Revista Fórum,

http://revistaforum.com.br/digital/138/sistema-de-cotas-completa-dez-anos-nas-universidades-brasileiras/
,
acessado em 25/03/2014

DEZ ANOS DE COTAS NAS UNIVERSIDADES: O QUE MUDOU?

 Mudança
garantiu avanços nacionais em termos de inclusão, mas São Paulo ainda se recusa
a estabelecer ações afirmativas para negros, pardos e indígenas

Por Igor Carvalho

Em 1997, apenas 2,2% de
pardos e 1,8% de negros, entre 18 e 24 anos cursavam ou tinham concluído um
curso de graduação no Brasil. O baixo índice indicava que algo precisava ser
feito. “Pessoas estavam impedidas de estudar em nosso país por sua cor de pele
ou condição social. Se fazia necessário, na época, uma medida que pudesse abrir
caminho para a inclusão de negros e pobres nas universidades”, lembra a
pesquisadora e doutora em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF),
Teresa Olinda  Caminha Bezerra.

A solução encontrada
para que se diminuísse o déficit histórico de presença de negros e pobres nas
universidades brasileiras foi a adoção de ações afirmativas por meio de reservas
de vagas, que ficaram conhecidas como cotas. Porém, por todo o país, houve
resistências à sua implementação.

Em 2003, a Universidade
Estadual do Mato Grosso do Sul começou a usar fotos enviadas por estudantes para
decidir quais poderiam ter acesso às vagas, que foram determinadas por uma lei
aprovada pela assembleia legislativa daquele estado. O “fenótipo” exigido era
composto por “lábios grossos, nariz chato e cabelo pixaim”. A ação gerou
protestos de movimentos negros. Ainda na Uems, em 2004, o professor de Física
Adriano Manoel dos Santos se tornou réu em um processo na Justiça do estado por
racismo. Ele teria dito, na sala de aula, que a universidade deveria “nivelar
por cima, e não por baixo” o ensino, fazendo alusão aos cotistas presentes na
sala, entre eles o estudante Carlos Lopes dos Santos, responsável pela ação
judicial.

No Rio de Janeiro, em
2004, a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) anunciou que rejeitaria
uma possível política de cotas. O conselho de ensino da instituição, formado por
professores, alunos e funcionários rejeitou a ação afirmativa. E o Ministério
Público Federal (MPF) do Paraná entrou, em 2004, com um recurso na Justiça
pedindo que a Universidade Federal do Paraná (UFPR) não adotasse o sistema de
cotas em seu vestibular. O Judiciário paranaense freou a prática entendendo que
a reserva de cotas afrontava “o princípio constitucional de isonomia e reforça
práticas sociais discriminatórias.”

Já em 2012, quando a
Universidade de Brasília (UnB) já havia completado oito anos de distribuição de
vagas pelo sistema de cotas, o Partido Democratas (DEM) entrou com recurso no
Superior Tribunal Federal contra a medida, alegando, inclusive “racismo”.

Mas a resistência às
cotas não se dava somente no âmbito de conselhos das instituições ou do
Judiciário, e muitas vezes se dava por meio de atitudes racistas. Durante um
torneio esportivo envolvendo faculdades de Direito, em 2005, torcidas
adversárias se referiam à Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) como
“Congo”, por sua diversidade racial. A alcunha foi adotada pelos alunos da
instituição carioca, e até hoje o país africano é símbolo de suas equipes.

Após algumas
universidades estaduais e federais aderirem à sistemas de cotas, os números
apresentados no começo da matéria começaram a apresentar melhoras. Subiu de 2,2%
para 11% a porcentagem de pardos que cursam ou concluíram um curso superior no
Brasil; e de 1,8% para 8,8% de negros. Os números são do Ministério da Educação
(MEC), em levantamento de 2013. Parte dos movimentos negros questiona os
números, considerados “tímidos”. “Não podemos nos conformar com esses dados, são
baixos ainda. Há avanços, mas estão muito longe de significar os resultados que
buscamos”, afirma Douglas Belchior,  do conselho geral da UneAfro e da Frente
Pró Cotas Raciais.

Uerj, o motor
propulsor

Em 2013, foram
completados 10 anos da primeira experiência brasileira com cotas. A Uerj
autorizou, no vestibular de 2002, que Pretos, Pardos e Indígenas (PPI)
autodeclarados solicitassem suas vagas por meio do sistema e a distribuição das
matrículas ficou assim: 20% para negros, 20% para alunos de escola pública e 5%
para portadores de necessidades especiais. Em 2007, o governador Sérgio Cabral
determinou que no percentual de 5% deveriam ser inseridos os filhos de
policiais, bombeiros e agentes penitenciários mortos.

De 2003 a 2012, já
ingressaram na Uerj,  pelo sistema de cotas, 8.759 estudantes. Destes, 4.146 são
negros autodeclarados, outros 4.484 usaram o critério de renda, enquanto 129
pelo percentual de portadores de deficiência, índios. “O desempenho da UERJ é
excelente. Os cotistas derrubaram o mito de que o nível cairia nos cursos, o
desempenho deles é ótimo”, elogia Teresa Olinda Caminha Bezerra, que produziu,
em parceria com o professor de Administração Pública, também da UFF, Cláudio
Gurgel, o artigo “A política pública de cotas nas universidades, desempenho
acadêmico e inclusão social”, de agosto de 2011.

