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O Estado de São Paulo, Domingo, 4 maio de 2008             


VIDA&

 

 

Um
museu para celebrar o quarto poder


 

Mario Vargas Llosa

 

No Newseum, o museu
dedicado ao jornalismo recém-aberto em Washington D. C., a cada manhã se podem
ler as primeiras páginas dos 80 jornais mais importantes do mundo, transmitidas
por satélite para o espetacular edifício – um monumento à tecnologia – erguido
na Avenida Pensilvânia, a meio caminho entre a Casa Branca e o Capitólio, e a um
passo dos principais museus da cidade – a National Gallery, o Museu das Ciências
, o Museu Hirshborn, o Smithsonian – além da maior biblioteca do mundo, a
Biblioteca de Washington.


 

O Newseum tem méritos
suficientes para alternar com essas instituições a cara mais culta e mais
civilizada deste país. Começando a visita pelo sexto andar e descendo até o sótão,
o visitante recebe um curso descritivo e caudaloso da evolução da informação
desde os tempos primitivos – os tambores africanos, os quipos incas, as
tabuletas de argila babilônicas e os pergaminhos egípcios até a revolução
audiovisual de nossos dias que, no dizer de Octávio Paz, nos tornou enfim
contemporâneos de todos os homens.


 

O museu é
maravilhosamente concebido e apresentado, e nas duas a três horas que toma
percorrê-lo permite conhecer apenas a ponta do iceberg das possibilidades que
suas divisões encerram. Em cada uma delas, pode-se passar muitas horas – dias
inteiros – escutando os mais famosos programas de rádio ou de televisão
dedicados aos grandes acontecimentos políticos e sociais das últimas décadas – a
revolução bolchevique, a ascensão de Hitler ao poder, a “grande marcha” de Mao,
as transformações da primeira e da segunda guerras mundiais, a Guerra Fria, o
crash de 1929, o assassinato dos Kennedy, a crise dos foguetes, a viagem ao
espaço, a queda do Muro de Berlim, os atentados terroristas de Nova York, Madri
e Londres, entre outras centenas de episódios que marcaram sua época e foram os
mais significativos da atualidade. Os descobrimentos científicos e os feitos
culturais destacados também ocupam um espaço importante segundo apareceram nas
informações e debates que provocaram na imprensa. Por momentos, tem-se a
impressão do infinito, de que ninguém conseguirá jamais esgotar essa riqueza
oceânica.


 

A experiência é
fascinante e instrutiva. Pois se alguém ainda não sabe, o jornalismo, batizado
como o “quarto poder” do Estado, com certa modéstia – em algumas circunstâncias
se converte no primeiro – tem sido, em sua melhor expressão, um fator
fundamental de progresso e modernização, dinamitando preconceitos e abolindo
ignorâncias que impediam a comunicação entre culturas, países e indivíduos, e
contribuindo de maneira decisiva para denunciar e pôr fim, ou ao menos atenuar,
injustiças e iniqüidades como a escravidão, o racismo, a xenofobia, e, em geral,
os crimes e atropelos contra os direitos humanos, assim como impulsionar a
cultura democrática, exercitando a liberdade de informação e o direito de
crítica. Uma das seções mais comoventes do museu é dedicada às mulheres e homens
que, na prática da sua profissão, foram seqüestrados, encarcerados, torturados e
assassinados nos cinco continentes. Trata-se de uma estatística aberta – e
renovada a cada dia – que, em vez de diminuir, veio crescendo nos últimos anos.


 

O Newseum não
escamoteia o aspecto negativo e sinistro que o jornalismo também apresenta,
sobretudo em nosso tempo: o fazer passar gato por lebre, a ficção como
realidade, a mentira por fato consumado.


 

Sentem-se calafrios
quando se descobre que jornais tão prestigiosos como The New York Times, The
Washington Post e The New Republic – eu já colaborei nos três e padeci as
enlouquecedoras “verificações” a que seus editores submetem cada artigo –
puderam ser enganados, às vezes durante anos, por escribas astutos que
fabricaram informações e as arrumaram para filtrar mentiras em suas páginas sem
ser detectados.


