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Carta
Maior, Domingo, 19 de Julho de 2009

 


DEBATE ABERTO

 


O Supremo
errou, cabe consertar

 

Os
ministros que votaram contra a exigência do diploma, sob a alegação de
cerceamento da liberdade, erraram. Seguiram um relator subserviente à grande
mídia, certo de que esta retribuiria o favor, o que aliás já vem acontecendo.
Mostraram em seus votos desconhecer a matéria em julgamento.

 


Laurindo
Lalo Leal Filho

 

O
Supremo Tribunal Federal cometeu um grave erro ao acabar com a exigência do
diploma para o exercício profissional do jornalismo. Como guardião da
Constituição brasileira, o STF entendeu que uma de suas cláusulas – a que
garante a livre manifestação de pensamento – estaria sendo violada pela lei que
regulamentou a profissão de jornalista.

 

Os
ministros que votaram contra a exigência do diploma, sob a alegação de
cerceamento da liberdade, erraram. Seguiram um relator subserviente à grande
mídia, certo de que esta retribuiria o seu favor, o que aliás já vem
acontecendo. Mostraram em seus votos desconhecer a matéria em julgamento. Nunca
houve, nos mais de quarenta anos de vigência da lei, qualquer violação da
liberdade que tivesse sido decorrente de sua aplicação. Houve sim censura prévia
durante a ditadura e censura empresarial depois dela, fatos sem nenhuma relação
com a exigência do diploma.

 

Os
nobres julgadores parecem não ler jornais, ouvir rádio ou ver televisão. Neles,
todos os dias opinam profissionais de todas as áreas sem nenhum obstáculo.
Portanto, a exigência do diploma não fere a Constituição e esta deveria ser a
singela resposta do Supremo aos autores da ação, não por acaso entidades
patronais do setor.

 

O
que a lei derrubada garantia era a o exercício legalizado de uma profissão cujo
conhecimento acumulado ao longo dos anos não pode ser transmitido senão de forma
sistematizada, como se faz na academia. Foi-se o tempo em que jornalismo se
aprendia nas redações. Hoje esse ensinamento é fruto da pesquisa científica
desenvolvida numa área específica do conhecimento e que se transmite nas salas
de aulas e nos laboratórios.

 


Gostaria de saber se alguns dos juizes que votaram contra o diploma – e que
escrevem nos jornais com absoluta liberdade – sabem como se define e se produz
uma pauta jornalística, como se apuram as informações e como se faz a edição de
uma reportagem, por exemplo? Ou ainda quais são as diferenças entre um texto
escrito para ser lido nos jornais, na internet ou para ser ouvido através do
rádio. E como escrever para a TV combinando com precisão texto e imagem? Isso
não tem nada a ver com liberdade de informação. É conhecimento especializado que
sociólogos, advogados e médicos não aprendem em suas faculdades. Só os
jornalistas.

 

E
o mais importante: gostaria de saber se esses doutos juizes se debruçaram sobre
o currículo teórico dos cursos de comunicação, base fundamental para o trabalho
prático acima descrito. Não há hoje jornalista formado que não tenha tido
contato com as diferentes correntes teóricas da comunicação, estudadas e
discutidas nas faculdades.

 


São essas leituras que permitem aos futuros jornalistas compreender melhor o
funcionamento da mídia, as suas relações com os diferentes poderes, os seus
interesses muitas vezes subalternos. É nas faculdades que se formam jornalistas
críticos, não apenas da sociedade, mas principalmente da mídia, capazes de saber
com clareza onde estarão pisando quando se formarem. É tudo que os donos dos
meios não querem.

 

A
luta deles pelo fim do diploma resume-se a dois objetivos: destruir a
regulamentação da categoria aviltando ainda mais os salários e as condições de
trabalho e, ao mesmo tempo, evitar a presença em suas redações de jornalistas
que possam, ainda que minimamente, contestar – com conhecimento de causa – o
poder por eles exercido sem controle. Querem escolher a dedo pessoas dóceis e
subservientes e transformá-las nos “seus” jornalistas.

 


Transfere-se dessa forma da esfera pública para o setor privado a decisão de
definir quem pode ou não ser jornalista. As universidades públicas quando
outorgam um diploma de um dos seus cursos ou quando reconhecem a legitimidade do
diploma fornecido por instituição privada exercem a prerrogativa de possuírem fé
pública. O diploma de jornalismo era, portanto, referendado pelo Estado em nome
da sociedade, dando a ele a sustentação necessária para o exercício de uma
profissão regulamentada desde 1938. Agora é o mercado que decide.

