Nova pagina 5

O
Estado de São Paulo, Domingo, 17 fevereiro de 2008



CADERNO 2

 

           
Bauman,
um visionário na sociedade da paranóia

 


Em seu livro Medo
Líquido, o polonês faz inventário dos pavores contemporâneos


Lilia Moritz Schwarcz

Franklin Roosevelt
concluiu seu discurso de posse, em 1933, dizendo: “Permitam-me afirmar minha
crença inabalável de que a única coisa que devemos temer é e próprio medo.” No
filme Alice nas Cidades, de Wim Wenders, a personagem principal confessa só ter
medo do seu medo. O fato é que vivemos numa época de temores: difusos, dispersos
e indistintos. Criamos uma parafernália de mecanismos que nos auxiliam a ter a
ilusão de que controlamos o imprevisto. Carros blindados, edifícios murados,
vidros escurecidos, condomínios fechados; todo esse conjunto lega a frágil
certeza de que estamos protegidos. Mas o efeito final acaba sendo oposto: quanto
mais nos protegemos, mais nos sentimos inseguros, com medo do que conhecemos e
do que está por vir.

 

E essa sensação não é
nova. Lucien Febvre tratou da experiência de se viver na Europa do século 16 e a
resumiu da seguinte maneira: “Medo sempre e em toda parte.” O historiador
mostrava, em Le Problème de L’Incroyance Au XVI Siècle, os vínculos profundos
que se estabeleciam entre medo e escuridão. A incerteza diante da imensidão que
se configurava fora do lar gerava a constante sensação de perigo, manifesta numa
série de documentos de época. Outros autores dedicaram-se ao tema, analisando
seu impacto em diferentes momentos históricos. Um dos mais conhecidos é Phillipe
Ariès, que escreveu sobre a morte no Ocidente, examinando as saídas rituais que
foram sendo criadas, sempre no sentido de trapacear com a morte.

 

Mas, se parece mais
fácil olhar para contextos distantes, já tratar do presente tem se revelado uma
empreitada problemática: poucos foram os trabalhos que cuidaram de nossos
próprios medos. Não me refiro aos estudos sobre violência, ou às análises acerca
da desigualdade social. Penso nos ensaios que abordaram o medo como objeto
específico de análise. É certo que relatos de genocídios ou do Holocausto
exploraram facetas mais escondidas de nossa inserção no mundo. Primo Levi, por
exemplo, narrou em seus livros com imensa sensibilidade e dureza a experiência
de ser um prisioneiro num campo de concentração e a dificuldade de viver em um
mundo que tenha “naturalizado” tal tipo de vivência e incorporado o medo. Esse
não foi o caso de Levi, que denunciou enquanto pôde os monstros que existem
dentro de nós. No entanto, o fato é que temos destinado um local especial a esse
tipo de literatura, chamando-a de “relato de delação”, sendo que caberia a ela
incorporar tais reflexões. Mais uma vez, falar das fragilidades alheias é mais
fácil e confortável do que vislumbrar as nossas próprias.

 

É em torno desse tema
atual e polêmico que se detém o sociólogo Zygmunt Bauman. Professor emérito de
sociologia das universidades de Varsóvia e Leeds, Bauman teve seus livros e
artigos censurados em 1968, sendo obrigado a exilar-se primeiro no Canadá,
depois nos Estados Unidos, mais tarde na Austrália, fixando-se após um tempo na
Inglaterra. Tal situação propiciou-lhe a condição de estrangeiro em qualquer
lugar e uma visão cosmopolita e compreensiva acerca do que chama de nossa
“modernidade líquida”. Famoso por seu estilo a um só tempo claro e desafiador, o
sociólogo tem se revelado um grande pensador/ provocador de nossos tempos. Em
sua vasta obra, tem dedicado um lugar especial a temas da contemporaneidade.
Além do mais, na contramão dessa naturalização do medo, nesse seu novo livro –
Medo Líquido (tradução de Carlos Alberto Medeiros) – o sociólogo analisa mais
uma faceta desta castigada modernidade.

 

O livro funciona como
uma espécie de inventário de nossos medos, sem recusar os temas menos nobres.
Analisa, por exemplo, o fenômeno do Big Brother e o chama de “contos morais” de
nossa época. Mostra como esse tipo de programa e outros reality shows de uma
maneira geral acabam por banalizar o medo e a morte, fazendo deles um grande
simulacro; quando não um objeto para estetização. É fato que todas as culturas
podem ser entendidas como dispositivos engenhosos destinados a adornar o medo e
a morte, assim como torná-los mais contempláveis. No entanto, foi a sociedade
moderna que os transformou em lucro. O medo vende e atrai público, o que faz com
que o circuito torne-se ainda mais perverso. Não há quem não tema o medo, mas
não há quem não queira se defrontar com ele, sobretudo quando mediados por uma
tela.

