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O Estado de São Paulo, Domingo, 14 outubro de 2007


CADERNO 2

 



Bastidores, talento e projeção internacional



Premiação de Nelson Freire e indicação da Osesp no Gramophone Awards sugerem
diálogo entre projetos brasileiros e o estado atual da indústria fonográfica

João Marcos Coelho

A nova Osesp fecha o ciclo de seus primeiros dez anos
com um gol de placa: o CD gravado em fevereiro de 2006 na Sala São Paulo, onde
acompanha o pianista russo Yevgeny Sudbin nos concertos nº 1 de Tchaikovsky e
Medtner, chegou à lista final para a escolha da melhor gravação de 2007,
comandada pela mais prestigiosa revista especializada européia, a inglesa
Gramophone. Melhor ainda. Nelson Freire se entroniza em definitivo, ungido pelo
circuito britânico, como um dos gênios do piano na atualidade: venceu, com seu
álbum com os concertos de Brahms, na categoria dedicada à melhor gravação de
concerto com orquestra. Qual o real significado de conquistas como estas?

 

Primeiro, Freire. Apesar do feito, ele não é inédito.
Muitas décadas depois, repete – o que é muito – lances extraordinários de duas
outras pianistas brasileiras, Guiomar Novaes e Magda Tagliaferro. A figura do
notável virtuose vindo de países exóticos, aliás, foi uma constante desde meados
do século 19, quando Liszt e Paganini inauguraram a era dos superstars da
música. Era uma luta heróica o recém-chegado de terras remotas impor-se tocando
a grande música européia . Freire estudou em Viena, fincou pé no mercado
francês e, tendo Paris como base, construiu aos poucos um prestígio que agora se
consolida de vez.

 

Agora, a Osesp. Jamais uma orquestra brasileira chegou a
este patamar de exposição na vida musical internacional. Não se trata de um
virtuose, mas de uma centena de músicos reunidos num grupo que, para fazer
música de qualidade, precisa de três coisas básicas: 1) competência; 2) talento;
3) tempo e disciplina. Em uma década, a Osesp quebrou o paradigma de que
orquestra de país periférico só toca com competência sua música nacional. Claro:
se o músico, o grupo camerístico ou a orquestra forem medíocres, então não
valerá a pena arriscar-se no grande repertório. O problema não está na certidão
de nascimento, mas no talento e no estudo.

 

A Sinfônica Brasileira chegou a fazer turnês
internacionais – mas foram apenas espasmos. O case Osesp é mais sólido.
Apóia-se em uma sala própria de concertos; em programação inventiva com destaque
para o século 20 e os brasileiros e presença constante de grandes músicos
internacionais; prevê turnês anuais; e a gravação de CDs. É um belo projeto,
porém convencional. A Osesp provavelmente é uma das orquestras que mais gravam
em todo o mundo. Uma gravação com orquestra sinfônica no exterior custa US$ 250
mil. Por isso as grandes gravadoras puxaram o freio de mão, gravam basicamente
ao vivo e já disponibilizam parte destes registros na internet mediante módicas
somas. Já a Osesp tem seu programa de gravações subsidiado pelo Estado – pode se
dar ao luxo de desprezar as planilhas de vendas e prosseguir este ambicioso
programa discográfico, que já conta com 24 CDs. Eles já cobrem as seis
sinfonias, aberturas e suítes de Camargo Guarnieri (3 CDs); CDs dedicados a
Santoro e Mignone; uma integral das Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos; uma
quase integral das sinfonias de Beethoven (falta a Eroica). E prevê para 2008 o
lançamento da importante e necessária integral dos Choros de Villa-Lobos. Há
ainda os CDs destinados ao mercado brasileiro pelo selo Biscoito Fino. Este
primeiro CD, com a Sinfonia nº 1 e a Abertura Romeu e Julieta de Tchaikovsky,
prefigura uma integral das sinfonias.

 

Nesta altura do projeto Osesp, onde os concertos são
gravados e transmitidos pela Rádio Cultura FM, só falta aderir ao download. A
acertada decisão de manter um núcleo de gravação no staff da orquestra facilita
este processo de democratização do acesso às gravações de seus concertos via
download. Pesquisadores, profissionais da indústria e os próprios músicos já
concordam que o CD, em futuro muito próximo, só servirá como bônus e cartão de
visita para concertos. A vida musical é que vai se fortalecer.

 

De volta à premiação. A idéia não é desqualificar estas
importantes conquistas de Nelson Freire e da Osesp. Mas é preciso saber algo a
respeito dos bastidores dos Gramophone Awards. O crítico inglês Norman Lebrecht
é o terror do mundinho clássico, pois adora revelar os seus podres. Em seu
último livro, Vida e Morte da Música Clássica , Lebrecht mancha a reputação da
revista Gramophone, pioneira do ramo, criada há 84 anos em Londres. Diz que ela
é pau-mandado das gravadoras, com as quais mantém relações no mínimo
promíscuas . Uma olhada rápida nos quinze premiados nas variadas categorias
mostra que Lebrecht pode ter razão, pois deixa evidentes algumas coincidências,
acomodações suspeitas e uma convivência estreita demais entre a redação e o
comercial. A Deutsche Grammophon, por exemplo, que este ano não tinha nada que
valesse a pena, foi distinguida como gravadora do ano . Patriotadas se
amontoam. Selos e músicos ingleses são distribuídos nas categorias. Em geral,
são excelentes, mas percebe-se a intenção de contentar a tudo e a todos. Outros
selos, como a finlandesa Ondine ou a sueca BIS, que anunciam regularmente na
revista, também costumam faturar prêmios.

 

Sem descuidar, é óbvio, da qualidade artística, a
Gramophone sempre parece pretender combinar critérios artísticos com políticos
e/ou comerciais. Até o caso de Nelson Freire se assemelha a aqueles tão
conhecidos na história do Oscar, onde o artista foi prejudicado várias vezes
antes e então ganha um prêmio pelo conjunto da obra. Ele já merecia ter ganho
pelo menos por um de seus CDs dedicados a Chopin. Durante décadas ele foi o
chamado pelos franceses de nosso maior tesouro escondido . Pois desde que
passou a gravar para a Decca com exclusividade, Freire teve muito mais espaço
nas revistas inglesas, Gramophone à frente. Nada disso, porém, tira o brilho
dessas conquistas. Ao contrário. Atesta que se não houver qualidade artística,
de nada adiantam maquinações de bastidores ou coisa que o valha. O talento,
felizmente, acaba falando mais alto.

Categorias: Música

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