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O Estado de São Paulo, 30 de julho de 2011 |
16h 18

O historiador do presente



Para ver de perto os fatos que julga históricos no próprio momento da erupção,
Garton Ash viaja aos lugares onde eles estão ocorrendo

Marcos Guterman, de O Estado de S. Paulo

O
britânico Timothy Garton Ash talvez seja hoje o principal historiador do "tempo
presente", isto é, dos acontecimentos que explodem diante de nossos olhos
contemporâneos e dos quais temos imensa dificuldade de captar a essência. É isso
o que Garton Ash tenta fazer, o que requer, antes de mais nada, enorme dose de
ousadia; afinal, a falta de distanciamento temporal é receita certa para erros
de avaliação. Mas Garton Ash é um historiador com irresistível tino
jornalístico: ele quer ver de perto os fatos que julga históricos no momento de
sua apoteose, razão pela qual viaja aos lugares onde as rupturas estão
ocorrendo. É um desafio: "Estar lá – no próprio lugar, no momento exato, com seu
notebook aberto – é um sonho inatingível para a maioria dos historiadores",
escreve Garton Ash em seu livro mais recente, Os Fatos São Subversivos
(Companhia das Letras), que saiu no Brasil no começo de julho. Sua missão
autoimposta é, como ele mesmo diz, "descobrir os fatos", esses elementos que
"subvertem mentiras, meias verdades, mitos e todos aqueles discursos fáceis que
confortam homens cruéis". Trata-se, portanto, de um historiador que não aceita a
relativização pós-moderna, aquela que insiste em desmoralizar os fatos. Nesta
entrevista, Garton Ash, também colaborador do Estado, reiterou sua defesa da
busca do interesse público na atividade jornalística e histórica, comentou sobre
as revoluções que testemunhou, comparando-as com as rebeliões no mundo árabe, e
avaliou a crise na Europa, o centro de seus 30 anos de trabalho. Para ele, "não
podemos simplesmente deixar o euro acabar".

A
salvação do euro

"Há uma
famosa frase de um sujeito que visitava a Irlanda e parou numa encruzilhada. Ele
perguntou o caminho a um morador, que respondeu: ‘Não importa o destino; se eu
fosse o senhor, apenas não pararia por aqui’. Obviamente nós, europeus, não
podemos parar aqui, no sentido de que a União Europeia é muito grande para isso.
Muitos dizem que a União Europeia é um frankenstein, que deveria ser menor e ter
somente economias compatíveis, a maioria do norte da Europa. Mas é aqui que
estamos, e o fato é que não podemos simplesmente deixar o euro acabar, porque
teríamos um efeito dominó imediato. De onde estamos, parece claro que temos de
salvar o euro como ele é. E isso significa que os alemães e outras economias
ricas devem se envolver mais, os gregos e portugueses terão de apertar o cinto,
os investidores privados terão de entrar com sua pequena parte e os países ricos
terão de ter mais solidariedade. Depois dos acordos das últimas semanas, as
chances de sobrevivência do euro melhoraram, mas definitivamente a moeda ainda
está em perigo, porque, como todos sabemos, os mercados são a grande força,
difícil de resistir. Estão à frente dos mais poderosos Estados, agindo em
uníssono. Podemos resistir aos mercados?


Fragilidade política europeia

"Acho que
a resposta do mundo político europeu à crise foi inacreditavelmente fraca. No
meu livro, eu relato o crescente pessimismo sobre o futuro da União Europeia, um
dos mais extraordinários projetos de política internacional de nosso tempo. Esse
cenário foi criado justamente pela fraqueza política. A Alemanha é chave para a
solução, mas a primeira-ministra Angela Merkel, até agora, liderou somente dos
bastidores, preocupada com a opinião pública alemã. Ela é uma política
brilhante, é muito boa em ganhar eleições, mas às vezes é preciso liderar pela
frente, contra os ventos das pesquisas.


Revoluções e democracia

"Há um
grande paralelo entre as revoluções na Europa a partir do final dos anos 80 e as
revoltas no mundo árabe. No mundo árabe tivemos rebeliões espontâneas, muito
impressionantes, em vários lugares. Duas delas, no Egito e na Tunísia,
derrubaram o antigo regime virtualmente sem violência. Isso é revolução. Isso é
1989. Isso é fantástico, é inspirador. O que vem depois disso é outra questão,
porque, claro, o ponto inicial da maioria dos Estados árabes é muito pior do que
o dos Bálcãs, sem falar de Polônia e Hungria. Os Estados árabes não têm uma
Europa Ocidental rica, de braços abertos, para ajudá-los. De modo que, acredito,
o caminho árabe será mais longo e difícil. Embora não seja uma utopia pensar em
democracia na região, certamente o resultado não será uma Suíça.

