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O Estado de São Paulo, 17 Outubro 2015 | 16h 00

Entrevista. Carlos
Alberto Dória

Cozinha camarada



Sociólogo oferece um ingrediente raro para explicar a onda gastronômica que assa
em fogo baixo as nossas ideias: o poder de apontar um horizonte de
reencantamento pelo mundo contra a burocratização da vida moderna

Vitor Hugo Brandalise


Há qualquer coisa de
rural em Carlos Alberto Dória, sociólogo de 65 anos, estudioso da culinária
brasileira, que acaba de abrir a porta de seu apartamento na Consolação, centro
de São Paulo. Ele segura o cachorro Batman para que não avance, estende a mão,
convida a entrar. Seria a camisa listrada, o colarinho aberto, a barba
bagunçada? Ele mostra a cozinha, piso de azulejos azuis, duas colheres de pau na
bancada. Oferece um café coado. Sentamos à mesa de pinho de riga na sala muito
ampla e ele escuta a primeira pergunta. “Espera. Qual é o seu prato favorito?” E
prossegue, bem sério: “Pense nesse prato, isso vai ajudar na conversa. Em
gastronomia, a palavra é encantamento.”


A palavra, então, passou
a ser simplicidade. O que há de rural em Dória, na verdade, é o que há de
simples. Ele é coerente à sua produção intelectual: em seu blog (o e-BocaLivre)
e no seu último livro, Formação
da Culinária Brasileira
 (Três
Estrelas), de 2014, o sociólogo defende uma revisão da “espetacularização da
comida, que esconde o interesse legítimo pelo que levamos à boca”. É uma
simplicidade difícil, que pode até andar meio perdida – algo que ele vê com
otimismo, porque cria a oportunidade do reencontro. “O importante é manter o
espírito de busca”, diz.


O duro é que, em
oposição a isso, há as ideias que confundem e iludem. Em mais um capítulo da
tendência de encarar a comida como espetáculo, estreia na terça-feira o Masterchef
Junior
, programa de competição culinária (agora, entre crianças de 8
a 13 anos). “Em um sentido, esses programas envolvem as pessoas com processos
que elas ignoravam. Mas eles não têm preocupação em explicar os signos da
culinária. São alienantes, sem interesse cultural e valorizam o pior do
capitalismo: a competição, o subir a partir do fracasso dos outros”, afirma o
sociólogo, pós-doutor pela Unicamp.


Coincidentemente, também
na terça abre em São Paulo a exposição O
Tempo e Eu(e Vc)
, sobre Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), um dos
maiores pesquisadores da cultura popular brasileira, autor de A
História da Alimentação no Brasil
, de mais de 1.000 páginas,
referência na área. Dória é um dos curadores da mostra. “Aos que quiserem
aprender o que a espetacularização da cozinha não tem interesse em explicar, eu
recomendo”, diz Dória nesta entrevista ao Aliás.



Qual deve ser o papel da gastronomia na vida das pessoas?


Primeiro, é preciso
diferenciar a culinária da gastronomia. A culinária é um conjunto de modos de
fazer, de produzir alimentos de uma sociedade. Já a gastronomia surge na Europa,
ligada ao aparecimento dos restaurantes, quando se começa a estruturar um
discurso para o público sobre a comida. Gastronomia, então, é um discurso sobre
a comida. É um discurso que pode ser crítico, analítico, ou pode ser só de
elogios. A partir dos anos 90, esse discurso fica importante na sociedade,
porque começa a haver uma preocupação grande com a qualidade do que se come. A
crise da vaca louca é um marco. Os consumidores passam a querer discutir a
qualidade da comida. A partir daí aparece também uma feição educacional: as
pessoas se interessam em aprender mais, surgem os cursos sobre vinhos, sobre
culinária… Já do ponto de vista ético e estético, vejo a gastronomia como um
trabalho de reencantamento do mundo, oposto à rotinização e à burocratização da
vida nas sociedades modernas. As artes em geral dão oportunidade de quebrar
isso, de provocar um estranhamento na pessoa, tirá-la da mesmice. A gastronomia
assumiu esse papel na sociedade de massas, de apontar para um horizonte de
encantamento.



Quais os traços fundamentais da formação da culinária brasileira, tema de seu
último livro?


