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Jornal
da Unicamp,
Campinas, 26 de agosto
de 2013 a 01 de setembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 572

Laboratório testa próteses “biofabricadas” em humanos



Pesquisadores do Biofabris, na Unicamp, iniciam testes de peças customizadas,
último estágio de estudo que começou há quatro anos

ALESSANDRO SILVA

Você sobreviveu a um grave acidente, mas se olha no
espelho, todos os dias, e depara-se com as marcas da tragédia: a ausência de uma
parte do osso da cabeça. Ou você teve alguma doença que deixou sequelas
semelhantes. Usa boné, deixa o cabelo crescer (se ainda o possui), para esconder
essas marcas. Se, de apenas imaginar, a situação o incomoda, pense agora que
esta é a realidade diária de quem passa por essas situações e aguarda uma
prótese. Do ponto de vista médico, a questão é maior: elas estão mais
vulneráveis com a deformidade no crânio, que antes protegia o cérebro, e isso
representa um risco para a vida e exige cuidados especiais.

Dez pacientes terão o problema resolvido até o final
deste ano, segundo previsão dos pesquisadores da Unicamp que trabalham em um
projeto único de fabricação desse tipo de “peças de titânio” para humanos no
país, no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT) em Biofabricação
(Biofabris), na Unicamp. Quatro já estão prontos para a cirurgia, que será
realizada no Hospital das Clínicas da Unicamp, em Campinas (SP). O grupo foi
selecionado para a etapa de estudos clínicos do projeto, o último estágio da
pesquisa e um dos mais importantes por envolver a aplicação e avaliação das
próteses em seres humanos.

Em comum, todos passaram por uma ou duas cirurgias de
reparação, mas sem sucesso, por diversos complicadores típicos desse tipo de
situação. A maioria é homem, apresenta sequelas decorrentes de traumas de
acidentes e têm entre 20 e 60 anos. “Na área médica, é preciso submeter todo
material novo a uma bateria de testes e existem passos a serem seguidos. O
último deles é o estudo clínico”, explica o médico Paulo Kharmandayan, professor
e coordenador da área de Cirurgia Plástica do Departamento de Cirurgia da
Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, integrante da equipe de pesquisa
do Biofabris.

O conceito de “biofabricação” consiste em utilizar
técnicas de engenharia e biomateriais para a construção de estruturas
tridimensionais, fabricação e confecção de substitutos biológicos que atuarão no
tratamento, restauração e estruturação de órgãos e tecidos humanos. O
laboratório, que é ligado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI),
reúne pesquisadores de quatro unidades da Unicamp (FEQ, FEM, FCM e o Instituto
de Física) e de outras universidades e institutos de pesquisa do país, de
diferentes áreas, que trabalham de forma integrada e multidisciplinar nos vários
projetos, incluindo o das próteses.

No total, quinze pacientes foram pré-escolhidos para
essa etapa de estudos clínicos, aprovada pelo Comitê de Ética da FCM, mas
existem outros selecionados e que podem ser incluídos. A primeira cirurgia foi
realizada no ano passado. O segundo paciente operado recupera-se de um
procedimento realizado há dois meses. Ambos vivem com novas próteses feitas de
titânio para a correção de deformidades cranianas. Assim como os outros que
ainda serão operados no decorrer dos próximos meses, todos ajudarão os
pesquisadores a avaliar a adaptação do corpo às peças produzidas sob medida.
“Todas as etapas são importantes, mas esta é imperativa para que tenhamos uma
avaliação do que foi feito, desde a escolha do material até as técnicas de
fabricação e cirurgia”, explica o coordenador do Biofabris, Rubens Maciel Filho,
professor da Faculdade de Engenharia Química (FEQ) da Unicamp.

As próteses desenvolvidas são usadas em cirurgias
plásticas (craniofaciais) para a reparação de deformidades causadas por má
formação ou por sequelas de traumas, como acidentes, ou doenças. No Brasil, de
cada dez vítimas de acidentes de trânsito, quase seis (57,6%) apresentam traumas
faciais e um (10%) tem lesões no crânio. “Infelizmente, vivemos em uma sociedade
que valoriza muito a estética”, afirma Marcelo Magno, 28, o segundo paciente a
receber o implante na Unicamp. “Agora, há momentos que até esqueço que uso a
prótese.”


