Revista Época,
, 14/01/2041 – 22:15 – ATUALIZADO EM 14/01/2011
– 23:29
Mãe
durona cria melhor os filhos?
Uma
advogada sino-americana defende a disciplina
férrea na criação dos filhos
– e provoca reações iradas de
mães do mundo
inteiro. Até que ponto ela tem razão
LETÍCIA SORG E
CAMILA
GUIMARÃES. COM BRUNO FERRARI
Bons
pais acreditam que: “1) as
tarefas de escola sempre vêm em primeiro lugar; 2) 9
é uma nota ruim; 3) seus
filhos precisam estar dois anos à frente de seus colegas de
classe em
matemática; 4) não se deve nunca elogiar seu
filho em público; 5) se seu filho
discordar de um professor, você deve ficar sempre do lado do
professor; 6) seus
filhos devem ser autorizados a fazer apenas atividades em que algum dia
possam
ganhar uma medalha; e 7) essa medalha tem de ser de ouro”.Ao
defender a criação
dos filhos
usando regras como as descritas acima, em seu livro Battle
hymn of the tiger mother (Hino de batalha da mãe tigre),
lançado na semana
passada, a americana de origem chinesa Amy Chua deflagrou um debate
apelidado
de “guerra mundial de mães” na internet.
Não
é exagero falar em guerra: Amy –
uma professora da Universidade Yale e autora de aclamados livros de
Direito
Internacional – chegou a receber mensagens intimidadoras e
até ameaças de morte
depois que o Wall
Street Journalpublicou, no dia
8, um artigo sobre
seu livro. Intitulado “Por que as mães chinesas
são superiores”, o texto narra
parte da experiência de Amy na criação
ao “estilo chinês” das filhas, Sophia e
Louisa, hoje com 18 e 14 anos.
“Muitas
pessoas se perguntam como os
pais chineses criam crianças tão bem-sucedidas.
Como esses pais fazem para
produzir tantos gênios da matemática e
prodígios da música. Posso dizer porque
criei dois deles”, diz Amy no artigo. Alunas exemplares, com
notas máxi-mas de
cabo a rabo no boletim, Sophia e Louisa ainda tocam, respectivamente,
piano e
violino. O sucesso, segundo a mãe tigre, começa
com a disciplina. As filhas de
Amy não podem: ver TV ou brincar no computador, dormir na
casa de amigos,
participar das peças de teatro da escola ou escolher que
atividades extracurriculares
querem fazer. E devem: ser a primeira aluna da classe em todas as
matérias e
praticar horas de piano ou violino todos os dias, inclusive nas
férias.
TIGRESA
Amy
Chua e as filhas Sophia (ao
piano) e Louisa. Alunas
exemplares graças ao “estilo
chinês” de criação
Se
as regras rígidas de Amy já
causam, no mínimo, estranheza, o episódio em que
ela chama a filha de “lixo”
por desrespeitá-la gerou horror entre milhares de pais, que
deixaram mais de 5
mil comentários até a sexta-feira no site
do Wall Street Journal.
O
sentimento de ultraje pode explicar por que Amy se tornou um dos
assuntos mais
comentados na internet – mas não o gigantesco
interesse por seu livro, que
bastou ser lançado para entrar na lista dos mais vendidos da
livraria virtual
Amazon. É provável que muitos pais tenham
comprado seus exemplares porque o
“estilo chinês”, de autoridade absoluta
dos pais, provoca uma reflexão sobre
qual é a melhor forma de criar nossos filhos. E isso vale de
forma especial
para os brasileiros.
Livro
A
JORNADA
DA MÂE TIGRE
Amy
Chua sempre apontou as falhas da educação
ocidental. Com suas
filhas, descobriu os limites da criação oriental
Filha
de imigrantes
chineses, Amy Chua, advogada e professora da Universidade Yale, cresceu
seguindo regras muito rígidas e nunca viu isso como um
problema. Ao contrário:
diz que seus pais são sua fonte de força
até hoje. Por isso, não hesitou em
replicar com suas filhas, Sophia e Louisa, hoje com 18 e 14 anos, a
educação
que recebera. Ela também tinha outra razão para
adotar o “estilo chinês”: via
falhas na educação ocidental, como a falta de
disciplina e de cobrança. Em seu
livro, Battle hymn of
the tiger mother (Hino de batalha da mãe tigre),
lançado na semana passada nos Estados Unidos, Amy critica o
que considera
permissividade dos pais ocidentais e conta histórias de
disciplina oriental que
podem soar chocantes. Quase todas as críticas e os
episódios mais controversos
estão concentrados no artigo publicado pelo The
Wall Street Journal e
explicam a imensa controvérsia que o texto gerou na
internet. Mas o livro de
Amy não é a apologia do “estilo
chinês”. Está mais para as
memórias de uma mãe
comum – com suas alegrias, vitórias, seus erros e
mágoas. “Tenho muitos
arrependimentos. Gostaria de não ter sido tão
dura. Gostaria de não ter perdido
a paciência tantas vezes. Gostaria de ter prestado mais
atenção mais cedo às
personalidades de minhas filhas. Talvez ter dado a elas um pouco mais
de
escolha”, diz.