Como toda cozinha
nacional, a cozinha brasileira é cindida entre a cozinha de elite e a cozinha
popular. A cozinha da elite, historicamente, tende a ser centralizada e, no
Brasil, desde o século 19, a referência foi a França. Mais recentemente, a
influência é de um discurso mais moderno, como o da culinária espanhola. Uma
cidade como São Paulo tem várias referências para as classes média alta e alta,
restaurantes de cozinha japonesa, italiana… Ao passo que a culinária popular
não é centralizada. Ela expressa processos históricos localizados, apropriação
dos ecossistemas nesses espaços. O chamado sertão de leste, que é o Vale do
Paraíba, Vale do Rio Doce, o sul de Minas, tem a culinária caipira, com
influência tupi-guarani. Já a culinária do sertão da Bahia é outra coisa, ligada
ao ciclo do gado. Há essa riqueza e essa diferenciação. E há também uma falácia:
a abordagem da culinária brasileira propõe que existe um conjunto de cozinhas
regionais espalhadas pelas cinco regiões sociopolíticas que o IBGE dividiu o
Brasil. Mas não é assim.



Por que isso é uma falácia?


Faz mais sentido falar
em uma geografia dos ingredientes. Por exemplo, a culinária baseada no pequi
está presente em Goiás, no sul da Bahia, no norte de Minas, também na Amazônia,
no Pará. Não se encaixa em uma região única do IBGE. E não só o discurso
regional, mas o discurso de culinária nacional também é anacrônico. Há,
historicamente, uma internacionalização de ingredientes. É preciso ver o País
desde a origem em um circuito de trocas comandado por Portugal. Vieram produtos
de todos os continentes, e isso não permite falar em ingredientes nacionais. As
barreiras da língua, do comércio, foram caindo. Em termos econômicos, o
nacionalismo não existe mais. Esse discurso de cozinha nacional e regional,
portanto, serve à indústria do turismo, mas não à história da cultura culinária.



Por que considera um mito que a culinária brasileira seja um amálgama da
contribuição miscigenada de índios, negros e brancos?


Há a contribuição
europeia ou portuguesa, especialmente nos usos do açúcar, que estrutura toda a
doçaria. Os negros, por outro lado, não tinham liberdade pra cozinhar, eram
escravos. E na culinária é preciso liberdade para criar. Por trás de um sabor,
há muita tentativa e erro, um acúmulo de boas soluções. Assim, a participação
dos negros nesse processo de elaboração é pequena. Em relação aos índios, pouco
sabemos, porque pouco retivemos da diversidade dos povos indígenas. Havia mais
de 1.000 etnias quando o Brasil foi descoberto, e hoje há pouco mais de 200.
Cada povo tinha sua maneira de comer, seus ingredientes. Então essa fórmula da
miscigenação, de que cada um pôs a sua colher num caldeirão geral, precisa ser
discutida. A fórmula da cozinha brasileira seria: índios + negros + portugueses
= Brasil. Isso também é uma visão turística da culinária, não é de um processo
social e histórico que levou séculos para se consolidar.



O senhor fala em gastronomia como discurso. Como é o discurso gastronômico de
hoje?


É o da valorização do
ingrediente. O discurso anterior, que valorizava a técnica, acaba em 2011,
quando o (chef Ferran) Adriá fechou o El Bulli (cinco vezes eleito o melhor
restaurante do mundo e que tinha como base a “cozinha molecular”). Aí a atenção
desloca-se da técnica para os ingredientes. Agora, dentro dessa tendência de
valorização dos ingredientes, é importante apontar um erro comum: despir o
ingrediente de significados culturais para revesti-lo de um significado natural.
Por exemplo, o pequi e a pupunha. Parecem produtos naturais, mas não são. Eles
são produtos de um processo histórico longo de seleção artificial. A pupunha
selvagem tinha 5 gramas, e hoje tem 70 gramas. Quem desenvolveu isso foram povos
indígenas da Amazônia, por meio de escolhas, conscientes ou não, que
transformaram as espécies. São ações culturais, e não naturais. Notar isso é
importante porque, desse entendimento, podem sair políticas de preservação, por
exemplo. É preciso ter claro que absolutamente tudo o que nós comemos é fruto do
trabalho humano. E, se há pessoas envolvidas, elas podem ser prejudicadas por
esta ou aquela política e ficam dependentes da consciência que tenhamos sobre
essas coisas. Não é apenas a natureza.



