Folha de São Paulo, Ilustrada, terça-feira, 27 de março de 2012
ENTREVISTA WANG SHU
A voz dos arquitetos chineses é muito baixa
VENCEDOR DO PRITZKER DEFENDE RECUPERAÇÃO DE
MATERIAIS E DE TRADIÇÕES CONTRA EFEITOS DA URBANIZAÇÃO DESENFREADA
FABIANO MAISONNAVE,
ENVIADO ESPECIAL A HANGZHOU E NINGBO (LESTE DA CHINA)
Nas últimas três décadas, as cidades chinesas
receberam 431 milhões de pessoas, a maior urbanização da história mundial.
Bairros tradicionais foram derrubados, dando lugar a avenidas de várias pistas e
espigões.
Na contramão desse processo estão Wang Shu, 48,
e seu escritório, Amateur
Architecture (arquitetura amadora). Radicado em
Hangzhou -longe dos grandes centros e com "só" 8,7 milhões de habitantes-,
prioriza materiais reciclados, integração da construção com o entorno e a
releitura de tradições construtivas chinesas.
Seus projetos, como o Museu de História de
Ningbo, cidade próxima a Hangzhou, se diferenciam pelo uso de sobras de
demolições da região e pelo desenho assimétrico de janelas e escadas.
No mês passado, a cruzada de Wang Shu ganhou o
reconhecimento do Pritzker, o prêmio máximo da arquitetura, que já homenageou
nomes como os brasileiros Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha. Foi o primeiro
chinês a receber a honra.
Na semana passada, Wang Shu falou à Folha,
num café de Hangzhou.
***
Folha – O sr. é crítico do processo de
urbanização chinês. Qual é a sua contraproposta?
Wang Shu –
O processo de urbanização chinês segue uma escala e uma rapidez sem precedentes.
Nesse processo, falta discussão. A China, agora, acredita excessiva e
exclusivamente na função do mercado. É preciso pensar, por exemplo, nas relações
entre construção e tradição cultural da cidade. E também é preciso refletir
sobre a transformação do modo de vida e sobre como as pessoas querem viver.
Não basta copiar os modelos de Cingapura ou de
Hong Kong. Mas, quando as pessoas percebem o problema, o estágio de construção
já está adiantado. Os arquitetos chineses precisam ter um papel mais ativo nesse
processo; sua voz ainda é muito baixa.
O sr. disse que, quando ouve sobre demolições
de hutongs [antigos bairros de Pequim], já não fica com raiva, só chora. O sr.
concorda com a afirmação de que o capitalismo é quem faz a revolução e que resta
à arte discutir estética?
Acredito que os arquitetos têm uma
responsabilidade social. A arquitetura muda a vida de pessoas, a cultura e a
história das cidades. A influência é sem precedentes e irreversível. Numa época
assim, os arquitetos se conceberam apenas como decoradores de apartamentos. Acho
isso uma perda das morais sociais fundamentais.
O sr. é elogiado por duas qualidades que
muitos dizem faltar à China: inovação e uso racional de recursos. Como é
possível avançar nesses aspectos?
Na verdade, estou sempre tentando fazer com que
essas duas coisas se combinem. E, de verdade, isso fazia parte da forma
tradicional de construção na China. A nossa maneira tradicional de construção
reciclava materiais, tinha sua própria maneira de desenvolvimento sustentável.
O material era normal, como tijolo, madeira;
parecia de fácil deterioração, mas a construção durava até mil anos, pois os
chineses o renovavam. Com a modernização, esse sistema foi rompido. Agora, as
construções tradicionais estão sendo demolidas. É um desperdício. Como
arquiteto, é impossível não responder a essa realidade.
Na modernização, essa ideia se reflete no uso de
materiais reciclados, na discussão da conexão entre construção e história e no
aproveitamento racional do material. Isso preserva de fato a tradição, em vez de
simplesmente fingir que a preserva, fazendo alarde do uso de elementos
tradicionais.
O seu trabalho é diversificado e inclui
museus, campi e um condomínio residencial. O que une esses trabalhos?
A discussão sobre a relação entre construção e
natureza, que se reflete em cada obra. Aquele condomínio com 200 apartamentos,
por exemplo. Cada um deles tem um espaço para flores e plantações. Isso é uma
parte importante do modo de vida: a vida com plantas é bem diferente da vida sem
plantas, pois o ser humano é ligado intimamente com a natureza.
