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O Estado de São
Paulo, CADERNO 2, Quinta-feira, 29 junho de 2006


Era uma vez um
menino, um piano e um concerto de Mozart


Novo disco e recitais marcam os 50 anos da
estréia profissional do pianista Nelson Freire

João Luiz Sampaio

Aconteceu no Rio, em 12 de agosto de 1956, quando um Teatro
Municipal lotado assistiu a um concerto que tinha como destaque um pianista de
11 anos, fazendo ao lado da Sinfônica Brasileira sua estréia profissional.
Cinqüenta anos mais tarde, aquela tarde de música perdida em meio à temporada
carioca transformou-se em data histórica. Marcou o início da trajetória nos
palcos de Nelson Freire. Uma trajetória que o colocou entre os maiores nomes de
seu instrumento. Sim, há muito a comemorar. E as “festas” começam esta semana –
a partir de hoje, ele interpreta o Concerto nº 4 de Rachmaninoff ao lado da
Osesp. Em julho, em Campos do Jordão, e agosto, no Rio, repete com a Sinfônica
Brasileira o mesmo concerto de Mozart com que iniciou a carreira. E promete, até
o fim do ano, fazer o mesmo, ao ar livre, no Parque do Ibirapuera.

Nelson Freire conversou na semana passada com o Estado. E
explicou o porquê da escolha do Concerto nº 4 de Rachmaninoff – no início do
ano, havia sido anunciado o segundo concerto de Prokofiev. “Eu queria tocar uma
peça que é pouco ouvida. E este concerto sempre me fascinou. É como a ovelha
negra entre os concertos de Rachmaninoff, raramente faz sucesso. As pessoas
ficam esperando o romantismo dos outros concertos e se decepcionam. Mas este é
quase moderno, tem uma influência jazzística, um ritmo muito difícil. Não que
falte lirismo. É que a tônica, a preocupação é diferente. A orquestração é muito
rica. Enfim, adoro este concerto e acho que merece ser ouvido.”

Na ocasião, Freire evitou fazer balanços, disse que não gosta
muito de ficar olhando para trás. Mas se disse animado com a possibilidade de
repetir o concerto com que iniciou a carreira, 50 anos atrás. Brincou sobre a
“briga” com o piano da Sala São Paulo, mostrada no documentário de João Moreira
Salles. “Pianos são como pessoas. Acho que a gente já se conhece melhor”, disse.
Mais alguma coisa? Tímido e sabidamente avesso a entrevistas, prometeu falar
mais quando chegasse a São Paulo. O desembarque foi no início da tarde de terça.
E , enquanto na Alemanha a seleção brasileira ganhava – sem muito brilho,
verdade – do time de Gana, Nelson Freire rumava para a Sala São Paulo, para o
reencontro com o piano. Mergulhou em música. E cancelou as entrevistas. Sem
surpresas. Nelson Freire não gosta muito de falar sobre o que toca. Prefere
sentar-se ao piano. É ali que se sente à vontade. “Minha relação com a música é
de amor. É onde eu sou mais eu. Não há nada que não possa ser dito no palco”,
costuma explicar.

MÚSICA É VIDA

Por mais que seja tentador sentar-se com ele, conversar sobre
os 50 anos que se passaram, sobre o presente, o futuro, a gente entende. Há
muito da essência de Nelson Freire no modo como se esquiva de badalações. “Cansa
essa coisa de ninguém saber onde você está, de nunca conseguir falar com você.
Você vê, pianistas como Maurizio Pollini ou mesmo Marta Argerich hoje não fazem
mais do que 30 concertos por ano. O artista tem de lutar para não se tornar um
mero objeto de consumo. A coisa toda é muito desgastante. Há sempre a
necessidade de se planificar tudo. Para quê isso? A vida real não é assim.”

A declaração traz embutida uma idéia muito clara da função do
músico que ajuda muito a entender o fenômeno Nelson Freire. O intérprete, diz, é
apenas um meio, jamais um fim em si próprio. Ele aprendeu isso lá atrás, ainda
na infância, quando deixou Boa Esperança, no interior de Minas, e mudou-se para
o Rio. Lá, estudou com d. Lúcia Branco e Nise Obino. “De d. Lúcia obtive uma
educação privilegiada e, de Nise Obino, além da música, aprendi todo o aspecto
psicológico e espiritual de que um artista tanto necessita. Foi a base para a
compreensão, que veio com o tempo, de que o mais importante é saber se ouvir.
Muitos artistas tentam compensar suas interpretações com gestos, mas isso é uma
ilusão; o importante é aprender a se ouvir.”

Mas o intérprete é mais do que isso. Freire acabou de lançar um
novo disco para a Decca com os dois concertos para piano e orquestra de Brahms.
Ao descrever o maestro Riccardo Chailly, que o acompanhou na gravação, disse que
“é um artista que sabe unir a tradição ao novo, sabe exatamente que elementos do
passado devem ser pensados e reavaliados na hora de fazer a música do presente”.
Poderia estar falando de si próprio. Freire fez desta linha tênue que separa a
partitura escrita da música que se ouve o seu território. Música, diz, é vida.
E, para ele, não há vida sem música. “Isso é muito congiante.”

Quem já o ouviu sabe que é verdade. Freire chama os concertos
de Brahms de “velhos amigos”. Mas são daqueles amigos sobre quem a gente sempre
descobre uma coisa nova. “Antes de gravar, tocamos estes concertos diversas
vezes. E sempre saía diferente. É assim que é bom. E tocar com a Orquestra do
Gewandhaus de Leipzig é uma experiência única. Fazer música para eles é como uma
religião. Não há afetações, narizes empinados.” O que mais dizer sobre Nelson
Freire em seus 50 anos de carreira? Apenas que, se é no palco que ele gosta de
conversar com o público, chegou mais uma vez a hora de sentar e ouvir o que ele
tem a nos dizer.

Categorias: Música

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