PESQUISA

De modo resumido, a etapa de estudos clínicos servirá
para que a equipe de pesquisa avalie todo o processo, desde a fabricação da peça
até a fase pós-cirúrgica, verificando, por exemplo, a biocompatibilidade do
material escolhido, o titânio – se não há processo de rejeição e outros
complicadores eventuais nesse tipo de reconstrução. Os pacientes serão
acompanhados por, no mínimo, um ano a partir da realização da cirurgia, mas o
prazo pode ser ampliado de acordo com as necessidades da pesquisa.

Atualmente, próteses sob medida, do tipo pesquisado
pelo laboratório, são produzidas apenas no exterior e com alto custo. Outras,
construídas com diferentes materiais (metacrilato, cerâmica, por exemplo), no
Brasil, podem custar mais de R$ 100 mil. Para pacientes ouvidos pelo Jornal da
Unicamp, o trabalho representa “esperança”, porque nem sempre é possível
recolocar o “pedaço” de crânio retirado quando da ocorrência de um trauma
cerebral.

“A nossa ideia é desenvolver um produto para ser
utilizado no SUS [Sistema Único de Saúde]”, afirma a professora Cecília
Zavaglia, do Departamento de Engenharia de Materiais da Faculdade de Engenharia
Mecânica (FEM), vice-coordenadora do Biofabris. A técnica desenvolvida para a
produção das próteses craniofaciais poderá ser replicada para qualquer osso do
corpo humano. Além disso, as pesquisas realizadas no Biofabris podem resultar na
descoberta de novos biomateriais (de origem natural ou sintética, usado para a
substituição, por qualquer período de tempo, de tecido, órgão ou função do
corpo), novas próteses e implantes, assim como no desenvolvimento de máquinas
para a produção das peças, entre outras inovações.


SOB MEDIDA

A matéria-prima das peças cranianas é uma liga à base
de titânio, um elemento metálico leve e resistente, muito empregado em próteses
ortopédicas e odontológicas. “Decidimos desenvolver uma prótese customizada, ou
seja, com as dimensões precisas, fiéis à falha existente no paciente, e com um
material leve e resistente o suficiente para preencher uma falha óssea de larga
escala”, explica André Jardini, da Faculdade de Engenharia Química (FEQ),
pesquisador sênior do Biofabris.

Os primeiros anos da pesquisa foram dedicados à
construção da prótese customizada, projetada para adaptar-se à deformidade
existente, garantindo, ao mesmo tempo, a recuperação da aparência estética e a
funcionalidade perdida – a proteção do cérebro. “A preocupação do Biofabris não
foi simplesmente construir algo, de metal, que se encaixe aqui [mostrando modelo
de um crânio humano], mas verificar o que pode ser melhorado na integração, que
seja compatível e que favoreça o crescimento celular. Além disso, a escolha do
titânio não foi aleatória, porque o material já vem sendo usado há certo tempo
na área médica”, afirma o médico Paulo Kharmandayan, representante da FCM no
projeto.

O processo de fabricação começa com a realização de
exames em um tomógrafo (foto 1), capaz de construir, de forma não invasiva, em
imagens (2D), a área do crânio a ser reparada, por meio de milhares de fatias
captadas a cada milímetro “fotografado”. Essas informações são inseridas no
programa “InVesalius”, desenvolvido pelo CTI Renato Archer, centro de pesquisa
parceiro do Biofabris, que ajuda a reconstruir em “3D” o crânio do paciente
(foto 2) – praticamente uma escultura digital. Nessa etapa, comparando o lado
sadio com a parte afetada, os pesquisadores conseguem criar uma prótese com
dimensão e formato mais adequados, preservando a aparência e recuperando a
função original de proteção ao cérebro.

A partir desse modelo virtual da “cabeça” do
paciente, são feitos um crânio-modelo (foto 3) e uma prótese, em polímero, com o
apoio de uma impressora “3D” (prototipagem rápida), um equipamento capaz de
produzir um modelo tridimensional por meio de sucessivas camadas de material.
Esses dois moldes são usados pela equipe médica para avaliação da peça e para o
planejamento do procedimento operatório, o que ajuda a reduzir o tempo da
operação e evitar eventuais complicadores, como potenciais dificuldades para a
fixação da peça.

