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O Estado de São Paulo, Domingo, 4 maio de 2008


ALIAS

 

Por
uma boa vida


 


Redução da jornada
seria conquista histórica, desde que se afaste o fantasma das horas extras


 

Mônica Manir

 

Se a questão é labuta
diária, Suzanna Sochaczewski é totalmente pro-life. Socióloga do Departamento
Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos, ela não condena quem
passa grande parte da vida numa empresa. Está há 23 anos no Dieese. Mas insiste
que não se deve viver para trabalhar, mas trabalhar para viver. E bem, “porque a
produção de riqueza dá para todo mundo”.


 

Para tanto, também é
necessário ser pro-choice, ou seja, saber escolher o melhor para si e para a
sociedade, questionando serviços insalubres, penosos, desumanos, sem sonhos
próprios, arrastados por horas a fio. Não à toa Suzanna defende a redução da
jornada de trabalho de 44 para 40 horas semanais, tema central dos atos
organizados pelas centrais sindicais nesse 1º de maio. Os patrões vão querer
cortar salário? “Ao contrário, poderiam até dar um aumento”, diz. Problema são
as horas extras. Em 1998, quando a jornada caiu de 48 para 44 horas, elas
praticamente duplicaram nas empresas. Seria trocar 6 por meia dúzia. Pior: 6 por
12. Um perigo para a boa vida.


 


O movimento sindical
pressiona os sindicatos patronais e o Congresso a diminuir a jornada semanal
para 40 horas, sem corte nos salários. A idéia é possibilitar emprego para um
número maior de pessoas. Vai possibilitar?


 

Sim. Pelos cálculos do
Dieese, a redução da jornada de trabalho de 44 para 40 semanais teria o impacto
potencial de gerar em torno de 2.252.600 novos postos de trabalho. Ou seja, mais
de 2 milhões de pessoas seriam absorvidas pelo mercado de trabalho interno, o
que aumentaria a produção, gerando um círculo virtuoso. O desemprego, sim, é que
alimenta um círculo vicioso, ruim para a economia. Quem não trabalha recebe
seguro, rouba, se endivida, faz muito bico que não dá para comprar nada. Pessoas
empregadas voltam a consumir no supermercado, depois juntam dinheiro, adquirem
uma geladeira. O emprego é agilizante, potencializador do mercado interno. Mas
não pode ter hora extra do jeito que tem.


 


Quando a Constituição
de 1988 reduziu a jornada legal de trabalho de 48 para 44 horas semanais, o
número de horas extras aumentou?


 

Um mês antes de
promulgada a jornada semanal de 44 horas, o porcentual de trabalhadores que
fazia hora extra era de mais ou menos 25%. Um mês depois, esse porcentual pulou
para cerca de 47%. Como cada um começou a trabalhar quatro horas a menos na
jornada semanal, a estratégia patronal para não contratar as pessoas necessárias
para cumprir esse gap foi aumentar estupidamente o oferecimento de horas extras.
Por quê? Porque o pagamento dessas horas é ligeiramente mais barato do que a
contratação, 1,99%. Pouquíssimo, pouquíssimo! A redução da jornada não foi
benefício para os trabalhadores naquele momento, a não ser que tivesse sido
acompanhada de proibição radical ou de fiscalização muito severa do número de
horas extras. Isso não se pensava direito na época. Experiência assim nunca
tinha sido feita, de o país inteiro passar para 44 horas semanais.


 


Seria diferente agora?
O trabalhador aprova a hora extra?


 

Individualmente, não
como classe, o trabalhador tem mais dinheiro no bolso com a hora extra. Como o
salário dele é muito baixo, ele aceita. Na verdade, isso não traz benefício a
ninguém. Para os empresários, diminuir o número de horas de seus trabalhadores
oferece vantagens. Os que já experimentaram isso provam que é verdade. Quem
trabalha menos tempo fica mais descansado, mais satisfeito, mais criativo, sofre
menos acidentes de trabalho. Para o trabalhador, se você mexe na jornada e não
no salário, é um ganho.


 


Os sindicatos afirmam
que, com a diminuição da jornada, o trabalhador poderá investir na qualificação.
Em função dos salários baixos, e com mais tempo livre, a pessoa não vai procurar
um segundo emprego?


 

Não. O trabalhador tem
a compreensão de que está ganhando mais se trabalha menos horas. Ele começa a
entender que existem ganhos que não só os monetários, tem a noção de que pode
usar isso para a sua saúde, para a sua qualificação. Você já visitou as
faculdades que oferecem cursos noturnos? A maior parte dos alunos está exausta,
muitos dormem, saíram de casa às 6 da manhã e à noite precisam estar alertas
para receber novas informações. Vão aprender melhor se trabalharem menos tempo.
Em vários países existem pesquisas de ganhos de saúde, de educação, de vida
familiar. Em um livro da CUT chamado Hora Extra, há uma charge com o seguinte
diálogo entre mãe e filho: “Mãe, tem um desconhecido dormindo na sua cama. Não é
desconhecido, não, meu filho. É seu pai, que não fez hora extra”.


