Revista Época, 31/03/2011 – 10:56 – ATUALIZADO EM 01/04/2011 –
12:30
O som para todos os ouvidos
Um canadense criou uma das empresas mais inovadoras do Brasil: ela faz aparelhos
auditivos mais baratos, que usam energia solar
ALINE RIBEIRO
TECNOLOGIA SEM PATENTE
O canadense Howard Weinstein tem 60 anos e a empolgação de um adolescente de 12.
Falastrão, transita entre o português, o inglês e o francês na mesma conversa,
numa confusão quase incompreensível. Na semana passada, sua euforia tinha um
motivo profissional. Sua empresa, Solar Ear, entrou no ranking das dez
brasileiras mais inovadoras, feito pela revista americana Fast Company.
Estava ao lado de companhias como Azul, AmBev e Petrobras. A Solar Ear é a única
organização sem fins lucrativos na lista. Com poucos recursos, tem apenas 30
funcionários. E infraestrutura mínima. A despeito do tamanho, está conseguindo
um feito nobre (e inédito): dar aos surdos mais pobres do planeta a capacidade
de escutar – e estudar. “Minha missão é dar oportunidade de educação para as
crianças”, diz.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 300 milhões de pessoas no mundo
têm surdez total ou parcial. Mais de dois terços estão em países pobres, onde
sobram doenças e faltam antibióticos. O ritmo de fabricação dos aparelhos não
acompanha a demanda: são feitos apenas 8 milhões deles ao ano. Apenas 12% chegam
aos países menos abastados, e os que chegam custam caro. No Brasil, podem variar
de R$ 2 mil a R$ 15 mil. Sem contar o preço das pilhas: R$ 4 e duram só uma
semana. “Existem quatro tipos de aparelho: de usar atrás da orelha, dentro da
orelha, no canal do ouvido e de colocar na gaveta”, afirma Weinstein. “Alguns
pacientes até recebem o aparelho do governo, mas não têm dinheiro para comprar
bateria.”
O primeiro grande feito de Weinstein foi baixar o preço dos aparelhos. Seus
equipamentos custam um sétimo do preço mais barato nessa classe de aparelho, em
torno de R$ 300. O segundo salto está nos carregadores. Com a ajuda de
engenheiros da Universidade de São Paulo (USP) e financiamento da Fundação
Lemelson, uma organização filantrópica americana, e do Instituto Cefac, uma ONG
voltada a ações na área de saúde e educação, Weinstein criou um equipamento de
recarga solar. A engenhoca pode ser abastecida com a luz do sol ou energia
elétrica da rede. Ele estima que, por ano, o mecanismo vai evitar o descarte de
200 milhões de baterias no meio ambiente. O usuário também economiza. Se usar
pilhas convencionais, vai gastar R$ 210 ao ano. O kit da Solar Ear com baterias
e carregador custa R$ 95 – e dura até três anos.
Há alguns anos, a filantropia passava longe dos planos de Weinstein. Dono de uma
empresa de válvulas e torneiras, transformou seu negócio em algo tão lucrativo
que o vendeu para uma grande companhia americana. Permaneceu como presidente. No
começo dos anos 90, era um executivo de sucesso. Morava em um imóvel grande em
Montreal, no Canadá. Tinha uma casa de campo com lago e pista de esqui no
quintal. Era rico, mas diz que ainda buscava um sentido para a vida. Em uma
noite de 1995, perdeu o chão. A filha Sarah, então com 10 anos, sofreu um
aneurisma durante o sono e não acordou mais. Na semana seguinte, Weinstein foi
demitido. Os chefes acharam que ele não conseguiria trabalhar depois do trauma.
Tirou um ano de folga. Fez terapia. E abriu uma empresa de assentos sanitários
eletrônicos. Faliu. “Eu sentia um vazio grande dentro de mim”, afirma. “Queria
fazer algo para mudar a realidade.”