E os programas de culinária na TV? O que eles dizem de nós?


Há dois tipos de
programa. Os educacionais, para pessoas que passaram a comer mais e mais fora de
casa e por isso, com o tempo, desaprenderam a cozinhar. Nesse sentido,
reaprender é retomar um estilo de vida que tínhamos. E há outro conjunto de
programas que é centrado na competição, entre os restaurantes, ou entre futuros
chefs, que são esses popstars do momento. Essa é uma onda cultural que explora o
interesse da população na culinária para reforçar o que eu considero um dos
piores valores do capitalismo: derrotar adversários, subir a partir do fracasso
de outros. Apostam na competição e não na solidariedade, e eu considero terrível
isso. É um valor cultural que nós não deveríamos incentivar. Há ali pessoas
usando a comida como instrumento de guerra. E agora isso vai incluir as
crianças, uma ideia ainda pior. A culinária deve apontar no sentido contrário,
da camaradagem, da cooperação, do benefício social que pode produzir.



Por que para as crianças é pior?


Fui a um debate há pouco
tempo e na plateia havia uma criança de uns 12 anos. Sabia tudo de culinária. E
se via claramente que a mãe incentivava a criança a falar. Como antigamente se
fazia, colocando as crianças para recitar poesias, tocar piano. Era para
promoção do orgulho materno. Hoje, esses programas têm o papel de ganhar os pais
por uma perspectiva profissional que eles acham bacana. Tem a ver com
reconhecimento social, já que, com a ascensão da gastronomia, aumentou o
interesse em tornar-se um chef. Mas esse papel de criança cozinheira é
totalmente importado. Não existe isso aqui. No meio rural, há a criança que
ajuda a mãe na cozinha e, depois de tanto ajudar, aprende a cozinhar. Porque
está vendo, convivendo, independe de educação formal. Tirar isso da família,
atribuir a uma escola ou a uma capacitação intensa das crianças para competir,
eu acho lamentável. Volto nessa questão: temos de procurar um horizonte de
solidariedade, de cooperação, e não de competição, de exclusão. E fomentar isso
desde a infância é pior. A criança está sendo socializada, na cozinha e em
outras áreas, sem estar preparada. Agora elas vão ser pequenos chefs. É o
marketing que propaga esse valor competitivo, não é o desejo autêntico. Criança
quer ser motorista, bombeiro, bailarina, quer ser o que o pai ou a mãe são.
Evidentemente você pode procurar transformá-la em qualquer coisa. Inclusive em
pequenos monstros.



Mas esses programas não podem fazer com que mais pessoas se interessem pela
culinária?


Podem criar padrões de
consumo novos, mas isso é muito a longo prazo. Porque esses programas não têm um
objetivo cultural. É um salve-se quem puder, faça um prato com esse punhado de
ingredientes e derrote o seu colega. Para a cultura gastronômica não trazem
benefício nenhum. Em um sentido, envolvem as pessoas com processos que elas
ignoravam. Mas não há preocupação em explicar os signos. É alienante, pois não é
uma prática continuada. São espetáculos. Além disso, criam uma expectativa de
que se tornar chef de cozinha é um caminho de ascensão social. Especialmente
para a classe média.



O que o senhor acha da graça que fazem com o “raio gourmetizador”?


É resultado de um
exagero do marketing, que levou à banalização da expressão e ela própria se
tornou um instrumento de crítica. As pessoas perceberam, de modo geral, que tudo
o que leva o rótulo “gourmet” é mais caro. Só isso. Em que um azeite gourmet se
diferencia de um não gourmet? Destacam a acidez do azeite, de 5%, de 2%. Mas só
é possível detectar isso em testes químicos. Não muda o sabor. Então, que
relevância tem isso na cozinha? Essa gourmetização cria uma cortina que esconde
o processo real. Acaba chamando a atenção para detalhes supervalorizados. Por
isso eu chamo de entulho gourmet. Essa linguagem que não diz nem esclarece nada.
E o marketing tira partido disso, pois não têm interesse no esclarecimento, e
sim na confusão.


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