Neste estudo, Teresa e
Gurgel ajudam a derrubar um dos mitos do discurso anti-cotas. Dos 32 cursos
oferecidos pela UERJ, seis são analisados no artigo, todos da turma ingressante
no ano de 2006, e apontam para uma equivalência de notas no desempenho entre
cotistas e não-cotistas, que contrapõe os valores alcançados no vestibular. No
curso de Administração, os cotistas tiveram uma média de 30,48 pontos no
vestibular, contra 56,02 dos não cotistas, quase o dobro de diferença. Porém, o
desempenho durante o curso mostra um crescimento no rendimento dos cotistas, que
chegam à média de 8,077 contra 8,044 dos não cotistas.

A superação demonstrada
pelos alunos cotistas é considerada “espetacular” por Teresa. “Eles rompem
barreiras como preconceito e o histórico de ensino precário, mostrando que esse
mito do ‘nível’ é apenas isso, um mito, sem qualquer base cientifica que se
justifique.” Outro preceito desmentido no estudo é o da evasão (ver tabela
abaixo), o que configuraria um “fracasso escolar”, nas palavras de Teresa e
Gurgel. Nos seis cursos avaliados, a evasão de não cotistas é sempre maior.

Hoje, dez anos depois da
experiência da Uerj, 32 das 38 universidades estaduais já adotaram modelos de
ações afirmativas. No princípio, leis estaduais obrigavam as instituições a
oferecem cotas, caminho seguido por 16 delas. Porém, com o passar do tempo, a
outra metade das adesões foi espontânea, se dando por meio de resoluções dos
conselhos universitários.

Alckmin e as
“ilhas do privilégio branco”

Entre as 32 instituições
que tem ações afirmativas há uma divisão importante. Enquanto 30 delas se
utilizam do modelo de cotas para a inclusão de negros, alunos de escolas
públicas e portadores de deficiência, somente a Universidade de São Paulo (USP)
e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) optaram pelo sistema de bônus.

O formato é criticado
por especialistas e movimentos sociais. “O bônus é horrível porque não reserva
vagas, não estabelece uma condição para que o estudante negro possa acessá-las.
As alternativas que foram colocadas, do College até
a atual bonificação são ineficazes, elas não reconhecem o elemento racial como
fundamental para a garantia do direito ao acesso às universidades”, explica
Douglas Belchior.

“Os números que eles [USP
e Unicamp
] mostram são autoexplicativos, é uma política equivocada.
Política pública tem que ser pragmática, se ela não produz resultado, não deu
certo. O bônus você pode regular para fazer diferença, mas nessas universidades
não querem que se faça a diferença”, afirma o cientista político do Instituto de
Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da Uerj e coordenador do Grupo de Estudos
Multidisciplinares de Ação Afirmativa (Gemaa) João Feres Júnior.

Na USP, a
bonificação oferecida à alunos PPI é de apenas 5% na média
.
Porém, o estudante só terá acesso ao benefício se for aprovado na primeira fase
do vestibular. O sistema funciona desde 2006, quando foi criado o Programa de
Inclusão Social (Inclusp). Números divulgados pela USP mostram que desde 2006 o
índice de ingressantes na universidade por meio do Inclusp variou entre 24% e
29%, sendo que o maior índice foi alcançado em 2009. Em 2012, último ano com
dados compilados, o índice ficou em 28%.

Porém, a instituição
paulista não desmembra os dados, impossibilitando que se saiba quantos negros e
pardos conseguiram entrar na universidade. “A USP tenta mascarar os números,
aliás os números falam o que você quiser. Os 28% apresentados pela USP são uma
mentira apresentados assim. 28% quem? Quantos são negros? Em quais cursos eles
ingressaram?”, pergunta Silvio de Almeida, presidente do Instituto Luiz Gama. Em
matéria de junho de 2012, o jornal 
O
Estado de S. Paulo
 revela
que, em 2011, dos 26% de aprovados pelo Inclusp, apenas 2,8% eram negros e
10,6%, pardos, totalizando 1.409 alunos, entre os 90 mil da universidade.

Na Unicamp, o sistema de
bonificação oferece 20 pontos ao candidato que se autodeclarar PPI e mais 60
para os que pedem acesso por ter baixa renda. Porém, a média de nota da
universidade de Campinas é de 500 pontos, chegando a 700 pontos em cursos como o
de Medicina. O resultado da política de inclusão da 
Unicamp
é um índice baixo
 de
negros, pardos ou índios que acessaram a universidade. Desde 2003, quando o
modelo foi adotado, o percentual variou entre o mínimo de 10,7% no primeiro ano
e o máximo de 16% em 2005. No ano de 2013, apenas 13,2% de PPIs entraram na
Unicamp.