Em 2002, ele ouviu falar de um emprego para ajudar pessoas pobres na África. Sua
tarefa seria criar uma empresa para fornecer próteses auditivas a preços
acessíveis aos africanos parcialmente surdos. O salário era o equivalente a R$
1.000. Weinstein aceitou o convite imediatamente. Precisava reconstruir sua
história. Quando chegou a Botsuana, deparou com um escritório de sala única e
praticamente vazia, no vilarejo de Otse, com 5 mil habitantes. Havia um par de
cadeiras e nenhum funcionário. Certo dia, uma professora bateu em sua porta
segurando uma criança africana surda pela mão. Teria dito ao recém-chegado que
sua primeira missão ali era arrumar um aparelho auditivo para a menina. “Sabe
qual era o nome dela?”, ele diz. “Era Sarah, o nome da minha filha.” Ele diz ter
tomado a coincidência como um chamado. Meses depois, ao preencher um formulário
para Sarah, descobriu que ela nasceu no mesmo dia que a filha que ele perdeu.
Weinstein partiu do zero e montou uma empresa na África em 2002. De lá para cá,
já vendeu 15 mil aparelhos, 30 mil carregadores e 100 mil pilhas. Deficientes
auditivos de mais de 30 países usam suas invenções. Há sete anos, ele veio ao
Brasil pela primeira vez para falar sobre seu trabalho. Recém-separado, conheceu
uma brasileira, se apaixonou… e decidiu casar e vir para cá, replicar o modelo
africano. A versão brasileira da empresa africana abriu em 2009. Nenhuma de suas
invenções foi patenteada. “Quero mais é que as empresas copiem”, diz. “O poder
de distribuição seria muito maior do que jamais teremos.” Os funcionários da
linha de montagem são surdos. “Como praticam linguagem de sinais, eles têm mais
habilidades para manipular as peças pequenas”, diz Weinstein. Ele pretende
dobrar o número de funcionários nos próximos meses.
Weinstein se emociona ao lembrar de pessoas que ajudou. Victória Gabriela Reis,
de 10 anos, é uma delas. A menina nasceu com problemas de audição. Os médicos
diziam que ela era surda. À medida que cresceu, passou a detectar alguns sons,
como o barulho de um carro freando ou de panela caindo. A família não tinha
dinheiro para comprar um aparelho. Victória ganhou um do governo, mas perdeu-o
na escola. Ficou surda de novo durante três anos. No mês passado, a Solar Ear
doou um equipamento. “Ela gritou, bateu palminhas e saiu de lá saltitando”, diz
a mãe, Maria Gorett Silva dos Reis. “Está reconhecendo novos sons agora. Ela deu
mais uns três passos à frente.”
Ao final de cada ano, Weinstein envia uma carta aos amigos e à família para
falar do que tem feito. Em anos passados, ele contou seu encontro com o
economista bengalês Muhammad Yunus, vencedor do Prêmio Nobel da Paz por criar o
“banco dos pobres”. Escreveu sobre um prêmio que recebeu ao lado de Al Gore,
ex-vice-presidente dos Estados Unidos. Neste ano, ele deverá mencionar o prêmio
de inovação. Mas gastará mais linhas falando das histórias de gente como
Victória.
Números sonoros
As dimensões da surdez e como a solar Ear ajuda a atenuá-la
O problema
§
300 milhões de
pessoas no mundo têm algum grau de surdez
§
220 milhões estão
em países em desenvolvimento
§
Só 8 milhões de
aparelhos são fabricados por ano
§
No mercado convencional, as próteses custam entre R$ 2 mil e R$ 15 mil
§
Os equipamentos usam mais de R$ 200 em pilhas todo ano
A solução
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A solar Ear vende aparelhos por R$ 300, mais baratos que os convencionais
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A empresa inovou ao fabricar pilhas recarregáveis e carregador solar
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O kit com carregador e baterias custa R$ 95 e dura até três anos
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