Outro exemplo é o campus de Xiangshan, que
reflete uma fusão entre a construção, a montanha e o campo. Isso é mais
importante do que uma construção sozinha.
Com relação ao Museu de Ningbo, o sr. pode
explicar que materiais usou e como foi negociar o projeto?
O museu é a minha maior obra com uso de material
reciclado.
Antes, eu havia completado o campus de
Xiangshan. Muita gente diz que gosta da ideia daquele campus, mas eles não
acreditam que essa ideia possa ser aplicada também em outras construções.
Um ponto importante a respeito do museu é que
está situado no centro da cidade e foi aprovado pelo governo, o que é muito
difícil. Na verdade, quando apresentei meu desenho, eles não gostaram.
Eu ganhei uma licitação internacional para o
museu. Durante muito tempo, o governo rejeitou o meu projeto, eu insisti muito.
E, claro, durante esse processo, havia mais dificuldades. O próprio uso de
material reciclado: utilizei bambu e concreto, que não se combinam na construção
chinesa atual. Isso exige vários testes. O processo de avaliação foi complexo.
Os materiais precisaram ser aprovados por diferentes setores do governo. Foi
duro. Por isso, a realização dessa obra foi um milagre.
O sr. conhece a obra de Oscar Niemeyer?
O que eu sei é que ele tem 104 anos e parece
que, até agora, é comunista. Ele é idealista. A obra modernista dele reflete um
ar da América Latina. Gosto muito dele. Ele é de esquerda, tem posicionamento
próprio.
Pode nos falar sobre seus novos projetos?
Temos duas obras em andamento. Uma fica dentro
do campus de Xiangshan, um hotel para professores visitantes. Estou tentando
usar o solo como material de construção. E o outro fica na montanha, perto de
Ningbo. É um novo museu, que vai exibir presentes que as famílias de noivas
davam aos noivos antigamente. Para essa obra, estou pesquisando a construção
tradicional com pedras, pois ali há muitas.
RAIO-X: WANG SHU
VIDA
Nasceu em 1963, em Urumqi, e se formou em
arquitetura em 1985, no Instituto de Tecnologia de Nan Nanjing. Vive em Hangzhou
CARREIRA
Com sua mulher, Lu Wenyu, fundou, em 1997, o
estúdio Amateur Architecture. O nome do escritório alude às características que
ele associa ao construtor amador: espontaneidade, uso de técnicas artesanais e
de tradições construtivas. Coordena a Escola de Arquitetura da Academia Chinesa
de Artes, em Hangzhou
OBRAS E PRÊMIOS
Sua obra de maior destaque é o Museu de Ningbo;
ganhou prêmios como a Medalha de Ouro da Arquitetura, na França. Neste ano,
tornou-se o primeiro chinês a vencer o Pritzker, considerado o Nobel da
arquitetura
Assimetria e reciclagem marcam projetos
DO ENVIADO A HANGZHOU E NINGBO (LESTE DA CHINA)
Caso raro entre os ganhadores do Prêmio Pritzker, todos os projetos de Wang Shu
estão em seu país natal, sendo que os principais ficam concentrados na região de
Hangzhou.
A maior das construções assinadas por Wang Shu é o Museu de História de Ningbo.
Construído entre 2003 e 2008, tem mais de 30 mil metros quadrados. A obra usou
sobras de construção, como pedras e telhas, e provavelmente é a mais conhecida
do arquiteto.
Do lado de fora, a fachada é marcada pelas aberturas de vários tamanhos e
formatos que caracterizam a sua obra.
Do lado de dentro, os corrimãos das escadas e as peças metálicas desalinhadas no
teto transmitem uma sensação de vertigem, resultando num conjunto que consegue
ser lúdico sem, no entanto, perder a sobriedade.
O arquiteto desenhou ainda vários edifícios do campus Xiangshan da Academia de
Arte da China, em Hangzhou.
No campus, fica ainda mais clara a proposta do arquiteto de sempre adaptar a
obra ao seu entorno -no caso,um terreno levemente acidente, pontuado por
pequenos lagos.
(FM)
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