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Folha de São Paulo, Mercado, quinta-feira, 28 de junho de 2012

MARION
STRECKER

Nós, os exibicionistas

Todos estão sozinhos com suas máquinas,
deixando as relações virtuais substituírem as reais

Prossigo em tratamento, tentando me curar do
vício e da intoxicação digital. Ser minha própria médica barateia o processo. No
bom e no mau sentido.

Li o livro de autoajuda de Daniel Sieberg
chamado "The Digital Diet". Comprei on-line. Consegui me apropriar de alguns
conselhos e minha produtividade aumentou. Mas não todo dia, porque tenho
recaídas.

Não toco no telefone quando estou dirigindo.
Proibi a entrada de aparelhos com acesso à internet no quarto de dormir. Agora
procuro não admitir o telefone sobre a mesa de refeições. Mas nem sempre
consigo. Quando estou acompanhada é mais fácil. O olhar dos outros me ajuda.
Quando estou sozinha é quase impossível. Deixo a comida esfriar e nem sinto o
sabor, entretida com algo alheio à refeição.

Nos cafés de San Francisco, como o Nook da
esquina, todos parecem se comportar como eu: todos estão sozinhos com suas
máquinas, cada um em sua mesa, deixando as relações virtuais substituírem as
relações reais. O que estaríamos fazendo, se não fosse a internet?

Imagino menos pessoas sozinhas nesses cafés, à
exceção dos escritores, claro. Acho que estaríamos espiando uns aos outros com
mais atenção. Espiaríamos pessoas de verdade, não os clones marqueteiros de si
mesmos que povoam o Facebook. Eu também tenho clones.

Nas últimas semanas, investi tempo cancelando
assinaturas de boletins por e-mail, alertas de notícias e de redes sociais.
Tentei reduzir ao essencial, mas confesso que esse essencial continua muito
inchado. Julgo pela minha angústia. Julgo também pelo meu fracasso em manter a
leitura dos e-mails em dia.

Desprezei o conselho de baixar softwares para
monitorar quanto tempo gasto com cada atividade on-line. Achei que usar mais
tecnologia para usar menos tecnologia seria um contrassenso. Mas admito que
outros possam se beneficiar com a estratégia.

A água vitaminada que tomo agora para me
hidratar neste deserto traz a seguinte mensagem. "Por que checamos e-mails e, um
minuto depois, checamos de novo? Por que a gente olha para o nosso telefone
celular sem nenhuma razão? Ele não vibrou nem tocou. Bem, enquanto você está
fazendo isso, por que não experimentar esta bebida? Ela contém cafeína para
ajudar o foco mental. Agora você pode tentar focar aquelas coisas que você
realmente quer focar, como por que foi mesmo que ela deixou de ser minha amiga
na internet?"

Também tenho me controlado para diminuir o
número de softwares e janelas abertos simultaneamente nos meus computadores.
Sim, tenho vários. Mas uma amiga escreveu perguntando onde estou, pois não tem
me visto muito "nas praças virtuais de costume". Achei bom: estou no caminho em
que quero estar.

Fui a um show no teatro "art déco" Paramount, na
cidade de Oakland. Dois fatos me chamaram a atenção. Plateia enorme, todos
sentados, exceto alguns que se levantaram para dançar sem sair do lugar. Ninguém
gritou "Senta!", como aconteceria no Brasil. Perguntei se isso era normal na
Califórnia e meu amigo respondeu que sim. Se alguém gritasse "Senta!", seria
fuzilado pelos olhares gerais. Dançar pode, gritar não. Fumar maconha pode,
cigarro não. Questão de hábito. Não estou criticando.

Outro fato que me chamou a atenção foi a luz dos
celulares em uso, cegando a visão de quem tentava ver o palco.

Esse comportamento, do qual estou tentando me
livrar sem conseguir, está se alastrando. A tentação de fazer e publicar uma
foto do show é enorme. Por que fazemos isso? Exibicionismo, só pode ser.

Na última semana, comecei a perceber que minha
compulsão por fotografar faz parte do meu quadro clínico.

Mas percebi também algo mais importante. Não sou
a única viciada em tecnologia aqui em casa.

Entrei no quarto da minha filha de 13 anos outra
noite e encontrei a garota cheia de fios debaixo das cobertas. Ela assistia pelo
Skype uma amiga do Brasil deitada igualmente em sua cama. Elas estavam tão
cansadas que mal balbuciavam de vez em quando. Era madrugada. Elas não queriam
se desligar.

MARION STRECKER é
jornalista, cofundadora e correspondente do UOL em San Francisco. Escreve às
quintas-feiras, a cada quatro semanas, neste espaço.


marionstrecker@gmail.com


@marionstrecker


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