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O
Estado de São Paulo, Sábado, 9 agosto de 2008


CADERNO 2

 
 


 


Aparência era essencial para Maria Antonieta


 


Ícone da frivolidade,
a rainha, em seus 23 anos no poder, usou a vaidade para ter prestígio político


 


Ubiratan Brasil

 

A história de um reinado
nas estampas de um vestido – em 2000, quando lançou sua coleção Homeless para a
Christian Dior, o estilista John Galliano surpreendeu com um modelo cujo corte
remetia ao século 18. Com um decote provocante, cintura espartilhada, laços
graciosos no corpete e uma profusão de saias e babados inflados por anáguas e
armações, o vestido se chamava sugestivamente Maria Antonieta, homenagem à mais
colorida rainha da França, a mulher que viveu do esplendor ao terrível fim em 23
anos de reinado.

 

Ascensão e queda narrados
no modelo de Galliano. Na estampa do lado esquerdo do quadril, o estilista
reproduziu Maria Antonieta com um penteado altíssimo e em seu famoso falso traje
de pastora – basicamente, um avental amarrado sobre um vestido pastel. Já no
lado direito, surge a mesma mulher, também desprovida de atributos régios mas de
aspecto medonho e não mais extravagante – com a cabeça rudemente tosada, Maria
Antonieta desponta trajando um vestido prático, com um simples lenço branco
amarrado no pescoço e um rubro barrete enfiado na cabeça. Ali, ela caminhava
para a guilhotina, condenada pelos revolucionários que, naquele ano de 1793,
derrubavam o regime monárquico.

 

Não foi apenas o fascínio
pela história de Maria Antonieta que inspirou John Galliano. Em seu vestido, ele
mostrou como a moda adotada pela rainha ao longo de seu poder era identificada
como um arma-chave em sua luta por prestígio pessoal, autoridade e por vezes
mera sobrevivência. A relação era tão forte entre o que vestir e o reinado de
Maria Antonieta que até inspirou a historiadora Caroline Weber a escrever Rainha
da Moda – Como Maria Antonieta se Vestiu para a Revolução (tradução de Maria
Luiza X. de A. Borges, 458 páginas, R$ 69), que a Jorge Zahar lança na próxima
semana.

 

“Percebi que havia uma
relação muito forte entre moda e o poder de Maria Antonieta quando comecei a
pesquisar sobre o Regime do Terror, na França, e percebi que políticos,
jornalistas, oradores, todos faziam referência aos vestidos e aos penteados da
rainha”, conta Caroline ao Estado. “Notei que havia ali um significado político
muito forte.”

 

O livro, recheado com boas
ilustrações, retrata a ostentação e o desvario de um mundo aristocrático já
desaparecido, mas cujo ícone, Maria Antonieta, ainda inspira não apenas Galliano
como também uma boa fatia da cultura contemporânea, do cinema popular às
performances de Madonna.

 

Nascida na Áustria em
1755, Maria Antonieta casou-se ainda jovem com o príncipe francês Luís Augusto,
matrimônio ardilosamente preparado por sua mãe, a imperatriz Maria Teresa, e
pelo avô do rapaz, o rei Luís XV, a fim de estreitar os laços entre as duas
nações e fortalecer seu poderio, particularmente diante da Inglaterra.

 

Apesar de admirar o porte
da nova rainha, os súditos franceses inflamavam-se com a demora do surgimento de
uma gravidez (na verdade, Luís Augusto, depois rei Luís XVI, parecia ter aversão
a mulheres) e contra a atitude de Maria Antonieta, que encenou uma revolta
contra a etiqueta cortesã arraigada, transformando suas roupas e acessórios em
expressões desafiadoras de autonomia e prestígio.

 

“Dando início a uma série
de audaciosos experimentos estilísticos que durariam a vida inteira (e que um
aristocrata contemporâneo descreveu como constituindo ‘uma verdadeira revolução
na indumentária’), ela desafiou as idéias estabelecidas sobre o tipo e a
extensão do poder que uma rainha francesa deveria possuir”, escreve Caroline
Weber.

 

Isolada e hostilizada por
facções intrigantes, a recém-chegada austríaca foi obrigada a encontrar um meio
de sobreviver na França. Adotou, então, o estilo como arma e, a partir de roupas
e acessórios cuidadosamente não convencionais, Maria Antonieta cultivou o que
mais tarde viria a se chamar de “aparência de prestígio político”.