“O
que observamos hoje no Brasil é
uma libertinagem na educação: os pais perderam a
mão na hora de cobrar”, afirma
Quézia Bombonatto, presidente da
Associação Brasileira de Psicopedagogia.
Segundo ela, filhos de pais pouco exigentes podem não
aprender a superar
dificuldades e lidar com frustrações –
habilidades fundamentais na sociedade
competitiva em que vivemos. “Um ponto positivo da
mãe chinesa é que ela
acredita no que faz e, nas últimas décadas, os
pais perderam essa segurança.”
A
história a seguir é um exemplo da
firmeza da mãe tigre para ensinar sua filha mais nova,
Louisa, a Lulu, a tocar
uma música difícil no piano. Lulu tinha cerca de
7 anos, ainda estava tocando
dois instrumentos, piano e violino, e estudava uma música
que exigia ritmos
diferentes em cada uma das mãos. Amy trabalhou com Lulu sem
parar por uma
semana, sem sucesso, até a garota declarar que havia
desistido. As duas
brigaram, e Lulu rasgou a partitura. Amy a colou e a pôs num
plástico, para
evitar que a filha a rasgasse de novo. Passou a usar ameaças
diversas,
inclusive doar seus brinquedos. Não adiantou.
“Quando ela continuou tocando a
música errado, eu lhe disse para parar de ser
preguiçosa, covarde,
autoindulgente e patética.”
Nesse
ponto, Jed Rubenfeld, o marido de
Amy, de origem judaica, questionou se os insultos e as
ameaças ajudariam Lulu a
tocar. Talvez ela apenas ainda não tivesse
coordenação suficiente para aquela
música. Amy disse que acreditava na filha e não
desistiria. “Estou disposta a
dedicar tanto tempo quanto for necessário.”
Depois
de longas horas de exercícios
e brigas, como por mágica Lulu de repente conseguiu tocar a
peça. “Mamãe, olhe
– é fácil!” E não
queria mais sair do piano. “Naquela noite, Lulu veio dormir
na minha cama, e nos aconchegamos e nos abraçamos, apertando
uma à outra”, diz
Amy. “Como pai, uma das piores coisas que você pode
fazer para a autoestima de
seu filho é deixá-lo desistir.”
É
fácil condenar a rigidez excessiva
de Amy. Mas quantos pais estão dispostos a dedicar horas
para ajudar o filho a
aprender algo? Será correto diminuir a cobrança
por medo de ferir a autoestima
das crianças? Deixar o filho desistir depois das primeiras
tentativas? Ao falar
de sua família, Amy tocou em alguns dos problemas mais
comuns da educação
ocidental de hoje: a falta de disciplina, a falta de comprometimento
dos pais
com as atividades dos filhos e o medo de que cobranças
destruam a autoestima
das crianças. Qual é o ponto de
equilíbrio entre essas duas formas de
criação?
Um
estudo da Universidade Brigham
Young publicado no ano passado sugere que ser estrito demais
é quase tão
prejudicial quanto ser permissivo. Uma pesquisa s com 5 mil
adolescentes entre
12 e 19 anos mostrou que os jovens criados por pais indulgentes, com
poucas
regras e muito carinho, tinham três vezes mais chances de
abusar das bebidas
alcoólicas – tomar cinco ou mais drinques de uma
vez. Entre os adolescentes
criados com muitas regras e pouco carinho, o risco era quase
tão grande (pouco
mais do dobro).
A
dentista paulistana Ana Cristina
Bretones, mãe de Beatriz, de 15 anos, e Gabriel, de 14, sabe
que é impossível
garantir o sucesso dos filhos, mas tenta facilitar o caminho deles ao
estabelecer como prioridades a escola e o inglês.
