Folha de
São Paulo, Ilustríssima, domingo, 08 de julho de
2012

ARQUIVO
ABERTO

MEMÓRIAS
QUE VIRAM HISTÓRIAS

O
começo de tudo
LAERTE
COUTINHO

São Paulo, anos 60

De 66 a 68, frequentei o
curso de desenho e pintura para adolescentes da
Fundação Álvares Penteado.

O prédio eternamente
inacabado, as colunas meio egípcias, as escadarias que
percorriam o caixotão
arquitetônico por dentro e por fora -não existia
ainda a faculdade, e parecia
que éramos os únicos habitantes vivos em todas as
salas, corredores e espaços
misteriosos.

Entrei porque queria
pintar. Até então, aos 14, eu só
respeitava a pintura figurativa, de
preferência a feita até o século 19.
Meu ídolo era Norman Rockwell, o mestre
americano hiper-realista, o exato espírito da
“Seleções” do Reader”s
Digest. (Estou sendo injusto e sumário: ainda gosto dele,
mas, na época, era
dogma incontestável.)

No primeiro dia, a
professora Sonia Maria Paula e Silva me disse para criar com o material
que
estava sobre a mesa. Fiz uma paisagem de praia, do jeito mais erudito
que
consegui. Tive má impressão do material
-provavelmente ambicionava tubos de
óleo e pincéis finos. A pintura
ficou guardada.

Ao longo das aulas, aprendi
técnicas -desenho a carvão, a lápis,
com número determinado ou livre de cores-,
me exercitei com modelos de objetos e vivos, conheci outros usos da cor
e do
desenho.

Comecei a tomar gosto por
vermelhões, amarelos, azuis intensos. Aprendi a fazer guache
misturando o pó do
pigmento com água e cola. Adorava o cheiro dessa tinta,
adorava espalhá-la em
grandes pinceladas sobre folhas enormes de papel barato. Aprendi
técnicas de
gravura em metal e em madeira.

Meses depois, a Sonia me
fez comparar o que eu estava produzindo com aquela minha primeira
praia.
Percebi que coisas tinham se mexido dentro de mim, que a ordem nunca
mais ia
ser a mesma.

Aí entrou teatro
-não sabia
que ia ter. Era opcional, mas resolvi fazer, meu primo Guilherme estava
fazendo. Quem dava aulas era o Naum Alves de Souza.

Fui incluído na
montagem de
“Os Irmãos das Almas”, de Martins Pena, como um soldado que
vai
prender alguém. Não fiz
questão de saber o contexto (como um soldado,
enfim). Minha mãe ajudou no
figurino.

Para a peça
seguinte, Naum
propôs um passo mais ambicioso. Eu tinha visto “Arena Conta
Zumbi”,
“Morte e Vida Severina”, e era essa minha ideia de bom teatro: jeans,
tênis e abrigo da Hering para todos; despojamento em cena e
conscientização
para o público. O grupo quis outro caminho, ufa!

Naum sugeriu que
partíssemos do Evangelho segundo São Mateus. A
base seria uma montagem da
Paixão feita por um circo. Haveria cenas a partir da nossa
experiência com
religião.

Foi como descobrir um
continente. Pus-me a trabalhar nas canções, agora
livre da inspiração
edu-lobiana, em direção mais colorida. Havia
cenas divertidas, densas,
trágicas. Coreografias, cenários,
tudo fruto do nosso ventre.

A peça seguinte, uma
montagem musical da história do Fausto, foi o auge da
experiência do grupo, com
inspiração art nouveau misturada a elementos
circenses.

O teatro invadia o
espaço
das aulas de pintura e nossos dias fora da
fundação -fazíamos cartazes,
material cênico, buttons, brincos, bonecos. Aprendi a criar
bijuterias com as
armações da 25 de março, papel duplex
e cola de PVA. Conservei um button feito
pelo Naum.

Naquele ano de 67, Caetano
e a Tropicália percorriam um caminho com o qual senti
afinidade: o da
abertura de todos os canais estéticos, dos cruzamentos
heterodoxos, da vontade
de tentar de tudo.

Nós nos
reuníamos, fazíamos
festas de fantasia, ouvíamos discos, musicais, sambas,
forrós, rock, canções de
todo tipo. Vou esquecer gente nessa lista: Guilherme, Célia
Eid, Bia Estrela,
Bel Machado, Alice Miele, Analu Prestes, Kita, Mira, Carlinhos, Carlos
Wagner,
Amália, Circe, John, Tacus, Toninho Falcão,
André Antunha.

Em 68, Naum se afastou e
Joana D”Arc Lopes veio dirigir a parte de teatro. Tinha boas
ideias, mas não
consegui me empolgar da mesma forma. O grupo (sem mim), depois de 68,
novamente
com Naum, gerou o Pod Minoga, já com
vocação para teatro
profissional.

Já eu entrei na USP,
para
fazer cinema, teatro ou música. Tranquei em 73, ao
começar a desenhar para a
imprensa.

Aqueles
três anos foram os mais importantes da minha vida, fundadores
do que vim a
fazer, em qualquer sentido.



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