 

“Do traje de montaria
masculino, que exibia nas caçadas reais, às peles brancas e aos diamantes que
apreciava levar em passeios de trenó, e dos penteados monumentais, que ostentava
nos lugares mais elegantes de Paris, aos disfarces intrincados que usava nos
bailes à fantasia em Versalhes, as surpreendentes modas que Maria Antonieta
lançou revelaram mais do que uma esposa inadequada ou o símbolo de um esforço
diplomático fracassado”, observa Caroline. “Esses trajes, menosprezados como
meros exemplos da frivolidade irrefletida da rainha, identificaram-na como uma
mulher que podia vestir, gastar e fazer exatamente tudo como bem entendia.”

 

Auxiliada por uma
inspirada classe de estilistas parisienses, Maria Antonieta cultivou aparências
brincalhonas, efêmeras e imprevisíveis. Segundo Caroline, uma de suas modas
características foi o pouf, um oscilante penteado, feito com muito talco, que
recriava cenas de eventos tanto histórico como corriqueiros. Assim, não era
incomum ver no alto da sua cabeça a recriação da cena de uma vitória naval
contra os britânicos. Ou ainda retratos bucólicos, com animais pastando,
moinhos, camponeses e riachos murmurantes. Enfim, Maria Antonieta punha em seu
cocuruto o que hoje se chama ‘instalação artística’.

 

Ela também combatia a
pesada moda atrelada a armações de saias e espartilhos com vestidos chemise,
muito mais soltos e confortáveis. O curioso é que, mesmo entre as mulheres da
burguesia que consideravam chocantes tais inovações, Maria Antonieta era fonte
de inspiração, ou seja, ao mesmo tempo em que criticavam a rainha por suas
roupas, essas pessoas continuavam a imitá-la freneticamente.

 

Rainha, Maria Antonieta
dispensou boa parte das damas de companhia, e povoou a corte de gente jovem e
elegante. Adorava organizar corridas de cavalo, e se divertia em passeios de
carruagem. Estas, por ordem dela, corriam a toda velocidade. Freqüentava óperas,
teatros, e participava de bailes, com o consentimento do rei, que não se
incomodava em deixá-la se divertir sem ele.

 

O estilo heterodoxo de
Maria Antonieta, porém, tanto a tornou uma celebridade como contribuiu para sua
condenação. “Ela incitava uma reação violenta entre cortesãos que se opunham
vigorosamente à sua ascensão e se irritavam com o modo como ela contestava
veneráveis costumes reais”, afirma Caroline. “Esses aristocratas, por sua vez,
insultavam-na como uma afoita intrusa austríaca que transgredia imprudentemente
os limites de sua posição de rainha, eclipsando o marido como centro da atenção
dos súditos e desrespeitando a sua sagrada autoridade.”

 

A rainha era acusada
também de sangrar os cofres públicos a fim de saciar seus desejos excêntricos.
De fato, antes que as forças revolucionárias tomassem Versalhes em outubro de
1789, a coleção de Maria Antonieta preenchia três aposentos inteiros do castelo.
Com o agravamento da insurreição, a família real foi obrigada a deixar
Versalhes, mas não conseguiu escapar da ira dos inimigos – rei e rainha foram
encarcerados até que fossem executados em 1793. Nesse período, seus bens foram
saqueados e, da deslumbrante coleção de Maria Antonieta, sobraram apenas um
sapatinho enfeitado com fitas que ela perdeu ao fugir do palácio e pedaços de
roupas destruídas. Embora pequena, a melhor coleção de relíquias do vestuário de
Maria Antonieta está preservada no Musée Carnavalet, em Paris.

 

Mas, mesmo depois de sua
morte, o estilo de Maria Antonieta persistiu, seduzindo súditos pelo mundo
afora. Embora seu guarda-roupa tenha sido matéria de sonhos e pesadelos, ele
ainda inspira filmes de sucesso como Marie Antoinette, com Norma Shearer,
produção de 1938; o longa O Enigma do Colar, produzido por Charles Shyer em
2001; e o recente Maria Antonieta, de Sofia Coppola, inspirado na biografia
escrita por Antonia Fraser.

 

Também Madonna se valeu
por duas vezes de sua figura: primeiro na execução de Vogue para o MTV Music
Awards de 1990, em que ela e os dançarinos usaram trajes e penteados inspirados
em Maria Antonieta; e no material promocional de sua turnê Reinvention, de 2004,
quando ela usou um vestido espartilhado de Christian Lacroix em estilo do século
18. A famosa boneca Barbie também surgiu com um modelo copiado das roupas da
rainha, enquanto a campanha publicitária de um relógio suíço, da marca Brequet,
se inspirou em um modelo supostamente ofertado a Maria Antonieta por um amante.

 

Vítima da moda, mas também
responsável por torná-la “espelho da História”, Maria Antonieta desafiou, como
poucas, as idéias estabelecidas sobre o tipo e a extensão do poder que uma
rainha deveria ter.

 

Categorias: Moda

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