Nova pagina 1


O Estado de São Paulo, Domingo, 10 agosto de 2008



INTERNACIONAL

 
 


“Sergio Vieira de Mello foi um visionário”


 


Vencedora de prêmio
Pulitzer lança biografia de diplomata brasileiro que morreu buscando a paz na
guerra do Iraque


 


Antonio Gonçalves
Filho

 

Há cinco anos, às 8h45
de uma terça-feira, 19 de agosto, o diplomata brasileiro Sergio Vieira de Mello
chegou de carro ao quartel-general da ONU em Bagdá, no Iraque. Três horas
depois, seu carro blindado estava pronto para ir ao aeroporto buscar uma
delegação de congressistas americanos que chegava do Kuwait, mas o vôo atrasou.

 

Sergio ligou para a
noiva, convidando-a para almoçar, mas ela tinha um compromisso à tarde e recusou
o convite. Horas depois, o diplomata e outros 21 membros de sua equipe, enviados
a Bagdá para ajudar os iraquianos a recuperar o controle do país, estavam
mortos.

 

O atentado terrorista
colocou um ponto final na carreira de um dos mais brilhantes homens públicos
nascidos no Brasil. É essa a história contada no livro O Homem Que Queria Salvar
o Mundo (Companhia das Letras, 670 págs., R$ 59), escrito pela premiada
jornalista americana Samantha Power, vencedora do prêmio Pulitzer pelo livro A
Problem from Hell: America and the Age of Genocide, que chega amanhã às
livrarias. Coincidentemente, o livro é lançado na mesma semana em que as
locadoras recebem o DVD Sergio Vieira de Mello – A Caminho de Bagdá,
documentário sobre sua trajetória, dirigido há três anos por Simone Duarte.

 

A biografia escrita
por Samantha, que estará no Brasil para participar da 20ª Bienal do Livro,
provocou controvérsia entre resenhistas estrangeiros, como o historiador Francis
Fukuyama, o mesmo que decretou o “fim da história”. Fukuyama apresentou uma
série de argumentos para concluir que Sergio foi a soma das contradições e
falhas da instituição que representava, a ONU.

 

Entretanto, não é o
que pensa Samantha, que concedeu ao Estado uma entrevista dizendo que os
analistas têm o péssimo hábito de usar a ONU como bode expiatório pela
indiferença de alguns países membros aos problemas mais graves do mundo.

 

A missão de Sergio
Vieira de Mello, diz ela, foi justamente a de reabilitar a crença em uma
organização cuja ajuda humanitária, em momentos de crise, pode decidir os
destinos de um povo.

 

Ao não recusar o
diálogo com ditadores ou líderes sectários, o brasileiro foi, segundo ela, o
exemplo máximo de um humanista decidido a fazer da ONU um organismo imparcial.
Tanto que, na primeira entrevista que ela realizou com o brasileiro, Sergio
definiu essa imparcialidade como o maior patrimônio das Nações Unidas.

 

Nos trechos a seguir,
a biógrafa de Vieira de Mello fala mais sobre o carismático alto comissário da
ONU para os refugiados (em Bangladesh, Sudão, Chipre, Moçambique, Líbano,
Camboja, Bósnia, Ruanda, Congo, Kosovo e Timor Leste) e representante no Iraque
do então secretário-geral da organização, Koffi Anan, durante o período mais
grave do conflito.

 


Em “O Homem Que Queria
Salvar o Mundo”, você mostra Sergio Vieira de Mello como uma pessoa carismática,
um árbitro neutro de conflitos mundiais. Como você definiria esse carisma capaz
de seduzir tantas pessoas?

 

Antes de ser
apresentada ao Sergio, um colega jornalista descreveu-o como um cruzamento entre
James Bond e Bobby Kennedy. Isso foi em 1994. Estava na ex-Iugoslávia e ele
concordou em conceder uma entrevista para mim em Zagreb. Carisma é algo pouco
comum entre representantes de organizações internacionais, mas ele era de fato
diferente, realmente encantador. E tinha de ser mesmo para assumir a missão de
pacificação da ONU na vizinha Bósnia, em seu pior momento de crise.

