Revista Pesquisa Fapesp,Edição Impressa 131 – Janeiro 2007
Ciência :: Nutrição
Corpos sob pressão
Ginastas e atrizes sofrem dos mesmos dramas que as modelos
Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto
O pediatra
Mauro Fisberg assistiu a um desfile de moda pela primeira vez há dez anos. Não
para ver as novidades, mas para acompanhar as adolescentes que trabalhavam como
modelos e começavam a ser atendidas no ambulatório que havia acabado de criar na
Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Em vista da escassez de atendimento
à saúde das adolescentes que sonham em ser uma Gisele Bündchen, Fisberg começou
há alguns anos a discutir o que fazer com as agências de modelos. Antes era
pouco ouvido. Agora, depois da morte da modelo brasileira Ana Carolina Reston e
da estudante de moda Carla Casalle, ele tem observado maior disposição para o
diálogo e a busca conjunta de soluções. As modelos, porém, não são as únicas
vítimas da pressão por um corpo perfeito, que persegue também ginastas,
bailarinos e atores. Fisberg sabe que não conseguirá evitar que meninas e
meninos de 12 ou 13 anos entrem nessas profissões de alto risco para a saúde,
mas defende uma supervisão mais intensiva para os mais novos, com idade mínima
para ingresso no trabalho e a continuidade dos estudos.
Como o
senhor avalia a atenção que se deu à morte de duas modelos brasileiras por
anorexia?
— É
transitória. Não acredito que se vá discutir uma mudança de imagem corporal das
modelos. Quem define o padrão é o mercado. Não o nacional, mas o internacional,
que movimenta bilhões e bilhões de dólares e não se guia pela saúde. Hoje o
manequim procurado é 38, há dez anos era 40 ou 42. Daqui a alguns anos talvez
seja 43, 44, 45, não importa. Essa preocupação atual com a saúde é,
infelizmente, passageira. Daqui a pouco será esquecida pela mídia. Mais do que
pela gravidade, as duas mortes ganharam visibilidade por a mídia ser formadora
de opinião e porque a moda atualmente está associada à magreza, uma situação
chamativa e complexa. Infelizmente, há padrão de consumo estético. Assim como os
meninos querem ser jogadores de futebol, uma profissão glamorosa e que
teoricamente traz altas recompensas, as meninas querem ser Gisele Bündchen. É
uma visão absolutamente distorcida. Só um menino ou menina entre milhões da
mesma idade consegue ser modelo ou jogador de futebol. O problema é que essas
profissões representam uma oportunidade de ascensão social tremenda, que, ao
menos em princípio, não depende de trabalho físico, mas da característica física
da pessoa. Existe um grupo de meninas que têm o biotipo adequado para ser
modelo, mas nosso medo é que a menina normal busque uma característica que não
pode atender porque não tem o corpo de que precisa para ser modelo. Ela vai
fazer o máximo para chegar perto desse corpo, e aí há riscos grandes de saúde.
Temos visto que mães e pais são grandes incentivadores e aceitam qualquer
sacrifício em nome dessa possibilidade de ascensão social.
Em
setembro, os organizadores da Semana de Moda de Madri disseram que as modelos
com índice de massa corporal (IMC) inferior a 18 não entrariam na passarela. Que
lhe parece?
— Foi uma
proposta para uma única semana, não é uma lei nacional. Foi adotada pela Rússia
e por Israel, mas França, Estados Unidos e todo o Oriente a rejeitaram. Paris
tem um outro tipo de restrição mais interessante: não aceita meninas menores de
16 anos. Temos de pensar nessas propostas porque ainda não houve uma discussão
científica. De onde apareceu o índice de massa corporal 18? É um índice
arbitrário, de gente que não trabalha com adolescência. Teoricamente para
considerar uma mulher saudável o IMC é 18,4. Além disso, o IMC é uma medida de
distribuição populacional. A probabilidade de uma garota com IMC inferior a 18,5
estar desnutrida é de 95%. Mas 5% delas não são desnutridas. Outro ponto é que
uma característica puramente antropométrica, por si só, não serve para nada.