Como comparação, a técnica convencional, e mais
barata, de reparação de deformidades cranianas exige que a prótese seja modelada
à mão pelo médico, durante a cirurgia, sem o mesmo suporte tecnológico e a
precisão possibilitada pelo computador. Os dois resultados finais são
diferentes. A prótese do Biofabris respeita a anatomia do crânio, o mais perto
possível das dimensões e formatos da parte óssea perdida. Um dos pacientes já
operados na Unicamp, por exemplo, apresentava ausência de uma área de 15 por 12
centímetros, área equivalente à de dois celulares posicionados um ao lado do
outro.

Não é uma tarefa simples produzir a prótese. Isso
porque o crânio não é simétrico. Os lados parecem iguais, mas não são e isso
exige que os projetistas realizem uma série de ajustes para o encaixe perfeito.
“Não é somente um problema de estética, mas também de segurança para o
paciente”, destaca a professora Cecília Zavaglia. Ao ser implantada, a peça fica
apoiada nas bordas de osso da deformidade craniana.

Aprovado o protótipo pelos engenheiros e médicos da
equipe, começa a produção em um equipamento denominado “Sinterização Direta de
Metais por Laser” (foto 4). A Unicamp foi a primeira instituição de ensino e
pesquisa do hemisfério sul a receber uma máquina desse tipo. Na prática, permite
“esculpir a prótese com titânio em pó”, ou melhor, camada por camada, irradiada
por laser, surge o modelo definitivo da prótese craniada, construído com o metal
fundido. Após essa etapa, a prótese de titânio (foto 5) passa por um
pós-tratamento da superfície, limpeza e esterilização no Laboratório de
Tratamento e Funcionalização de Superfície Instituto de Física (IFGW) da
Unicamp, coordenado pelo físico Carlos Sales Lambert.

O último passo é a cirurgia para implantar a prótese.
“A avaliação clínica é importante porque ajudará a avaliar o que foi feito até o
momento, como atendemos as necessidades do cirurgião, se a escolha do material
foi a mais adequada, o que precisamos fazer para que ocorra uma melhor
osteointegração [entre o osso e a peça de metal] e se a técnica de produção foi
a mais adequada”, avalia Rubens Maciel Filho.


Cirurgia encerra ciclo de limitações, dores e isolamento para pacientes

“Não vejo a hora de ficar livre deste boné”, explica
Marcelo Magno, 28, técnico em prótese dentária. Há mais de dois anos, essa peça
o ajuda a esconder uma sequela deixada por um grave acidente com moto ocorrido
em Natal (RN), em 2011. Era uma tarde de sábado. Num momento, estava com amigos,
no outro, internado em estado grave. Há dois meses, ele convive com uma nova
prótese de titânio implantada do lado direito da cabeça, fabricada sob medida
pelo Laboratório Biofabris, e espera o cabelo crescer um pouco mais, o
suficiente para esconder completamente a cicatriz, para recomeçar de vez outra
etapa de vida.

A emoção é visível em seu rosto enquanto reconta a
trajetória de incertezas e fala das dores que sentia, ao final do dia, resultado
de ações simples do dia a dia como falar. “Agora, é como se tivesse o crânio de
volta. Há momentos que esqueço que uso [a próteses]”, explica, ao responder o
que mudou em sua vida depois da cirurgia. Foram três cirurgias até aqui: uma,
logo após o acidente, que resultou na abertura da caixa craniana para salvar sua
vida; outra, para colocar uma prótese comum (que não se adaptou bem ao tamanho
da deformidade); e a última realizada há dois meses na Unicamp.

A família já estava vendendo a casa para buscar uma
alternativa capaz de ajudá-lo a recuperar-se de vez do acidente, quando ele, em
pesquisa na internet, descobriu a pesquisa que estava sendo realizada no
Biofabris. “Eu estava focando no meu tratamento. Se existisse como fazê-lo, eu
faria”, recorda. “Quando estava me recuperando da última cirurgia, dois dias
depois, minha tia estava me ajudando a tirar as faixas, ainda estava careca, mas
vi a circunferência da cabeça e tive inúmeras ideias, de passear, sair de casa”,
afirma, aliviado, ao falar do isolamento vivido desde o acidente. O boné, agora,
deve ser guardado para dias de sol.

Essa sensação de alívio é a mesma de outro paciente
já operado, Leandro Margoto de Oliveira, 22, inspetor de alunos em Vargem Grande
do Sul (SP). Aos 15 anos, ele sofreu um grave acidente de bicicleta, ficou
internado em coma, quase sem esperanças de sobreviver. “Ele saiu da minha cidade
praticamente sem vida”, recorda a mãe dele, Maria Auxiliadora Margoto.