A culpa para o fraco
desempenho é do governo paulista, para Douglas Belchior. “Em São Paulo, há um
interesse político, que vem de cima, de manter a USP e a Unicamp como ilhas do
privilégio branco. A tropa conservadora do [governador
Geraldo
] Alckmin tem maioria absoluta na Alesp, onde não se consegue
instalar nem mesmo uma CPI sobre o cartel do Metrô, que é um escândalo absurdo.
Nas universidades, os conselhos são dominados por educadores ligados ao PSDB e
ao Alckmin.” A terceira estadual de São Paulo, a Universidade Estadual Paulista
(Unesp) reservou pela primeira vez, em dezembro de 2013, vagas para cotistas.
Foram apenas 391 vagas para negros, pardos e indígenas, do total de 7.259
disponíveis.

A Frente Pró-Cotas
Raciais, de São Paulo, iniciou uma campanha com o objetivo de conseguir 200 mil
assinaturas para que um Projeto de Lei de iniciativa popular seja encaminhado e
votado na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). No documento, o
movimento pede que o estado separe 25% das vagas disponíveis nas universidades.

Sudeste inclui
menos


Geraldo Alckmin (PSDB),
tentou, em 2013
,
aprovar o Programa de Inclusão com Mérito no Ensino Superior Público Paulista (Pimesp),
projeto que foi massacrado por parlamentares e ativistas, 
que
o consideravam racista
,
sendo derrotado nos conselhos universitários. O Pimesp propunha que os alunos
aprovados no vestibular, na modalidade cotas, passassem a integrar um colégio
comunitário que teria o intuito de nivelar os alunos considerados, pelo estado,
mais “fracos”. Eram os chamados “colleges”.

Segundo o estudo “As
políticas de ação afirmativa nas universidades estaduais”
,
de novembro de 2013, do Gemaa, coordenado por João Feres Júnior, a inércia
paulista coopera para que a região Sudeste (16,7%) seja a que menos inclui no
país, contra 40,2% do Centro-Oeste, 32,6% do Nordeste, 29% do Sul e 26,6% do
Norte. “São Paulo tem estaduais gigantes que não incluem. O Rio de Janeiro tem
uma estadual eficiente e que é pioneira, mas é pequena. Minas Gerais tem um
sistema “vagabundo”. Voltando para São Paulo, a USP não funciona, a Unicamp
também e a Unesp nunca gerou vagas. O Alckmin nunca criou uma regulamentação
decente. O Sudeste, mesmo nas federais, quando aprovada a lei (leia abaixo), foi
muito resistente em aceitá-la”, afirma Feres Júnior.

Silvio de Almeida
lamenta que Alckmin não siga o mesmo prumo da maioria das universidades
estaduais do país. “Ao se colocar numa postura de resistências às políticas de
inclusão, que já se provaram eficientes, o governo paulista se coloca de maneira
totalmente contrária aos interesses de uma parcela significativa de São Paulo.”

Lei obriga
adesão de política de cotas nas federais

No segundo semestre de
2004, a Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira instituição de ensino
superior federal a adotar o modelo de cotas raciais como política de ação
afirmativa. À época, se reservou 20% das vagas para quem se autodeclarasse como
PPI.

Somente em 2012 foi
aprovada a 
Lei
12.711
,
determinando que as universidades federais devem destinar 50% de suas matrículas
para estudantes autodeclarados negros, pardos, indígenas – conforme definições
usadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE-, de baixa
renda, com rendimentos igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per
capita
, e que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas
públicas. O número de cotas para negros, pardos e indígenas é estipulado
conforme a proporção dessa população em cada estado, segundo último Censo do
IBGE, em 2010.

Dados apresentados pelo
Gemma em seu estudo 
“O
impacto da Lei 12.711 sobre as universidades federais”
,
de novembro de 2013, indica um crescimento no número de estudantes negros as
universidades comandadas pela União. “Em 2003, pretos representavam 5,9% dos
alunos e pardos 28,3%, em 2010 esses números aumentaram para 8,72% e 32,08%,
respectivamente”, aponta o documento.

Antes da lei ser
aprovada, 18 das 58 universidades federais do país ainda resistiam em aplicar
alguma política de cotas ou bônus. Desde o vestibular de 2013, por força da
legislação, todas as instituições já aderiram, ampliando o número disponível de
vagas para cotistas de 140 mil para 188 mil. Silvio de Almeida, assim como a
Frente Pró-Cotas Raciais, entende que a lei federal precisa ser revista,
ampliando o número de vagas para cotistas. “Se vamos levar em consideração o
percentual da população paulista de negros para estabelecer a quantidade de
vagas, isso tem que ser feito em cima dos 100% das vagas, e não dos 50%, porque
não seremos, no caso de São Paulo, 34,6% de negros na universidade, mas sim
metade desse número. As demais vagas, continuarão nas mesmas mãos.”

O argumento é reforçado
por Feres Junior, do Gemaa. “A Lei federal de cotas foi muito difícil de
aprovar, acho que politicamente é difícil que os movimentos sociais consigam
modificar esse percentual agora. Porém, eles tem razão, da forma como está, você
tem um teto baixo. É claro que existem negros entrando pela ampla concorrência,
mas ainda é um número tímido.”

 

 


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