Temos de avaliar outras características para ver se uma pessoa é saudável, como
idade e sexo. Uma parte das meninas com IMC baixo se encontra na faixa de
normalidade. São magras e saudáveis, sejam modelos ou não. As modelos
brasileiras mais velhas, de nível internacional, têm o IMC médio de 17 ou 17,5.
Nas modelos mais jovens varia muito. Uma menina de 13 anos com IMC de 15,6 pode
ser saudável, mesmo que não seja modelo. Se determinarmos arbitrariamente o IMC
18, haverá um universo grande de meninas, de 16 a 18 anos, com IMC menor que 18
que são absolutamente normais do ponto de vista clínico, pediátrico ou médico.
Não é bom
que alguém tenha lançado um valor inicial e aberto o debate?
—
Deveríamos fazer o mesmo com outras profissões. Há duas atividades que
mereceriam mais atenção: a ginástica e o balé. Seus praticantes estão sujeitos a
uma pressão intensa, vivem sob normas rígidas e se valem de subterfúgios para
diminuir o peso e perder massa corporal. Há anos acompanhamos grupos de risco da
ginástica rítmica, mas como o número de praticantes é pequeno os problemas não
chamam a atenção. Só mais recentemente, depois que começaram a ganhar medalhas,
as ginastas passaram a ser mais conhecidas.
Qual é o
risco de as pessoas desses dois grupos, balé e ginástica rítmica, desenvolverem
problemas alimentares?
— É maior
do que o das modelos. Os transtornos alimentares incluem uma série de patologias
psiquiátricas: anorexia, bulimia, compulsão e duas outras patologias cujos
mecanismos ainda não estão determinados, mas que já são muito discutidas: a
ortorexia e a vigorexia.
O que são?
— A ortorexia é a busca patológica pelo corpo perfeito ou pelo estilo de vida
saudável. São pessoas que só fazem algo se for determinante para a saúde. Até
seria interessante, se não fosse levado ao extremo. Já na vigorexia a pessoa não
é capaz de ficar sentada um minuto simplesmente porque acha que não está
gastando calorias. Mas é preciso tomar cuidado para não confundir transtornos
alimentares com comportamentos alimentares alterados. Para determinar o
diagnóstico, é necessária uma avaliação psiquiátrica. Fazer dieta é um dos
critérios que se utiliza para determinar o diagnóstico. Mas fazer dieta pode ser
normal ou patológico, do mesmo modo que vomitar depois de comer demais pode ser
uma característica patológica ou representar uma fase de risco. Para se
classificar como bulimia, é preciso que o comportamento seja repetitivo e
existam outros sintomas, como a ingestão alimentar excessiva e culpa associada à
tentativa de eliminação.
Qual a prevalência dos transtornos alimentares nos grupos de risco?
— Na população mundial, a prevalência de transtornos alimentares é de 1 a 2%, e
a bulimia é três vezes mais comum que a anorexia. Nos grupos de risco – em que
há pressão para modificação corporal, como atletas, modelos, bailarinas,
ginastas, jóqueis, atrizes e estudantes –, a probabilidade de desenvolver
transtornos alimentares é de três a cinco vezes maior. A anorexia é uma doença
do adolescente, mas nem todo adolescente apresenta risco de desenvolver
anorexia. O risco de apresentar comportamentos inadequados é maior entre as
modelos, mas isso não significa que elas terão mais doença que as outras
adolescentes. Entre as meninas atendidas aqui no ambulatório a prevalência de
transtornos alimentares não é maior que na população. Elas apresentam mais
comportamentos de risco, mas não quer dizer que tenham mais doenças. As pessoas
confundem: falam que toda modelo magra é anoréxica. É mentira. No concurso da
Agência Ford, feito logo após a morte da Ana Carolina, a mídia compareceu em
peso. Nunca vi tantos repórteres acompanhando as modelos, surpresos porque elas
comiam mais do que eles. É lógico, elas são adolescentes, comem como loucas, mas
são magras. Podem comer lixo que engordam zero. O problema é que o corpo delas
está em transformação. Por isso acreditamos que, para começar a trabalhar como
modelo, a menina deveria ser pelo menos púbere.