A
revolução dos netos

"A
revolução vai acontecer no Irã também. O que está havendo no Oriente Médio é
diferente do que houve na Europa Oriental. Há um tsunami demográfico, que
consiste em 50% a 60% da população com menos de 30 anos. Eu falei com essas
pessoas, nas ruas do Cairo e no Irã também. E eles estão na internet, querem
emprego, que não têm, querem moradia, que não têm, querem casar – e em muitas
dessas sociedades você não pode casar se não tiver uma casa e um emprego. Há uma
grande e irresistível força que já derrubou vários desses regimes e vai derrubar
no Irã. Como eu disse no meu livro, a revolução não será dos filhos; será dos
netos.

O
modelo chinês como futuro

"Eu não
diria que, graças ao sucesso chinês, o mundo caminhe para aceitar formas menos
democráticas de organização política. O que eu acho é que, pela primeira vez
desde o fim do comunismo e do fim da Guerra Fria, temos um competidor ideológico
realmente sério. O terrorismo islâmico, que é uma grande ameaça a nossa
sociedade, não é um competidor ideológico, porque não tem o mesmo apelo para
dezenas de milhões de pessoas no Brasil, na Alemanha, na Grã-Bretanha, no
Canadá. Mas o ‘capitalismo autoritário’, como praticado na China, tem forte
apelo para muita gente no mundo em desenvolvimento, principalmente quando se vê
o capitalismo liberal, nos EUA e na Europa, envolvido em tamanha crise. Eu não
acredito que o ‘capitalismo autoritário’ de estilo chinês vá ganhar a disputa,
mas temos uma luta em curso, de modo semelhante à que tivemos ao longo do século
20.


‘Deuses da força’

"O
islamismo não é uma coisa única. O Islã envolve 1,5 bilhão de muçulmanos, e o
que eles fazem varia muito de país para país. Eu vivo num país, a Grã-Bretanha,
em que a maioria dos muçulmanos aceita o sistema político local. Não tenho
dúvida de que a maioria dos muçulmanos da Europa vá aceitar essa ordem. Mas
acredito que, nos países de maioria muçulmana, será um processo longo e
complicado. E suspeito que teremos de passar por um período no qual os velhos
regimes militares sejam derrubados, e então os muçulmanos moderados participem
do debate político. A coisa mais importante que temos a fazer é manter nossa
própria sociedade forte e vibrante, seja na Europa, seja nos EUA, seja no
Brasil. Dessa forma, os deuses da força vão fracassar.


Jornalismo e poder

"Eu
acredito piamente que os fatos sejam subversivos. No meu livro, dou o exemplo
das armas de destruição em massa de Saddam Hussein. Se soubéssemos a verdade
sobre essas armas, certamente não teríamos ido à guerra no Iraque. Aquilo teria
feito a diferença. Eu não falo da ‘Verdade’, com letra maiúscula, porque isso é
uma reivindicação muito mais ampla. A verdade tem vários aspectos, depende do
contexto, depende da narrativa, depende de pontos de vista. Os fatos são
geralmente sutis, mas, quando são conhecidos, eles afetam até o mais poderoso
dos homens. No escândalo de Rupert Murdoch, trata-se, em primeiro lugar, de um
caso em que um homem poderoso foi implicado por causa de fatos menores.


Regulação da mídia

"Em
termos de mídia, acho que é muito perigoso ter muita regulação jurídica por
parte do Estado. Porque isso significa, no final, que pessoas poderosas podem
esconder algo e que temos uma relação com a imprensa como se fosse adversária.
Mas precisamos de uma autorregulação muito melhor, um padrão jornalístico muito
melhor. O que tivemos na Grã-Bretanha até agora, nesse sentido, foi a Comissão
de Reclamações da Imprensa (Press Complaints Comission), que tem sido
absurdamente fraca, e isso é resultado, em grande medida, do fato de que a
grande mídia tem como controlá-la. A imprensa que desempenha sua necessária
função atende realmente ao interesse público. Mas há a imprensa que hostiliza,
que atende só ao interesse do público, de modo a vender anúncios. O interesse
público é genuíno, porque visa ao funcionamento saudável do Estado. Simplesmente
não há interesse público nenhum em saber da vida amorosa de Hugh Grant, mas
certamente há muito interesse do público em ler sobre isso, e o News of the Word
(tabloide sensacionalista que foi pivô do escândalo Murdoch) sabia bem o que o
público queria."

Categorias: História

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