“Não abro mão do bom desempenho
e da dedicação nesses dois quesitos”,
diz. “Isso não significa tirar 10 em
tudo, mas deixar claro que fizeram o melhor que podiam e que
estão melhorando
sempre. A Beatriz já tirou 7 em uma prova. Não
é uma nota alta, mas foi a
melhor da turma – a prova tinha sido difícil e
seus colegas tiraram 2 e 3. É o
desempenho que espero e cobro deles.”
Os
dois adolescentes não têm horário
fixo de estudo, mas devem terminar todas as tarefas escolares no mesmo
dia que
as recebem. Sábado também é dia letivo
para a família – tem revisão das
matérias da escola e do inglês. Eles podem
escolher as atividades
extracurriculares, mas, depois de fazer a escolha, não podem
mudar de ideia.
Beatriz fez flauta e Gabriel violão por quatro anos.
Computador e TV, só no
tempo livre que restar. “Sei o que quero para meus filhos
– acho que muitos
pais não sabem e, por isso, cedem. Meus filhos
também sabem que tudo o que faço
não é para hoje. O plano é que eles
consigam resolver seus problemas sozinhos.”
Ana
Cristina, assim como outras mães
de vários lugares do mundo, pode até se
reconhecer na sino-americana Amy Chua,
mas há pelo menos duas diferenças fundamentais
entre elas. A primeira é que Ana
deixou que os filhos escolhessem o que gostariam de fazer fora da
escola, Amy
impôs às filhas o piano e o violino. “A
criança deve ter liberdade para
escolher o que fazer”, afirma Zenita Guenther,
psicóloga e fundadora do Centro
para o Desenvolvimento do Potencial e Talento de Lavras, em Minas
Gerais. “O
compromisso deve ser praticar a atividade por certo período,
antes de mudar.”
Nesse ponto, os especialistas concordam com Amy. Ela diz que nenhuma
tarefa é
divertida até que você seja bom nela. Por isso,
faz sentido vencer a
resistência inicial dos filhos.
DISCIPLINA Ana “Antes |
QUEM Silvio “Tenho |
A
segunda diferença entre as duas
mães é que Ana cobra seus filhos a partir do
empenho deles nos estudos, e não
das notas do boletim. A busca exagerada pela excelência pode
ter efeitos
negativos. Segundo o Centro de Controle e
Prevenção de Doenças dos Estados
Unidos, o risco de suicídio é mais alto entre
americanos de origem asiática.
Acredita-se que um dos fatores envolvidos no problema é a
pressão excessiva dos
pais sobre os filhos por desempenho. Embora não haja
estatísticas sobre o
problema no Brasil, a psicopedagoga Quézia Bombonatto
já atendeu uma menina de
origem chinesa que, aos 12 anos, precisou tratar uma úlcera
nervosa. Ela se
dividia entre a escola, onde precisava tirar mais de 8 sempre, e as
aulas de
violino, dança, inglês e mandarim.
Histórias
parecidas, de crianças
levadas ao limite do que podem suportar, não são
incomuns entre famílias
orientais mais rígidas, embora possam acontecer em qualquer
lugar do mundo e
com outras culturas. A vida do pianista chinês Lang Lang
é um exemplo disso.
Considerado um prodígio, Lang começou a estudar
piano aos 2 anos. Aos 9,
mudou-se com o pai, Lang Guoren, para Pequim. Os dois moravam em uma
quitinete
de 10 metros quadrados sem aquecimento e infestada por ratos: o
sacrifício para
que Lang tivesse professores melhores.
Ainda
criança, Lang não tinha espaço
para distração. Um dia, depois de chegar atrasado
em casa, levou uma bronca do
pai: “Você perdeu quase duas horas de
prática, e nunca as terá de volta. É
tarde demais para tudo! Está tudo arruinado!”. O
filho até tentou se explicar,
mas foi chamado de preguiçoso, mentiroso e ouviu do pai:
“Você não tem razão
para viver”. Chorando, Lang começou a dar socos
tão fortes na parede que suas
mãos começaram a sangrar. Só
então o pai percebeu que havia passado dos limites.
Pediu descul-pas, beijou as mãos do filho e disse:
“Só quero que você estude
piano”. O efeito, é claro, foi o
contrário: Lang parou de tocar por vários
meses. Por pouco a música não perdeu seu talento.