Por quê?
— Porque aí o corpo delas já mudou e as medidas são mais estáveis. É diferente
de uma menina de 12 ou 13 anos, que está entrando na carreira e tem o corpo
perfeito para o biotipo de que precisa nesse momento. Mas dali a um ano o corpo
dela muda: continua crescendo, ganhando novos contornos. As agências dizem para
ela voltar a ter 88 ou 90 centímetros de quadril, mas ela já está com 92. Essa
menina não tem gordura para perder. É essa característica arbitrária que estamos
discutindo com os estilistas e as agências. É comum eles mandarem as modelos
voltarem só depois de perder 10 quilos. Algumas meninas podem perder 10 quilos e
ficar perfeitas, mas outras não. Será que conseguem emagrecer de forma saudável?
Ou só vão perder peso se fizerem uma plástica óssea?
Como está esse diálogo com as agências?
— Estamos discutindo bastante. Fizemos um desafio para as agências e para os
estilistas: que seja o pessoal da área de saúde e o da área de moda, em
conjunto, que definam o padrão de modificações corporais adequado. A morte da
Ana Carolina abriu o diálogo com a indústria da moda. Pouco antes convocamos uma
reunião e só apareceram representantes de quatro agências, nenhum diretor. Agora
já consigo falar com os diretores.
Qual é o papel de cada um para evitar os problemas de saúde com as modelos?
— Todo mundo tem responsabilidade. A mídia tem uma culpa gigantesca porque
exagera em várias coisas, na busca da modelo, da notícia. A família tem uma
responsabilidade grande. Jamais deixaria uma filha de 12 ou 13 anos sair do
interior do Brasil para morar sozinha numa cidade grande e depois ir para o
exterior sem acompanhamento. Porque essa criança ou adolescente vai entrar num
mundo competitivo e de rejeição constante. As modelos recebem nãos todos os
dias, mesmo sendo perfeitas, porque os clientes querem características que elas
não têm. E têm de ter uma estrutura muito legal para isso. Agora, com 12, 13, 14
anos, você se acha a pessoa legal, foi escolhida como modelo e é rejeitada.
Lembre-se de que elas estão em transição, passando por mudanças corporais e com
uma auto-estima baixíssima.
Elas recebem acompanhamento psicológico?
— Algumas agências oferecem acompanhamento psicológico. Mas há agências e
agências. Algumas são absolutamente profissionais, outras falam muito e não
fazem nada.
Como surgiu a idéia de criar um ambulatório para adolescentes que queriam ser
modelos?
— Eram duas situações de muito interesse e alto risco: ser adolescente e ser
modelo. Eu já tinha atendido em ambulatório algumas candidatas a modelo,
esporadicamente, e vi que eram muito desprotegidas. Não tinham convênios médicos
nem faziam exames de saúde. A primeira agência com que trabalhamos foi a Elite.
Fizemos uma primeira avaliação das finalistas de um concurso nacional. Foram
100, 120 meninas, que vinham do Brasil inteiro. Não imaginávamos que fossem tão
magras, tão altas e viessem de tantas regiões.
O senhor já foi a um desfile de moda?
— Já, mas acompanhando, como profissional de saúde, as modelos. Elas desmaiam
algumas vezes, pela tensão ou pelo período que ficam debaixo do calor dos
holofotes. A pressão emocional é muito forte e elas podem ter um piripaque a
qualquer momento, por causa de cansaço, tensão, alterações emocionais. A partir
daí, começamos a trabalhar com outras agências que nos procuraram. Sempre foi um
serviço gratuito, nosso objetivo sempre foi científico.