 


Quantos empregos
seriam gerados com o fim das horas extras?


 

O fim das horas
extras, ou mesmo sua limitação, poderia gerar mais ou menos 1 milhão de postos
de trabalho. O mais-ou-menos é porque só existe o cômputo das horas extras
legais. Há muitas ilegais.


 


Em que setores
aumentaria mais o número de empregos?


 

O industrial faz
muitas horas extras, mas, como é maior a jornada dos setores de serviço e
comércio, maior será o número de pessoas beneficiadas. Esses setores são menos
fiscalizados, então dá mais margem para que sejam feitas coisas fora do âmbito
da lei.


 


Desde quando o cidadão
reivindica mais tempo fora do trabalho?


 

A questão da redução
da jornada de trabalho é uma luta histórica do movimento sindical e dos
trabalhadores. Na Idade Média, o “expediente” era sazonal: tinha o tempo da
colheita, da construção, da tecelagem. Quando há 500, 400 anos a sociedade
começou a se organizar de forma capitalista para a produção, uma das primeiras
mudanças foi a jornada de trabalho regulamentada em cima do cotidiano. A
domesticação da classe trabalhadora para um tempo de serviço regulamentado foi
muito violenta, houve uma resistência grande, mesmo porque as jornadas eram
longuíssimas, de 14, 15, 16 horas.


 


Não se reclamava
disso?


 

Reclamava-se, mas era
um momento em que uma sociedade estava se desmontando, se desestruturando, e a
outra ainda não se mostrava inteiramente organizada. Havia hordas de pessoas na
Europa de lá pra cá sem trabalho, sem comida. Quando se encontrava trabalho,
percebia-se uma dupla atitude em relação a isso. De um lado, alguns
imediatamente usavam a oportunidade para sobreviver. Outros se recusavam por
causa das condições terríveis oferecidas. O primeiro grande motivo para a
redução da jornada se tornar uma das bandeiras mais importantes dos
trabalhadores foi que ela começou a se estender de tal maneira que chegou perto
de ameaçar a vida. Com o aumento da quantidade de riqueza produzida, a classe
trabalhadora passou a reivindicar uma jornada menor, em média de oito horas,
para que pudesse usufruir de tempo livre.


 


Existe consenso em
torno das oito horas diárias?


 

Alguns pensam em menos
porque uma coisa é você trabalhar oito horas em casa, parando um pouco, tomando
um cafezinho, botando o pé para cima de vez em quando. Outra é trabalhar oito
horas batido, com uma de descanso no almoço. Com as grandes transformações no
processo de trabalho e de produção de 1970 para cá, o ritmo de trabalho se
intensificou de uma forma muito, muito, muito violenta. Os novos equipamentos,
os computadores ditam esse pique de um jeito mais bem planejado, a ponto de
retirar todos os intervalos em que o cara podia sair e fumar um cigarro, ir ao
banheiro, dizer oi para o compadre do lado. O ritmo foi se intensificando e as
brechas de descanso, diminuindo.


 


Mas apertar botões não
é mais tranqüilo do que mexer com um tear, por exemplo?


 

Sim, mas apertar
botões não significa só apertar botões. Essa transformação no mundo do trabalho
de um lado retirou dele seu caráter pesado e muitas vezes perigoso, insalubre.
Infelizmente, ela acrescentou uma atenção redobradíssima. Se você aperta um
botão errado ou aperta o certo em hora imprópria, desencadeia um problema não
necessariamente visível de imediato. Antigamente, o produto caía no chão e
quebrava. Hoje, ou a máquina enguiça, ou pára completamente de funcionar, ou vai
aparecer uma coisa completamente esquisita lá na frente. A tensão que vem junto
é muito grande. Outra coisa: os trabalhadores passaram a receber um negócio que
os patrões chamaram de “enriquecimento do trabalho”. Em vez de você tomar conta
de uma máquina só, agora passa a trabalhar com três ou quatro ao mesmo tempo.
Também cortaram o número de trabalhadores que cuidavam da manutenção e da
limpeza. Quem só cuidava da máquina agora faz a faxina antes e depois, e a
manutenção até certo ponto. Nenhuma dessas tarefas, tomadas individualmente, é
cansativa, perigosa, mas, quando se junta tudo isso, a pessoa fica exausta.


 


E ainda leva trabalho
para casa…


 

Sim. Muitas empresas
invadem o tempo livre do funcionário prometendo prêmios, ganhos, ameaçando se
não tiver iniciativa. Tem empresas que dão para o trabalhador um caderninho para
ele botar do lado da cama. Se tiver um sonho bom, acorda e escreve
imediatamente. Chamamos isso de mais-valia dos sonhos. Nem sonhar o cara pode
sonhar em paz.