 

Medo também se associa
à idéia de mal. Auschwitz, Gulag, Hiroshima gerariam metaterrores; seriam
incubadores de medo gestados e difundidos por nossa percepção. Por outro lado,
pensar neles implica desejar que se desvaneçam e que fiquem seguros em sua
invisibilidade. Hannah Arendt descobriu nos relatórios apresentados pelos doutos
psicanalistas chamados a testemunhar no julgamento de Eichmann que o
“comportamento dele era normal”. Aliás, a atitude do nazista teria sido
considerada não só “normal”, mas até “agradável” em relação à esposa, aos
irmãos, aos filhos e aos amigos. O problema reside em pensar que, se Eichmann
era “normal”, nós também podemos ser, ou, quem sabe, somos nós que nos
transformamos em bárbaros, quando observados a partir dessa outra lente.
Pensando sob outro prisma: se os executores podem ser “pessoas como nós”, o que
mais assusta é vislumbrar a hipótese de que, quem sabe, seríamos capazes de nos
transformar naquilo que tanto receamos ser: genocidas, assassinos, nazistas…
todos “normais”.

 

Nosso temor também se
dirige ao que é considerado “inadministrável”. Temos medo do tsunami, do Katrina
e outros desastres naturais. Tememos erros de cálculo e a negligência humana.
Medo é, pois, o outro nome que damos à nossa “falta de defesa”. E tudo isso
ganha potência renovada diante desse mundo globalizado, que permite temer o que
não conhecemos e, também, aquilo que jamais conheceremos. Diante dessa sociedade
aberta nos tornamos ainda mais vulneráveis e nossa segurança é pouco confiável.
Vivemos ameaçados por guerras de proporções universais, por conflitos
econômicos, políticos e sociais; pela visão apocalíptica de um confronto entre o
bem e o mal; pela regionalização da política.

 

Foi o filósofo Jacques
Derrida quem observou como cada morte é o fim de um mundo. Numa época em que o
pensamento intelectual está cada vez mais sujeito a suspeitas de toda ordem,
nada como um sociólogo do calibre Bauman para nos ajudar a restituir a fé no
pensamento e no poder das idéias. Adepto da noção de “iluminação”, no seu
sentido filosófico, ele é quase um “profeta” de nossos tempos nervosos, mesmo
negando ser. É só nesses momentos que Medo Líquido perde um pouco de seu poder
de crítica e se converte numa espécie de livro de auto-ajuda, apesar de seu
valor intelectual indubitável. Particularmente, prefiro quando Bauman duvida do
que quando tem certeza. Afinal, estamos diante de um dos autores mais
importantes a tratar da pós-modernidade; adepto de uma sociologia reflexiva e
que incide sobre nós mesmos.

 

Este livro recupera,
ainda, o trajeto original de um pensador que, após dedicar-se a estudos do
marxismo, passou a analisar a sociedade de consumo para chegar à nossa
pós-modernidade. Já em suas análises sobre o Holocausto (e na sua concepção de
“obediência cega” e de “suspensão de responsabilidade moral”) percebe-se o
caminho desse sociólogo que viu na modernidade um processo acelerado de
racionalização combinado com uma carga alta de mistificação e, no caso da obra
que aqui comentamos, medo. Por isso, a modernidade carrega ao mesmo tempo duas
lógicas: é sempre sólida, mas também líquida. O 11 de Setembro desempenhou para
a modernidade papel semelhante ao que a Tomada da Bastilha representou para o
período moderno. Quem não estava lá pensou que poderia ter estado e, assim,
padeceu do mesmo temor. Tendo assolado o mundo dos humanos, o medo é capaz de
impulsionar e de se intensificar por si mesmo. Ele é, assim, em boa parte das
vezes, não a conseqüência, mas a causa de nossos males devidamente amplificados.

 

Lilia Moritz Schwarcz é prof. do Departamento de
Antropologia da USP e autora de As Barbas do Imperador


 


Medo e
mal são irmãos siameses na modernidade, diz o sociólogo


Bauman sugere que
cultura deixe de ser produto e vire arma contra fundamentalismo

 

Antonio Gonçalves Filho

O octogenário
sociólogo polonês Zygmunt Bauman vive perguntando aos jornalistas se leram o
Livro de Jó. Compreensível. Fica bem melhor ler seu mais recente livro, Medo
Líquido, se o candidato conhecer o sofrimento do personagem bíblico: Jó era bom
e, no entanto, foi punido severamente por Deus. Por quê? Foi também a pergunta
daqueles que sobreviveram ao terremoto de Lisboa, em 1755. De repente, a razão
iluminista recusou-se a admitir o “ato de Deus” e tudo mudou. Veio a modernidade
e com ela o processo de secularização. Depois, o 11 de setembro e, de novo, o
medo e a pergunta que não quer calar. O mal, diz Bauman nesta entrevista ao
Estado, é que só conseguimos dirigir um olhar retrospectivo para as catástrofes.
Para enfrentar o “medo líquido” que assola o mundo globalizado, o sociólogo
sugere uma mudança radical em nosso comportamento.

 


O medo e o mal são
irmãos siameses, segundo seu livro. Parece que o senhor concorda com Primo Levi
quando ele diz que todos nós podemos ser a encarnação do mal. Não se pode
esquecer que Bush justificou a invasão do Iraque como uma “guerra contra o mal”
e que o ódio do Islã contra o Ocidente é também uma “guerra santa” contra o que
os fundamentalistas consideram o mal absoluto. Em que medida essas visões são
diferentes?