 


Ter um diálogo aberto
com líderes sanguinários, como os do Khmer Vermelho, ou cultivar amizade com
ditadores, como Slobodan Milosevic, foi então uma virtude?

 

Foi. É claro que ele
cometeu erros, como todo mundo que tem mais de 30 anos de carreira. Seu maior
acerto estratégico, porém, foi o de mostrar ao mundo que não basta só denunciar
e tomar partido das vítimas. É importante conhecer os políticos e as motivações
dos que as ameaçam para tentar salvar essas vidas. E devo lembrar que ele
arriscou a própria por essa missão.

 


Pouca gente acreditava
que a ONU pudesse fazer alguma coisa para tornar a situação em Bagdá mais
tolerável. Você acha que Sergio estava convencido de que poderia fazer um bom
trabalho mesmo cercado de pessoas contrárias à presença da ONU, como os
americanos?

 

Sergio não queria ir
para Bagdá. Sabia que a ONU teria um papel decorativo nessa história, mas que
ele poderia se tornar um intermediário confiável, à medida que representava uma
organização independente. Examinando a lista dos prováveis candidatos a assumir
o posto que seria seu, ele concluiu que seria melhor não recusar a viagem, mesmo
sabendo que os EUA tratariam a ONU como a um mosquito impertinente.
Infelizmente, logo ao chegar, em junho, os rebeldes já estavam testando
dispositivos explosivos, com ordem de atacar as forças de coalizão.

 


Fukuyama escreveu uma
resenha sobre seu livro, dizendo que as operações da ONU desacreditaram a
organização e citando particularmente o caso da Bósnia, que só foi resolvido com
poder de fogo. Você acha que Sergio foi ingênuo nessa história?

 

Esse é um tema
delicado. Sergio não era ingênuo e nem um acadêmico como Fukuyama, a 3 mil
quilômetros de qualquer conflito. Convencer qualquer governante de um país não é
tarefa para pessoas ingênuas. Claro que ele sabia que a ajuda humanitária, por
vezes, dependia primeiro de uma intervenção armada contra esses ditadores, mas
ele escolheu o papel mais desafiador, que foi o de convencer pela palavra.

 


Ele foi um visionário?

 

Com certeza. Daqui a
30 anos vamos olhar para trás e perguntar: por que não fizemos o que ele disse?
Ele entendia como ninguém o que significa a diplomacia, a necessidade de ser
sofisticado nas negociações. Resumindo em uma frase, ele sabia que o mundo todo
tem de nadar junto ou vai se afogar junto. Para superar desafios transnacionais,
só mesmo visionários como Sergio ou Barack Obama, que dividem os mesmos ideais e
não têm medo de dialogar com adversários ou ditadores.

 


Qual foi seu grande
legado?

 

Acima de tudo, Sergio
nos ensinou que é preciso viver sem medo e mostrou que os EUA, que falam muito
de liberdade, precisam começar a respeitar a cultura dos outros.

 


Sergio foi uma das
primeiras pessoas a condenar a violência contra os presos de Abu Ghraib. Ele
seria um alvo apropriado não só para iraquianos?

 

Há quem também
considere os americanos responsáveis, mas não há evidência disso, como deixo
claro no último capítulo do livro. Hoje, cinco anos após sua morte, o Conselho
de Segurança da ONU encontra-se mais dividido do que em qualquer outro período e
o poder de Sergio não era grande o suficiente para que ele se tornasse um alvo.
Ele apenas condenou o que todos condenamos: não se pode ajudar vítimas no
domingo e torturá-las na segunda-feira.

 

Categorias: Diplomacia

1 comentário

Os comentários estão fechados.

× clique aqui e fale conosco pelo whatsapp