“Para
cada violinista de sucesso, que
só chegou lá pelo autoritarismo do pai, quantos
não desistiram ou passaram a
odiar violino?”, questiona o psicanalista Bernardo Tanis. Foi
o que aconteceu
com a irmã do advogado Silvio Rodrigues, de São
Paulo. “Lembro-me do exemplo de
s minha irmã mais velha: ela foi a única que
estudou em conservatório de
música, para aprender piano. Hoje, não consegue
nem chegar perto de um”, diz.
“Meu irmão e eu, que não tivemos o
aprendizado como uma obrigação, gostamos de
tocar.”
A
consciência dos efeitos negativos
do autoritarismo levou Silvio e sua mulher, Larissa, a optar por outro
caminho
na educação dos filhos, Beatriz e Victor, de 7 e
5 anos. “O pai tem de ter a
postura de orientador, e não de alguém que se
limite a dar ordens, criar regras
e fazer o filho cumpri-las”, diz Silvio. “A
única regra mais rígida é o sono,
não por uma questão de disciplina, mas de
saúde.”
Apesar
de ter vários instrumentos
musicais em casa, Silvio não obrigou seus filhos a praticar
nenhum. O mais novo
gostou de natação. A mais velha desistiu da
natação, tentou o balé e agora
está
interessada em fazer ginástica olímpica.
“Se ela desistir, vamos ver o que ela
quer fazer. Não posso obrigá-la a entrar em um
curso e seguir até o final”,
afirma Silvio.
Para
Léa Fagundes, psicóloga e
professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, experimentar e
interagir faz parte do aprendizado das crianças e ser muito
rígido é
prejudicial à criatividade e à
expressão artística dos filhos. “As
regras
impostas são exter-nas, não consideram as
vontades e os sonhos dos filhos”, diz
Léa. “Ninguém aguenta tanta
frustração – e acaba desrespeitando a
regra por
baixo dos panos em algum momento.”
Entre
a rigidez da mãe chinesa e a
libertinagem, está a arte de saber o momento de ceder ou
negociar as regras. “A
hora de ceder é quando percebemos que eles estão
conscientes e têm maturidade
para responder por seus erros”, diz Mariana Malzoni Dias,
mãe de Felipe, de 9
anos. O garoto tem um game portátil que usa apenas no carro
e gostava de levar
todas as fitinhas consigo. A mãe pediu que ele carregasse
apenas uma ou duas.
Ele insistiu, e ela cedeu – com a
condição de que ele se responsabilizasse pelo
que acontecesse. Meses depois, Felipe deu pela falta de duas de suas
fitas
favoritas. “Ele entendeu, nunca me pediu que as repusesse e
agora anda com
apenas uma fitinha”, diz Mariana.
SACRIFÍCIO
O
chinês Lang Lang,
em uma apresentação em Berlim. Seu pai o obrigava
a estudar – mas sua rigidez
quase o fez desistir
Mesmo
a inflexível mãe chinesa cedeu.
Quando tinha 13 anos, Louisa, a filha mais nova de Amy Chua,
não aguentava mais
praticar violino por horas a fio sob o olhar rigoroso da
mãe. Queria treinar
tênis, mas a mãe não deixava. Numa
viagem de férias com a família à
Rússia,
durante uma briga, a adolescente espatifou um copo no chão
do hotel aos gritos:
“Eu odeio você! Você é uma
péssima mãe! Você não me
ama!”.
A
personalidade forte de Louisa e a
chegada da adolescência – e do desejo de autonomia
– forçaram Amy a rever seus
limites. “Eu não podia perder Lulu. Nada era mais
importante do que ela. Então
fiz a coisa mais ocidental que posso imaginar: dei a escolha a ela.
Disse que
podia parar de estudar violino se quisesse e fazer o que gostasse no
lugar.”
Assim
como a mãe chinesa considera
uma grande concessão dar liberdade de escolha à
filha, muitos pais ocidentais
acham cruel impor disciplina. “Muitos hoje beiram a
negligência e se sentem
‘maus’ por cobrar”, afirma o psiquiatra
Içami Tiba, autor de vários livros
sobre educação. “Cobrar é
uma demonstração maior de afeto do que permitir
tudo,
porque exige mais esforço e mais sacrifício dos
pais”, diz a psicopedagoga
Quézia Bombonatto. Não se trata apenas da
oposição simplista entre criar filhos
para ser felizes ou bem-sucedidos. Trata-se do dilema de pensar em seu
bem-estar de longo prazo, sem estragar sua felicidade no curto
prazo.
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