Foram três diferentes cirurgias ao longo de sete anos
antes de receber a prótese de titânio. Os médicos tentaram preservar a placa de
osso retirada do crânio, mas não houve sucesso no procedimento – o material,
colocado no abdômen dele, deteriorou-se e não pôde ser aproveitado. Outra placa
produzida em um tipo de polímero também não conseguiu reparar a região. “Agora,
quando falo do acidente, dizem que não saberiam dele se não tivesse falado”,
explica, ao lembrar-se que precisava responder, diariamente, a inúmeras
perguntas sobre sua aparência.

De um garoto esportista e dedicado aos estudos,
Margoto tornou-se um jovem em reabilitação, para recuperar os movimentos, a
capacidade de memória, a aparência e a vida. Com o apoio da família, continuou
estudando, faz faculdade de direito e, no mês que vem, completará um ano depois
da cirurgia que reparou a deformidade craniana. O cabelo cresceu e, de fato, não
se percebe a prótese. Os movimentos e a memória já voltaram.

Como resultado da cirurgia, retomou a natação e
descreve com alegria a possibilidade de nadar e mergulhar sem sentir as dores
que antes o incomodavam por causa de deformidade. “A autoestima é tudo. Ele está
muito feliz agora”, afirma a mãe dele.


Pesquisa pode ajudar indústria e facilitar o acesso a próteses

Quem desenvolve, não ensina, vende. Essa é tônica do
mercado mundial quando se trata de alta tecnologia. Em Campinas, pesquisadores
do Biofabris encontraram investimento para a aquisição de equipamentos de última
geração, mas tiveram de percorrer todo o processo para projetar, construir e
implantar próteses cranianas. O que isso representa para o país? Algo
imensurável, porque esse conhecimento, o domínio e o registro científico de todo
o processo, irá facilitar a obtenção de licenças obrigatórias para a
comercialização desse tipo de produto, como a emitida pela Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa), e favorecer o surgimento de uma indústria
nacional capaz de suprir a demanda de pacientes no país.

A
avaliação é dos pesquisadores que trabalham com o projeto. “O objetivo do
instituto [Biofabris] é potencializar o desenvolvimento de tecnologia e
conhecimento, além de difundir no meio brasileiro o conhecimento e as condições
de fabricação”, afirma o médico Paulo Kharmandayan, representante da Faculdade
de Ciências Médicas da Unicamp no projeto. Ou seja, toda a tecnologia e
conhecimento agregada pelo estudo será brasileira.

 “Para
cada dificuldade encontrada, e o instituto já tem quase cinco anos,
desenvolvemos soluções brasileiras, para todas as etapas do processo.
Eventualmente, no futuro, poderemos até construir máquinas, desenvolver novos
materiais, dar início a um novo segmento industrial”, avalia Rubens Maciel
Filho, coordenador do Biofabris.

Graças
ao caráter multidisciplinar e à participação de várias instituições de pesquisa
do país, o Biofabris é um grande laboratório para múltiplas pesquisas, de
doutorado e mestrado, que ajudam a aprimorar os projetos em andamento. Novos
biomateriais, técnicas e empregos têm sido desenvolvidos na sede da unidade, no
campus da Unicamp, em Campinas.

Apenas em relação a próteses, para se ter uma ideia
do potencial a ser incentivado nessa área, existem hoje no Brasil menos de mil
empresas que produzem órteses e próteses, segundo a Associação Brasileira de
Ortopedia Técnica (Abotec), para um contingente de 25 milhões de brasileiros que
precisam delas. Na Alemanha existem três vezes mais empresas.


Fique por dentro


Biofabris

É um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em
Biofabricação, de caráter multidisciplinar, que tem como objetivo a integração
de ferramentas computacionais, síntese e desenvolvimento de novos biomateriais,
e aplicação de técnicas de engenharia para obtenção de dispositivos biomédicos
(próteses e órteses) e de substitutos biológicos para tecidos vivos ou órgãos
humanos defeituosos ou faltantes.


Parceiros na pesquisa

Unicamp (FEQ, FCM, FEM e IF); Universidade de São
Paulo (USP); Universidade Federal de São Paulo (Unifesp); Instituto de Pesquisas
Nucleares (Ipen); Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer (CTI);
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS); Instituto Nacional de Tecnologia (INT); Instituto
Federal de Ensino, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES); Instituto
Militar de Engenharia (IME); Universidade Federal do Pará (UFPA); Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp)


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