 

Fundamentalistas,
sejam nascidos no Ocidente ou no Oriente, são divisionistas por definição. Todo
fundamentalista concorda com seu inimigo em um ponto: “É o que acredito – e
apenas o que eu acredito – o absolutamente certo; todas as outras crenças estão
absolutamente erradas.” Os fundamentalistas pertencem à categoria dos que pensam
em soluções locais para problemas globais. Ora, problemas globais só podem ser
resolvidos de forma global. As soluções exigem tempo, muito tempo, embora nem
tanto como em séculos passados. Não conseguimos nem mesmo assumir a tarefa de
construir uma rede de instituições globais. Temos um longo caminho montanha
acima. Vamos torcer para chegarmos ao topo, porque a outra opção é
aterrorizadora.

 


O escritor espanhol
Juan Goytisolo e o Livro de Jó são mencionados em seu livro. Eles expressam
melhor que outros autores e livros o dilema da sociedade pós-moderna, ou
“líquida”, como o senhor prefere?

 

A conclusão a que
cheguei, ao tentar entender a ansiedade dos contemporâneos, é a seguinte: o que
faz nossos medos particularmente dolorosos, insuportáveis, é a falta de clareza
sobre as suas causas. Em outras palavras, o que nos faz sofrer mais do que
qualquer outra coisa, envenenando nossos prazeres cotidianos e provocando
pesadelos, é a própria incerteza, tanto sobre a condição humana como sobre nossa
ignorância. É uma verdade antiga, contida no Livro de Jó e esquecida: ainda que
houvesse razões sensíveis para as catástrofes que se abatem sobre nós, seríamos
incapazes de compreendê-las, a despeito de nossa sabedoria e lógica. Goytisolo
nota que o nosso conhecimento do mal se dá apenas quando olhamos para trás,
retrospectivamente. É uma observação aguda a sua, referendada pela quase
imperceptível erosão de nossos direitos e liberdades individuais nos tempos que
correm. O processo todo só pode ser entendido em retrospecto, quando é tarde
demais para restaurar aquilo que está perdido. Nos países que se consideram
democráticos as pessoas já se renderam sem resistência: admite-se que
“suspeitos” sejam seguidos pela polícia ou mantidos presos sem julgamento, ou
ainda que sejam deportados sem provas legais – apenas como “medida de
segurança”. A maioria das pessoas aceita essas arbitrariedades, seguras de que
atingem apenas uma minoria. Mas o fato é que, desrespeitados os direitos
humanos, não há como impedir a avalanche que vem por aí.

 


O senhor diz que os
orientadores de futuros homens-bomba são intelectuais que se aproveitam da
ignorância do próximo, mas encerra o livro com esperança numa possível aliança
entre intelectuais e pessoas do povo. Esse otimismo é justificável?

 

Intelectuais são, por
definição, seres engajados em criar e difundir cultura. No século 18, o termo
cultura era entendido como um esforço para promover, facilitar e acelerar o
progresso, social e espiritual. A cultura, assim, entrou para o vocabulário
moderno como uma declaração de intenções – de educar, iluminar, melhorar e
enobrecer as pessoas do povo, recém-elevadas à categoria de cidadãos do
Estado-nação: era, enfim, o casamento da nação emergente, auto-elevada à
condição de Estado soberano, com o Estado emergente, que clamava pelo papel de
guardião da nação. O projeto do Iluminismo alocou à cultura (entendida como
trabalho de cultivo) o status de principal ferramenta na criação do Estado-nação;
simultaneamente, elegeu a classe instruída como agente dessa operação. Nesse
trânsito entre ambição política e ruminações filosóficas, os dois objetivos do
projeto iluminista (explicitamente proclamados ou tacitamente presumidos)
cristalizaram-se como disciplina dos súditos do Estado e a solidariedade dos
cidadãos. O Estado-nação emergente sentiu-se, então, encorajado pelo crescimento
rápido de potenciais trabalhadores-soldados, vistos como propulsores do
crescimento de seu poder diferencial. Contudo, os esforços para a construção do
Estado-nação, conjugados com o progresso econômico, resultaram no crescimento de
“redundantes” (parte da população que precisava ser urgentemente descartada até
segunda ordem). O novo Estado-nação foi logo pressionado a buscar espaços fora
de suas fronteiras para acomodar esse excesso de pessoas e produtos, incapazes
de serem “absorvidos”. A sociedade de hoje é o resultado disso, uma sociedade de
consumidores e, como todo o resto, a cultura virou um produto como outro
qualquer. A transformação gradual da idéia de cultura, do conceito original
iluminista à sua reencarnação líquida, é operada pelas mesmas forças que
promovem a emancipação dos mercados das limitações remanescentes de natureza
não-econômica – restrições sociais, políticas e éticas, entre outras. Enfim, a
cultura ‘líquida’ moderna não tem pessoas para cultivar, mas clientes para
seduzir.


1 comentário

Os comentários estão fechados.

× clique aqui e fale conosco pelo whatsapp