Que tipo de serviço vocês prestam às agências?
— Temos três tipos de acompanhamento de saúde das modelos. O primeiro é o
acompanhamento dos concursos de ingresso de algumas agências. Temos também uma
segunda forma de avaliação: recebemos aqui as new faces, que são as meninas
novas, que estão entrando em carreira, para consulta e acompanhamento.
Normalmente as atendemos até os 20 anos. Mas continuamos tratando algumas das
que já estavam conosco, se precisar. Fazemos os exames e o acompanhamento
clínico de todas as especialidades médicas. O terceiro programa de
acompanhamento é a visita domiciliar. Visitamos os apartamentos das modelos. A
grande maioria dessas meninas fica em apartamentos que podem ter de 5 a 15
modelos. É um grande risco, porque elas têm de cozinhar sozinhas e se cuidar
sozinhas. Não vão fazer pratos sofisticados, mas o mais simples possível, um
macarrão instantâneo ou uma salada, só se tiver dinheiro é que vai fazer um
grelhado. O problema é que elas têm conceitos inadequados sobre alimentação,
acham que não podem comer feijão com arroz, que não devem comer pão, que só
podem comer até as 8 da noite. Como toda adolescente que está sozinha, não têm
para quem perguntar. É o que estamos tentando mudar.
Que problemas mais aparecem?
— Menstruais, como em toda adolescente, constipação intestinal e dermatológicos,
já que elas juntam adolescência com a necessidade de ter uma pele perfeita.
Também se preocupam muito em fazer dietas, geralmente inadequadas. Oferecemos
orientação geral sobre alimentação, esporte, recreação. E orientação emocional,
que é nossa grande preocupação, para não deixá-las nem engordar nem emagrecer de
forma inadequada.
O senhor conta com o apoio das famílias das adolescentes?
— Quando necessário, chamamos a família. Temos o poder de veto e podemos mandar
a menina para sua cidade de origem se ela não se adequar a um determinado padrão
de saúde.
As agências consideram seu parecer?
— Deveriam. Nos últimos anos, e principalmente agora, com a morte da Ana
Carolina, tem havido um maior entendimento. Mas tem agências que, apesar de
estarem conveniadas conosco, nunca enviaram e nunca mandaram meninas e não têm
nenhum interesse no que fazemos.
Quantas agências de modelos vocês atendem?
— Trabalhamos com todas as grandes agências de São Paulo e algumas pequenas
também. São cerca de 12.
Que problemas estão sendo esquecidos?
— Um deles é o trabalho precoce. Modelo, assim como artista, é uma profissão de
exceções, que reúne pessoas que teoricamente não poderiam trabalhar e estão
trabalhando. Crianças e adolescentes trabalham como atrizes e como modelos,
sujeitando-se ao mundo de egos, rejeições e interesses familiares. Vão continuar
trabalhando como modelos ou artistas, mas acreditamos que deva existir
acompanhamento médico intensivo. O segundo ponto que defendemos é que exista uma
discussão da idade mínima de trabalho. Por exemplo, mesmo que se discuta uma
idade, pode ser 15, 16, as meninas abaixo desse limite não vão deixar de ser
modelos. Óbvio que elas vão continuar, mas que sejam consideradas aprendizes,
como em outras profissões, e passem por uma supervisão maior que as mais velhas.
Nesses casos, podemos pedir que as famílias estejam juntas com elas; claro que
essas medidas ainda têm de ser discutidas por toda a sociedade. A terceira coisa
que estamos propondo, que é o grande desafio para as agências, é a
obrigatoriedade do estudo até pelo menos o final do ciclo básico. Elas param de
estudar quando vão para o exterior. Muitas modelos estudam, mas de forma
irregular. Infelizmente algumas escolas aceitam que elas sejam matriculadas, mas
não cobram freqüência e dão atestado de escolarização.
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