 


O presidente da
Confederação Nacional dos Trabalhadores Metalúrgicos, da Força Sindical, diz que
“não se faz esse tipo de acordo na desgraça”. O crescimento da economia favorece
acordos coletivos para redução de jornada sem corte de salários?


 

Ele tem toda a razão
porque, na época de contenção de despesas, de recessão da economia, as empresas
estão passando um momento difícil também. Com certeza o momento atual favorece a
reivindicação. É bom lembrar que a produtividade do trabalho mais que dobrou nos
anos 90. Isso significa que você produz mais riqueza com menos horas de
trabalho. Se tenho uma fábrica de sapatos e só eu resolvo reduzir a jornada,
provavelmente não serei competitivo. Mas, se for uma lei, terei de obedecer, o
meu vizinho também, todos os que têm fábrica de sapato vão fazer o mesmo. E
poderei aumentar o salário. Quando se calcula o custo de produção, 30% é
matéria-prima, 20% é energia, 10% é investimento e menos de 10% é salário. Se
aumentar um pouquinho, aumenta quase nada.


 


Qual é o papel dos
sindicatos nesse momento histórico?


 

O sindicalista pensa
muito bem, viu? Não é nada bobo. Acontece que, logo que houve essa transformação
nos últimos 30 anos do processo de trabalho, ocorreu uma mudança de relação de
forças muito importante, pois a disponibilidade de emprego ficou menor. Para
ganhar uma vaga, começamos a abrir mão de uma porção de coisas. Se todas as
centrais sindicais se juntarem e fizerem uma campanha unificada pela redução da
jornada de trabalho, isso significa uma melhoria das condições de vida da
população em geral. Antigamente, reis e rainhas viviam tudo encafuado em seus
castelos e o povo era visto de longe. Hoje, a riqueza e a miséria estão mais
visíveis. Os sindicalistas sabem que existe a possibilidade de uma distribuição
da renda sem deixar ninguém pobre. Não é tirar dinheiro das pessoas. É produzir
de uma maneira muito eficiente e distribuir isso sob a forma de salário e de
políticas universais de saúde, educação e moradia de boa qualidade.


 


A população confia nos
sindicatos?


 

Aqueles que trabalham
no emprego formal vêem o sindicato muito bem, são beneficiários diretos dessa
representação. Por lei, no Brasil, o sindicato só pode representar os que têm
emprego formal. Acontece que ele está aumentando a abrangência da sua
intervenção porque uma parte grande da população que trabalha não tem
representação. Estuda-se um atendimento informal para eles.


 


Existe uma reclamação
grande com relação ao imposto sindical
.


 

O sindicato precisa de
um financiamento. Duas mil, 5 mil, 10 mil pessoas se beneficiam da negociação
feita pelo sindicato. Quando só existe a contribuição de filiados, ela
provavelmente cobre 10% dos gastos que se tem com a campanha, a negociação, a
explicação, o estudo que precisa ser feito para saber o que está acontecendo. Se
tem a contribuição negocial, que é a proposta do movimento sindical, mas que o
Congresso ainda não aprovou, provavelmente o trabalhador que está sendo
beneficiado por essa negociação vai pagar o valor sem reclamar uma vez por ano.
Essa contribuição negocial não necessariamente precisa passar pelo Estado, pode
ser direto. Inclusive, existe uma proposta de as próprias empresas recolherem e
pagarem para o sindicato. Pronto, acabou! As empresas não reclamam de pagar a
contribuição para o sindicato porque sabem que, sem ele, não há esses edifícios,
não há qualificação, não existiria a própria negociação. O sindicato também
precisa contratar seus assessores. Sem financiamento, você não faz nada.


 


A vida, hoje, só faz
sentido se a pessoa puder trabalhar?


 

Sim, mas não em
qualquer tipo de trabalho e pela vida toda. Criança não tem que trabalhar.
Velho, só se quiser. Não tem que trabalhar todos os dias da semana, como já foi
o caso, nem em serviços penosos, insalubres. O serviço de pintura foi um dos
primeiros a ser automatizado e os trabalhadores concordaram. Quem trabalha em
pintura, depois de cinco anos, fica sem pulmão, mesmo usando máscara. Então é
bom que o robô faça isso. Os trabalhos pesados têm de ser automatizados. Para
isso foi caminhando a humanidade. Não pode ser por sobrevivência. E isso você só
consegue se produzir riqueza, isto é, serviço, educação, roupa, tudo o que você
pode imaginar, numa quantidade e facilidade tais que daria para a humanidade
viver talvez não luxuosa, mas confortavelmente, sem deixar ninguém de fora, para
que todos possam usufruir desse momento histórico em que a gente está. O
trabalho tem de ser, no século 21, uma boa vida.


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