da União, órgão escalado para atender a compromissos para ingresso na OCDE. O texto diz que reuniões e audiências entre lobistas e agentes públicos devem ser registradas previamente, em sistema informatizado, com o assunto e o propósito dos encontros, além de estabelecer regras mais claras para a responsabilização de agentes públicos.

Na Câmara, a base governista diz que há um ambiente favorável para aprovação, ainda que a Casa atue com mais morosidade em ano eleitoral. Segundo Lafayette de Andrada, autor do requerimento de urgência, há uma expectativa de que o texto possa ser votado depois das eleições, mas antes do final da atual legislatura.

A proposta do Executivo tem caráter nacional e escopo mais amplo do que iniciativas anteriores. Além da União, o PL 4391/21 pretende abarcar todos os entes federativos, mais consórcios, autarquias, fundações e empresas estatais. Tramita em conjunto o PL 1535/22, do deputado Carlos Zarattini (PT-SP), que busca resumir discussões ocorridas no Legislativo. “A lei do lobby não é panaceia, mas suprirá lacuna essencial”, afirmou, em sessão recente da Câmara.

O principal ponto de discórdia entre deputados é a possibilidade de se criar um cadastro nacional de lobistas, o que congressistas de esquerda defendem, pela transparência; já associações de profissionais e sindicatos patronais são contrárias.

Zarattini engrossa a iniciativa de discutir o assunto no plenário, mas lobistas admitem, com os microfones da entrevista desligados, que diante do “clima de polarização”, dificilmente a oposição vai aprovar um projeto de autoria do governo Bolsonaro.

Após as eleições, a previsão é que propostas controversas, como a flexibilização do acesso às armas e até o homeschooling, sigam em alta no Poder Legislativo. Até lá, se a profissão realmente sair das sombras com a regulamentação, Carolina, Eduardo, Anderson e Kathleen talvez precisem de menos palavras para explicar o que é, afinal, o lobby que fazem. E a quem servem.

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Reportagem Alex Mirkhan e Paulo Motoryn | Fotos Diego Bressani | Edição Juliana Sayuri | Arte Carol Malavolta

Categorias: Lobista

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