 


SENSACIONALISMO


 

Mas, no meu entender,
o museu não põe suficiente ênfase no fenômeno do sensacionalismo que é hoje o
câncer da imprensa, principalmente nas sociedades abertas. É verdade que ele
dedica algumas vitrines a diários e revistas, e uns quantos programas de rádio e
televisão especializados nessa degeneração jornalística – uma verdadeira praga
que infesta a informação em nossos dias -, que invade a vida privada e os
direitos individuais, explora os piores instintos, banaliza a vida e a avilta
transformando-a em pura bisbilhotice, mas o Newseum apresenta esse fenômeno como
algo pitoresco e marginal e não como o que é, um fato nevrálgico da realidade
jornalística contemporânea.


 

Além de instrutivo, o
Newseum tem algo de um parque de diversões e vai competir com sucesso contra
outra das melhores diversões que a capital americana oferece: o Museu da
Aeronáutica e do Espaço. Porque nele há também filmes em quatro dimensões que
provocam calafrios de pânico e gritos de entusiasmo com suas diversões filmadas
das façanhas e tragédias documentadas por eminentes repórteres – como Edward
Murrow transmitindo do terraço de um edifício londrino entre a fumaça e as
chamas, o bombardeio da cidade pela aviação hitlerista – e milhares de fotos e
objetos ligados aos mais famosos profissionais de imprensa.


 

Aqui se podem
contemplar desde a suntuosa maleta e o escritório portátil que levava consigo em
suas correrias o cidadão Tom Paine até o automóvel crivado de balas no qual foi
assassinado o jornalista de Arkansas por denunciar as pilhagens da máfia local.
E os cadernos de anotações e as fitas e gravações de muitos correspondentes
caídos nas Filipinas, Vietnã, Bósnia, América Central, Iraque, ou que morreram
esmagados entre os escombros quando informavam no 11 de Setembro sobre o
atentado às Torres Gêmeas de Wall Street por fanáticos islâmicos.


 


PAIXÃO


 

A manhã que passei no
Newseum me confirmou, de maneira avassaladora, algo que adivinhei quando ainda
era um pirralho que acabava de passar da calça curta para a comprida, e me
atrevi a comunicar a meu pai que havia me decidido a não ser mais um marinheiro,
mas sim um jornalista: que, depois da literatura, não há atividade ou profissão
mais apaixonante que o jornalismo. Nenhuma que faça viver tanto a vida como uma
permanente aventura, que exponha quem a pratica a tantas experiências sobre a
condição humana e suas infinitas manifestações e ramificações, e que eduque
melhor e de maneira tão vívida sobre as grandezas e misérias da história que se
vai fazendo em nosso entorno e o fermento que anima a vida das nações e dos
indivíduos.


 

Por razões óbvias e
inevitáveis, o Newseum está centrado principalmente na experiência americana e,
embora também figurem em suas abundantes salas muitos aspectos do jornalismo
europeu, asiático e latino-americano – o africano prima por sua ausência -, no
que concerne a essas regiões ainda resta muito a mostrar.


 

Uma conclusão se impõe
ao visitante, quando, nesta manhã de primavera fria e chuvosa, termina a visita:
ao longo da história, o jornalismo nos Estados Unidos gozou de uma liberdade
extraordinária para criticar tudo, sem eufemismos nem papas na língua. Não há
outro país que tenha se submetido a semelhante autocrítica. Nem sempre foi
fácil. Houve muitas batalhas e obstáculos no caminho, mas, mesmo nos períodos
mais difíceis – os anos do macarthismo, por exemplo, ou o recentíssimo dos
escândalos de Abu Ghraib e Guantánamo – sempre apareceram órgãos de imprensa e
jornalistas que enfrentaram as tentativas de censura do governo ou dos poderes
de fato – as Forças Armadas, as corporações, as igrejas, os sindicatos – e foram
disputar nos tribunais e a Justiça acabou lhes dando razão.


 

Não é difícil
estabelecer um vínculo entre esse fato, o de ter tido um jornalismo independente
e crítico ao longo de toda sua história, e o de serem os Estados Unidos um dos
raríssimos países do mundo que podem se vangloriar de jamais ter tido um
ditador.


 

Porque a equação é
infalível: o grau de liberdade de que goza a informação é um reflexo inequívoco
da liberdade que existe no conjunto da sociedade, e vice-versa. Trata-se de uma
regra que não tem exceções.

Categorias: Jornalismo

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