 


Outro argumento ridículo usados pelos juízes do Supremo é que o diploma era um
entulho autoritário produzido pela ditadura militar. Bastava uma breve consulta
aos anais de todos os encontros e congressos de jornalistas para perceber que
tal afirmação é insustentável. Em 1918, quarenta e seis anos antes de se
instalar a ditadura de 64, os jornalistas reunidos em Congresso no Rio de
Janeiro já defendiam a formação específica em jornalismo para o exercício da
profissão. E seguiram lutando por essa bandeira e pela regulamentação
profissional.

 

Em
1961, o presidente Jânio Quadros publicou decreto regulamentando a profissão. A
partir dai o seu exercício ficou restrito aos portadores de diploma específico
de nível superior. Como agora, as empresas jornalísticas se mobilizaram e
conseguiram, um ano depois, a revogação do decreto pelo presidente João Goulart.
Mas em compensação foi criada uma comissão para dar nova forma à legislação. O
resultado foi a volta da exigência da formação superior, embora admitindo o
autodidata e o reconhecimento de jornalistas sem diploma nas cidades onde não
haviam faculdades de jornalismo. O decreto-lei de 1969 apenas acabou com o
autodidatismo, mas permitiu a existência do jornalista provisionado, aquele que
já exercia a profissão antes da promulgação da lei.

 


Foi graças à mobilização e à pressão da categoria que, depois de mais de 50 anos
de luta conquistou-se a exigência do diploma, nos termos previstos desde de o
final da primeira década do século 20.

 

E
os juízes de 2009 ainda tiveram a coragem de aceitar a tese de que foi a
ditadura que exigiu o diploma para impedir contestações nos jornais. Como se os
jornalistas pudessem escrever o que quisessem sem a anuência dos patrões, como
se na época não houvesse censura policial e como se todos os possíveis
contestadores do regime não estivessem aquela altura mortos, exilados, sendo
torturados ou simplesmente calados pela força da intimidação.

 


Voltamos agora à pré-história do jornalismo brasileiro quando os donos de
jornais davam “carteiras de jornalistas” para os empregados e diziam: “agora
você já é jornalista, pode ir buscar o salário lá fora”. Se o “jornalista”
tivesse algum pudor iria ganhar seu dinheiro em outra profissão trabalhando no
jornal por diletantismo. Se não tivesse iria usar do seu espaço para ameaçar
pessoas, em troca de remuneração. Era o chamado achaque que, obviamente não era
generalizado mas que constrangia os jornalistas idôneos.

 

A
obrigatoriedade do diploma foi responsável pela moralização da profissão. Além
disso, estimulou os diplomados a refletirem sistematicamente sobre o seu
trabalho. Será que os nobres juizes do Supremo ouviram falar alguma vez na
riquíssima experiência de pesquisa, necessária ao trabalho de conclusão de
curso, condição para se obter o grau superior de jornalismo? Acredito que não. E
não sabem também como, ao ingressar na profissão com o diploma, o jornalista tem
olhos mais atentos para recolher na prática profissional os elementos
necessários para a realização de novas pesquisas acadêmicas.

 


São inúmeros os jornalistas que depois de alguns anos de vida profissional
voltam à academia ingressando em programas de mestrado ou doutorado. Carreiras
acadêmicas serão destruídas. E com isso vai se iniciar um processo de destruição
de uma área do conhecimento que vinha se consolidando nos últimos anos graças ao
investimento dos órgãos de fomento à pesquisa e das universidades. A exigência
do diploma é vital para manter viva a relação entre o trabalho e a pesquisa.

 


Como se vê, além de errarem, os juizes do Supremo foram irresponsáveis por não
mediram as conseqüências da decisão tomada.

 


Mas há conserto. Tramitam no Congresso duas propostas de emenda constitucional
determinando a volta da exigência do diploma de nível superior para o exercício
da profissão. Não é fácil aprová-las dadas as exigências regimentais. Na Câmara,
por exemplo, precisam do voto favorável de três quintos dos deputados (308 entre
513) e no Senado de 49 dos 81 senadores. Votos que só serão conseguidos com a
mobilização ampla da categoria e dos estudantes, o que aliás já vem ocorrendo em
todo o Brasil. Resta agora intensificar essa luta que já se mostrou vitoriosa em
outros momentos de nossa história.

 


Laurindo
Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É
autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da
televisão” (Summus Editorial).

Categorias: Jornalismo

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